Rápidos* pensamentos sobre a contingência do Universo

Acabo de ler o primeiro capítulo de John Loftus no livro The Christian Delusion (que já comentei brevemente aqui). Loftus é o editor e organizador do livro e tem três capítulos na obra. No primeiro deles, Loftus formaliza o que ele chama de o “Teste de Fé do Forasteiro“ (The Outsider Test of Faith, nome do capítulo), que basicamente consiste na idéia que a sua própria crença deve ser avaliada com o mesmo nível de ceticismo e critérios de evidência com os quais avaliamos as crenças dos outros. Ou seja, porque aceitar um milagre vago como confirmação de sua fé pessoal, enquanto os mesmos milagres associados à fés diferentes não são vistos como a confirmação da fé dos outros?

Por essas e outras, Loftus tem ficado famoso por sua retórica e entusiasmo em atacar o cristianismo, especificamente as vertentes evangélicas norte-americanas. Curiosamente Loftus, que é ex-pastor e teólogo, foi um dos estudantes do apologeta William Lane Craig, e é uma das únicas pessoas com a qual ele não quer debater. Loftus parece o exato oposto de Craig: sem nenhuma pompa, com jeito de caipira, bastante inteligente e articulado, porém um desastre em oratória e em debates. Ele é tão ruim, que chega a falhar em responder argumentos que ele ferozmente ataca em seu livro. Porque Craig tem medo dele me é um mistério completo.

De qualquer forma, segue abaixo a parte 1 da palestra, onde Loftus expõem os mesmos argumentos para o Teste.

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O que me chamou atenção, no entanto é que, após a palestra, na parte 7, Loftus é confrontado por alguns alunos (presumidamente cristãos) que perguntam como ele, sendo ateu, explica a existência de um universo contingente. Contingência, pra quem não sabe, é a idéia de que “uma coisa depende de outra”. Por exemplo, se falo que meu mal humor é contingente à quantidade de cafeína que tomo de manhã, quero dizer que meu mal humor depende da quantidade de café que tomei.

De forma geral, tudo que conhecemos no universo é contingente: maçãs dependem da existências de árvores, que dependem de sementes, que dependem de outras maçãs, e assim vai. Essa idéia trás alguns problemas: primeiro, se tudo que conhecemos é contingente então, se fomos seguindo na cadeia de eventos para o passado, nunca chegaremos em um começo, o que implicaria que o passado é infinito, e que o universo sempre existiu. Isso é um problema enorme para qualquer denominação religiosa que postula uma origem miraculosa para o universo. Com um universo eterno, nada de criação e sem criação, nada de criador.

Principio da Razão Suficiente

Para burlar** esse tipo de conclusão inconveniente, filósofos se valem do o que é chamado do Princípio da Razão Suficiente (PRS), um princípio intuitivamente obvio, proposto por diversos filósofos (incluindo Baruch Spinoza), mas popularizado por Leibniz. O princípio afirma que:

Para todo fato F,  deve existir uma explicação de o porque F é o caso

ou

Para toda entidade X, existe uma explicação de o porque X existe

Ou seja, em um universo contingente, tudo que existe pode ser explicado por suas causas. Você pode perguntar: “Porque a Terra existe?”, “Porque a segunda guerra aconteceu?”, “Porque eu gosto de salada?” e todas essas perguntas podem ser respondidas, fazendo referência às causas e situações que permitem que X venha a ser. Tudo perfeitamente compatível com a forma que entendemos o mundo. Nada muito extremo não é?

Mas agora a coisa fica complicada. Algumas proposições não podem ser explicadas fazendo referências às suas causas. Por exemplo: “Círculos são redondos” é uma preposição que não pode ser verificada na realidade, muito menos provada falsa. Ela é verdadeira por si própria (assim como todas as tautologias, por exemplo), ou seja, elas são “necessárias”, verdadeiras independente do universo (algumas vezes chamadas de “incontingentes” ou “absolutas”). A necessidade dessas preposições é vista como a explicação de o porque elas são verdadeiras. Elas não precisam de causas materiais para serem explicadas, dentro do contexto do PRS.

Ok, e onde Deus entra nessa história?

