Um tipo de afirmação que vejo constantemente sendo jogada por ai é a de que, sem o cristianismo, a ciência moderna não teria existido. Isso comumente faz parte de uma linha apologética chamada “pressuposicionalismo” que consiste basicamente em dizer que sem os pressupostos do cristianismo, a ciência moderna (ou moralidade, ou qualquer outra coisa) não são logicamente coerentes. Ou seja, sem um Deus propondo leis regulares na natureza, não faz sentido pensar numa ciência que funciona.
É uma estratégia interessante mas altamente discutível. Afinal, classicamente, a uniformidade da natureza foi vista como um potencial impedimento para a teologia cristã, visto que impedia a ocorrência de quebras da ordem natural das coisas através de milagres. Sem milagre, sem ressurreição, sem cristianismo.
Outra linha de argumentação sobre a influencia do cristianismo na origem da ciência é a ideia de que a ciência moderna surgiu no mundo cristão, e não na Índia, ou na China, por exemplo. Isso é, evidentemente verdade: é no Renascimento que encontramos as bases da ciência moderna, um movimento que se deu essencialmente na Europa cristã. Entretanto, o Renascimento foi uma revitalização dos princípios clássicos gregos e romanos, e uma quebra com a teologia dos séculos anteriores. Richard Carrier – historiador da ciência, que tem mais títulos do que eu posso colocar em um aposto- coloca isso de forma precisa:
Entretanto, em tudo isso a afirmação que não se sustenta é que o cristianismo encorajou a ciência. Se esse tivesse sido o caso, então não teríamos quase mil anos (de aproximadamente 300 a 1250 AD) com absolutamente zero avanços significativos na ciência (exceto alguns poucos e as contribuições minoritárias de hindus e muçulmanos), em contraste com os mil anos anteriores (de aproximadamente 400 AC a 300 AD), que testemunharam incríveis avanços nas ciências em continuada sucessão a cada século, culminando em teóricos cujas ideias se aproximaram tentadoramente da revolução cientifica no 2o século AD (especificamente, mas não exclusivamente, Galeno e Ptolomeu). Você não pode propor uma causa que falhou em produzir um efeito, a despeito de estar constantemente presente por mil anos, especificamente quando, na sua ausência, a ciência fez muito mais progresso. A ciência retomou em 1200 precisamente onde os antigos [gregos e romanos] deixaram ela, redescobrindo seus achados, métodos e valores epistêmicos, e continuando o processo que eles haviam iniciado.
(Grifo meu)
Claro, mesmo se fosse verdade que a ciência moderna tem sua origem no cristianismo, nada disso advoga em favor de qualquer doutrina religiosa. Pode ser muito bem verdade que a química moderna tem origem na alquimia. Mesmo assim, alquimia continua errada.
Sugiro a leitura do post de Carrier sobre o assunto: Science and Medieval Christianity
Por outro lado, não seria correto afirmar, como alguns antirreligiosos afirmam, que a relação entre ciência e a Igreja foi sempre e inescapavelmente de conflito e oposição. Vide, p.e., Numbers:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-60832009000600006&script=sci_arttext
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[]s,
Roberto Takata
Claro. No post original o Carrier comenta:
"Even so, it is still wrong to say, as a friend of mine did, that "Christianity has spent the majority of its 2000-plus years opposing science with theology, with the most brutal means at its disposal." As someone else said, that’s a gross oversimplification, exaggerated and excessive. But so is the claim that Christianity never presented any obstacles to science, or that it only occasionally did so. The reality is that it constantly presented obstacles, usually indirectly (but just as potently), and sometimes directly, but rarely "with the most brutal means at its disposal." In effect, using a whole arsenal of tactics, early (and especially early medieval) Christianity bitch-slapped all thinking that could have any tendency to support and inspire an embrace and pursuit of scientific values. This hostility and effort wasn't aimed at science directly, but at liberality of thought, and most of all, at the notion that evidence available to everyone is the only supreme authority in all debates of substance. The Church very definitely and actively opposed that idea. And even before the consolidation of the Church, as I show in my dissertation, most Christians were uniformly hostile to the whole system of scientific values, condemning them as vain, idolatrous, arrogant, and unnecessary, if not outright dangerous. It took a long, gradual process to finally change minds on that score. "
Regra de três >> Cristo > Newton > Freud.
Há quem veja um papel essencial - ainda que não exclusivo - da redescoberta do poema De Rerum Natura na mudança de visão entre parte da parte pensante da Europa, abrindo espaço pra Renascença e a Revolução Científica.
