Afinal, por que #somostodosmacacos?

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A não ser que você estivesse morando em uma caverna nos últimos dias, você ficou sabendo da controvérsia sobre a campanha #somostodosmacacos, que está bombando nas redes sociais. Afinal, se eu sei e faço doutorado (o mais próximo de uma caverna uma caverna que podemos ter nos dias de hoje), então você sabe.

Mas aqui vai a recapitulação: Daniel Alves, jogador do Barcelona, há temos vem sendo hostilizado pela torcida espanhola, que o chama de “macaco”, uma alusão ao seu tom de pele. No último jogo de seu time, uma banana foi atirada contra Alves, que a pegou e comeu:

[youtube_sc url=”https://www.youtube.com/watch?v=VzNNOYSWk2M”]

Não muito depois disso, o jogador Neymar, seu colega de time, foi ao twitter e ao instagram protestar

Isso acabou resultando em uma campanha maior que motivou muitos outros famosos a postarem fotos deles mesmos comendo bananas sob o hashtag #somostodosmacacos, em protesto ao racismo e em suporte ao Daniel Alves.

Eu confesso que vejo essa campanha como positiva, apesar de alguns protestos. Ela me parece ter uma motivação nobre (independente da sua eficácia) e parece estar tendo grande adesão, apesar de se basear em uma concepção rejeitada por 33% da sociedade brasileira, a teoria evolutiva, o que talvez nos dê possibilidades de elucidar e esclarecer um pouco essas ideias.

Mas mesmo ignorando a massa criacionista e seus “pensadores” que estão fechados, a priori, à argumentação e a evidencias, ainda existem muitas pessoas que não entendem o motivo pelo qual seriamos macacos ou talvez até discordem, argumentando que mesmo que tenhamos descendentes comuns, nós somos diferentes demais para sermos considerados macacos.

Essa, na verdade, é uma resposta frequente dentre evolucionistas contra a afirmações de criacionistas de que eles não descendem de macacos. “Nós não descendemos de macacos. Nós e os macacos temos um ancestral comum”, costumam dizer. Mas essa afirmação é um erro, pois só pode ser proferida tendo em vista uma concepção errada da relação de parentesco entre humanos e outros animais, ou uma concepção errada de como classificamos espécies em biologia.

Mas então, porque somos macacos?

Primeiro temos que entender como classificamos espécies em biologia. O Rodrigo Véras, do Evolucionismo.org já fez um ótimo trabalho em explicar esses conceitos nesse mesmo contexto. Vá até lá para ter uma visão aprofundada de como classificamos organismo em biologia. Mas para entender os conceitos gerais, podemos simplificar da seguinte forma:

  1. Classificamos organismos segundo suas características compartilhadas.
  2. Em um contexto evolutivo, características compartilhadas são explicadas por descendência comum. Organismos com as mesmas caracteristicas as possuem por terem-nas herdado de seus ancestrais.*
  3. Um organismo nunca abandona sua descendência. Uma vez que um organismo é membro de um grupo, todos os seus descendentes também vão ser membros daquele exato grupo.

*Nota aos puristas: sim, isso é uma simplificação.

Esse ultimo ponto pode parecer estranho. Afinal criacionistas vivem dizendo que “evolução é quando um cachorro dá a luz a um gato” ou algo assim, mas isso é uma concepção equivocada. Um cachorro sempre dará luz a um outro cachorro, e nunca a uma outra linhagem existente. E mesmo que esse animal se modifique muito, mesmo assim ele continuará membro daquela linhagem.

De novo, cachorros são ótimos exemplos disso. Abaixo vocês podem ver uma representação gráfica de variação da forma do crânio de cachorros domésticos, em comparação com a variação da forma do crânio de diversos grupos naturais de Carnivoros (a ordem na qual os cachorros estão inseridos).

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Representação esquemática da variação da forma do crânio em Carnivora e em cachorros domésticos. Os esquemas na direita explicam como se dá a variação: eixo x dá a variação de crânios com focinho achatado para o lado negativo e compridos para o lado positivo; o eixo y dá a diferença entre crânios achatados dorso-ventralmente para o lado negativo e altos para o lado positivo. Em verde temos a variação dentro de cachorro e em azul vemos a variação em toda a Ordem Carnivora, exceto cachorros.