Bom, segundo alguns filósofos, existem entidades que seriam necessárias, ou seja, seriam explicadas pela própria necessidade da sua existência. Como exemplo desse tipo de entidade teríamos números, outros objetos conceituais e, obviamente, deuses (não vou nem entrar no mérito de o porque desse argumento). Deuses, como seres não-contingentes, seriam explicados pela força da própria necessidade de existir: não existiria um mundo possível onde um deus não exista, pois sua não-existência seria ilógica.

Certo… e como isso resolve o problema da contingência para o teísmo? É bem simples: se tivermos um conjunto de todas as causas contingentes do universo (ou seja, o universo que conhecemos como um todo), a adição de uma nova causa contingente não vai ajudar a explicar o conjunto como um todo, pois vai ser apenas mais uma causa contingente para ser explicada por alguma outra causa contingente, e assim ad infinitum. A solução é ter-se uma causa não-contingente, ou absoluta, que possa explicar o conjunto de causas contingentes:

bad
Desenho ruim e pouco explicativo para dar um “quê” de autoridade

A grande sacada desse argumento é que, visto que ele é válido, ele serve para um universo finito ou infinito: um universo infinito seria uma cadeia de causas infinitas, mas deve ser explicada, como um todo, por algo não contingente e, de preferencia, atemporal.

Então, basicamente, o PRS permite que, tanto em um universos finito quanto infinito, possamos defender, logicamente, a existência dessa causa não-contingente, que muitos podem querer chamar de “Deus”.

A resposta de Loftus

Pra qualquer um com um mínimo de senso crítico, esse argumento levanta várias bandeiras (e eu garanto, existem muito mais bandeiras a serem levantadas). Mas Loftus aparentemente opta por dar duas resposta ao desafio dos alunos.

Primeiro ele pergunta “Assumindo que o argumento [que o universo precisa de algo necessário para explicar sua existência] é válido, o que isso te dá?“, que é um ponto completamente válido. Afinal, o máximo que você tem é a existência de um “algo” necessário que causaria todo o resto. E de fato, físicos como Victor Steinger e Lawrence Krauss argumentam que esse “algo” pode muito bem ser um algo físico, como flutuações quânticas ou o vácuo quântico, coisas consideravelmente mais simples do que uma super-mente super-poderosa e imaterial. Ou seja, isso não prova teísmo, e é bem provável que não disprove o ateísmo também, ao contrário do que o aluno parece pensar.

A segunda resposta de Loftus é “eu não sei“, e aqui ele se complica na resposta. Ele parece focar na idéia de que, ao dizer que Deus fez o mundo, cristãos parariam de recorrer a ciência para saber como isso ocorreu, coisa que o aluno rapidamente o corrige (claro, ele faz uma distinção entre saber que deus fez e saber como ocorreu, o que para mim é falsa, mas isso é outra discussão). Mas acho que aqui Loftus perdeu uma oportunidade de explorar uma das fraquezas do PRS.

Pense assim: imagine o estado da arte do conhecimento à 6 mil anos atrás, quando a cosmologia da época ditava que o universo era constituído da Terra e o Céu, mas que também tivéssemos teólogos tão espertos como os de hoje, propondo coisas como o PRS para “explicar” o universo. Esse pequeno “universo” seria contigente e explicado por Deus AKA “Deus criou aquele universo”. Agora adicione um modelo heliocêntrico, com o sistema solar sendo “o universo”… como fica o argumento? E se você adicionar a via-láctea inteira? E se colocar um cluster de galáxias? E todo o universo visível? Como fica?

Bem, igual, é assim que fica. O PRS é aplicável a todos os universos já concebidos pela humanidade. Visto que o que é o “universo” é um conceito humano em constante expansão, determinado por nossa capacidade de investigar a natureza, o PRS indica que Deus é uma explicação até para os universos errados. E se tem uma coisa que aprendemos em filosofia da ciência é que, se algo explica tudo, ele muito provavelmente não explica nada.

Agora, o que realmente me intriga é: porque diabos William Lane Craig tem medo de debater com o Loftus, um sujeito que se embanana para responder uma pergunta tão simples de um aluno, sendo que ele mesmo já fez um ótimo trabalho em refutar esse mesmo argumento? Pra mim, esse é o verdadeiro mistério.

* Sim, isso foi ironia.

** Eu não sei se o PRS foi proposto “para esse fim”, mas visto que apologetas rotineiramente falam bobagens do tipo “o multiverso foi proposto por cientistas ateus para escapar da criação divina”, eu não fico com um peso grande na consciência.

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