[]s,
Roberto Takata
Roberto, eu não conheço esse "poema" e logo, não entendi naaada do que você quis dizer. Caso você ou alguém que veja esse meu pedido, podem conversar comigo.
P.S.: Com calma gente, sou devagar, coloquei em busca em na plataforma de busca, vi latim e fechei a página.
Obrigada,
Bala Juquinha: a curiosa.
Não. De forma alguma. Digo que o cristianismo é um pilar divisório: razão versus fé.
Já Newton é o pilar da racionalização da razão. Haviam evidências. Racionalização das leis universais versus inexistência argumentativa.
Freud é o terceiro pilar. Seres racionais de produção racional versus o inconsciente primário que desenha a tríade evolucionista racional. Créditos à Darwin, mas com sua tribo de filhos ficamos emotivos, mas ele até deve ter chegado à alguma conclusão sobre, porém o legal da ciência e passar a bola; saber que não somo capazes de tudo e feliz assim mesmo.
P.S.: Não entendo nada de futebol. Sou muito excluída socialmente e faço psicoterapia (nem tão freudiana assim) já faz um tempinho.
Bala e pipoca a todos!
Na verdade a dissociação/oposição de Razão vs Fé não é unanime no cristianismo. A Escolástica e o Tomismo foram racionalistas enquanto essa preposição é um reavivamento Barroco do sensibilismo cristão do Século VII (irracionalismo). Mas o irracionalismo se encontrou de forma secular para se opor a razão em Rousseau e Goethe (que viam a verdade na "calma dos sentimentos do coração) em seu Romantismo ou mesmo no ateísmo forte do Pós-Modernismo (que recusa a existência de realidade).
Então, blog que não consegui abrir:
Eu acho que o cristianismo ajudou a disseminar o modo de vida de que tudo era pecado e consequentemente ajudou as pessoas ficarem revoltadas, colocarem os miolos pra funcionar e assim deu força pro pensamento racional. Tiro no pé...
Quando digo "pilar" é a caracterização dicotômica: ao mesmo tempo que suporta sua tese há infinitos lastros e que geralmente são usados para criar pensamentos prós e contras que são a base de sustentação argumentativa e potencialmente recicladora do argumento primário.
Tentei melhorar, mas sou humana e dicotômica por natureza Sr. blog virtual. Mas estamos aí sempre pra aprender um pouco mais e a "brincar" com esse Universo lindo e de emoções que nos cerca.
Obrigada e perseverança no virtual!
Mas o cristianismo não fundou as primeiras universidades, ajudou a financiar e tudo, e a maioria dessa galera que desenvolveu a ciência moderna não estudaram em universidades cristãs ?
Olá.
Tenho duas críticas ao seu texto.
Você diz: "Afinal, classicamente, a uniformidade da natureza foi vista como um potencial impedimento para a teologia cristã, visto que impedia a ocorrência de quebras da ordem natural das coisas através de milagres. Sem milagre, sem ressurreição, sem cristianismo." De onde você retirou essa ideia? Segundo a teologia católica, a possibilidade de ocorrer um milagre tem por pressuposto que o universo seja ordenado. O que é um milagre? Como você disse, é a quebra da ordem natural, essa quebra é impossível de ser feita por um agente natural, ou seja, causas naturais não podem quebrar as leis naturais. A quebra da ordem natural só seria possível por um agente acima da ordem natural, ou seja, sobrenatural, seria um intervenção direta e extraordinária de Deus. Portanto, dentro da teologia católica o seu comentário não faz sentido.
Outro ponto é o comentário do Richard Carrier, que destaco esse trecho: "Você não pode propor uma causa que falhou em produzir um efeito, a despeito de estar constantemente presente por mil anos, especificamente quando, na sua ausência, a ciência fez muito mais progresso". Todo o comentário de Carrier ignora o fato de que na europa a crise social era enorme desde a queda do Império Romano, e isso durou pelo menos uns 500 anos. Dentro desse período, pela falta de estabilidade social necessária, seria impossível haver um grande progresso científico, julgo ainda que foi feito muito mais nessa época, nesse lugar e nessas circunstâncias com o cristianismo do que na ausência deste, uma vez que no ocidente a cultura clássica foi preservada por monges. Depois dos anos mil que o florescimento intelectual na europa foi consideravelmente grande. E aqui temos as universidades, debates, fervilhamento de ideias e toda aquele ambiente cultural que deu a possibilidade da ciência se desenvolver nos séculos seguintes.