Nota-se que sua variação é vastamente superior à vista entre espécies de grupos naturais. Mas em nenhum momento um cachorro, por mais diferente que ele seja, deixou de ser cachorro. Ele sempre é e será cachorro, apesar de agora se inserir em outras categorias hierárquicas, como chihuahua, ou bulldog, etc.

Esses conceitos podem ser vistos na forma de gráficos que representam a história das linhagens, chamadas “árvores filogenéticas”. Essas árvores apresentam o seguinte padrão:

Na figura acima, A e B são ditas espécies “irmãs”, ou seja, que descendem do mesmo ancestral hipotético, representado por “x“. O grupo composto por A e B engloba não apenas essas duas espécies, mas também seu ancestral “x“, que necessariamente irá possuir as mesmas características compartilhadas por A e B. Similarmente, quando olhamos as espécies C, D e E, vemos que elas apresentam um ancestral comum “y” que necessariamente apresenta todas as características compartilhadas por C, D e E. Então se C e D são membros de um grupo, então E também é, pois terá recebido todas as características necessárias para pertencer àquele grupo por descendência de “y“.

Parabéns, Jeff! Agora faça isso para 10 milhões de organismos para 10 milhões anos. Diga para sua familia que você só volta no natal.

Hoje em dia comumente avaliamos essas relações de parentescos baseadas em caracteres compartilhados através de biologia molecular. O principio é o mesmo que o usado em testes de paternidade: se você compartilha metade de seus genes (ou marcadores genéticos) com uma pessoa, você muito provavelmente tem relação de parentesco com ela. O que se faz em biologia evolutiva é a mesma coisa. Só que para populações inteiras. Ao longo de milhões de anos. É…

O resultado de uma dessas análises mais recentes pode ser visto abaixo, em forma de árvore de parentesco:

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Modificado de Perelman e colaboradores (2011).

A seta vermelha indica a posição de nosso gênero Homo, que se insere no grupo Hominidae (incluindo chimpanzés, gorilas e orangotangos), associado ao grupo dos gibões, ou Hylobatidae. Em conjunto, esses grupos são chamados de “apes” ou grandes primatas (ver aqui uma discussão ótima do Eli Vieira, que também tangencia esse mesmo assunto).

Nas caixas vermelhas vemos outros dois grupos: os Platyrrhini, chamados também de “Macacos do Novo-Mundo”, sendo o “Novo-Mundo” as Américas; e os Cercopitecidae, ou  “Macacos do Velho-Mundo”, ou seja da Ásia e da Africa. Agora, se o agrupamento que chamaremos de “macacos” é para ter qualquer sentido biológico, então ele deve englobar tanto os macacos do novo quanto do velho mundo.

Porém isso traz um problema: ao agrupar ambos os grupos de macacos, notamos que o seu ancestral hipotético, que contém todas as características que definem os macacos (sendo ele mesmo um macaco), também é ancestral comum dos grandes-primatas, grupo no qual os humanos estão inseridos. E visto que uma linhagem não pode evoluir “para fora” de sua ancestralidade, então os grandes-primatas, assim como os humanos, descendem do ancestral comum de todos os macacos. Assim, por descender de um ancestral macaco, eles compartilham todas as caracteristicas que colocam outras espécies no grupo  “macacos”. E se quisermos ser sistemáticos e não-arbitrarios, devemos inserir esses animais: gorilas, chimpanzés e, sim, nós humanos, nesse grupo chamado “macacos”.

Isso não significa que somos idênticos a outras espécies do grupo. Nenhuma espécie é igual a outra. Somos obviamente distintos: temos postura ereta, ausência de pelos e somos mais inteligentes que outros macacos, o que nos possibilita realizar feitos fantásticos, como construir espaço-naves, escrever poesia e descobrir o mundo natural a nossa volta. Talvez um dia, a soma de todas essas realizações nos permita eliminar de uma vez por toda o tribalismo e sectarismo que alimentam nossa xenofobia, nossa homofobia e nosso racismo.

Quem sabe.

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