O lado negro de compartilhar videos de animais fofos na internet

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[AVISO: esse post contem imagens fortes]

Quem não gosta de compartilhar animais fofos na internet? Os gatos são inegavelmente os reis da rede, mas outras espécies menos comuns recentemente ganharam popularidade. Filhotes de lontra abandonadas? Quase 8 milhões de visualizações. Quatis sonolentos sendo acariaciados? Quase 6 milhões.

Talvez o grande apelo desses videos seja o fato de que as pessoas são expostas a animais que antes eram desconhecidos, e ficam surpresos em como esses animais podem ser belos, inteligentes e, sem sombra de duvida, fofos. E que mal há em dividir um pouco de fofisse animal na rede?

Segundo o artigo de Nekaris e colaboradores publicado na PLOS em 2013, talvez a atividade não seja tão inocente assim.

Os autores analisaram um video de um Loris recebendo cócegas e aparentemente gostando da experiência. Um loris, para quem não sabe (ver foto acima), é um tipo de primata associado à lêmures. Recebem muitas vezes a alcunha “lentos” por se movimentarem de forma pausada por entre as árvores. Assim como grandes primatas (como chimpanzés, gorilas e humanos) não possuem rabos, mas isso é uma convergência evolutiva, ou seja, não é explicado por ancestralidade comum. Diferente da maioria dos mamíferos, os loris apresentam um arma muito estranha: uma glândula de veneno no sovaco. A secreção dessa glândula, quando misturada com saliva, confere aos loris uma mordida venenosa, usada para caçar pequenas presas e para defesa de predadores e competidores.

 

De qualquer forma, por motivos que me fogem completamente, esse video foi visualizado um numero gigantesco de vezes, ultrapassando a marca de 12 milhões de visualizações, se somarmos todas as versões do video.

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Tabela 1 de Nekaris e colaboradores (2013) mostrando o total de visualizações do video do Loris em diversos canais do YouTube e Vimeo.

Ok, e qual é o problema? Os autores apontam que nesses videos, os principais tipos de comentários se referiam sobre o como os animais eram bonitinhos, sobre o que ele estava fazendo e sobre como o comentador queria um daqueles animais como bicho de estimação. E é nesse ultimo que mora o perigo.

Todas as espécies de Loris se encontram ameaçadas de extinção por devastação de áreas naturais, caça e, obviamente, por tráfico de animais para servirem de bichos de estimação e ornamentais. Visto que a venda dessas espécies é considerada ilegal em grande parte das nações desenvolvidas, é muito provável que a presença desses animais nas mãos de particulares implica na extração de animais da natureza para satisfazer nossa necessidade por fofura. Mas não tem nada de fofo no que os animais passam para virarem “pets”.

O artigo de Nekaris e colaboradores citam alguns exemplos horríveis: Em Taiwan, em 1993, uma remessa de losises pigmeus confiscadas teve uma taxa de mortalidade de 80%. Em Praga, entre 1990 e 2000, todos os lorises pigmeus confiscados entrando no aeroporto morreram durante a quarentena.

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Na esquerda, uma remessa confiscada na Thailandia de lorises pigmeus (exóticos à região). Na direita, uma remessa de animais (todos mortos) confiscada pelas autoridades da Indonésia de Lorises da Sumatra, a espécie mais ameaçada. Foto originalmente publicadas em Nekaris e colaboradores (2013).

E, como se não bastasse, animais que eventualmente sobrevivem a experiência tem que passar por mais um ritual bárbaro: a remoção de seus dentes incisivos, para impedir o envenenamento de seus futuros donos.

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Sim, isso é um cortador de unhas

A remoção dos dentes, além de ser potencialmente letal (até 34% de mortalidade em um dos casos relatados pelos autores), impede que os sobreviventes sejam reintroduzidos na natureza.

Mas o que isso tudo tem a ver com videos na internet? É bem simples: se esses animais são o produto do trafego trafico de animais, esses videos são a propaganda que expõem esses animais a novos mercados consumidores, em escala mundial. E o anuncio por parte de cerca de de 10% dos comentadores de que gostariam de ter esse animais pode ser um incentivo a mais para traficantes de animais intensificarem a exploração de populações nativas.

Obviamente isso não significa que tais videos devam ser removidos da rede. Isso é quase que efetivamente impossível. Mas os autores do artigo argumentam que campanhas de conscientização podem reverter a opinião pública, e transformar uma “propaganda gratis” para traficantes de animais, em campanha de conscientização contra a a exploração desses animais.

Então, da próxima vez que você ver uma foto ou video de um animal silvestre fofo, lembre dos loris:

Traffic - In cage

e se pergunte: De onde esse animal vem? Ele é ameaçado de extinção? Ele é traficado ilegalmente?

E se alguma das ultimas perguntas for sim, talvez, por mais fofo que esses animais sejam, o lugar deles é na natureza ou, na pior das hipóteses, no zoológico*.

 

*Ver aqui e aqui para posts prévios discutindo sobre o assunto.

Lugar de tigre é no zoológico

Recentemente tivemos uma fatalidade. Um garoto, aparentemente estimulado por seu pai, ultrapassou a grade de segurança de um zoológico no município de Cascavel, no Paraná, e foi atacado por um tigre. A lesão resultou na amputação do braço direito do menino e, atualmente, o pai pode responder por lesão grave. Isso foi documentado por videos e fotos. Se você tiver estômago, acredito que consiga achar as imagens e vídeos por si só.

Como de costume, esse evento foi o suficiente para despertar os trolls da internet, que formaram dois grupos de opiniões: os primeiros eram favoráveis à eutanásia do animal, que obviamente seria perigoso para o contato humano; o segundo grupo clamava pela cabeça do pai, ao mesmo tempo que condenava o zoológico por manter um animal selvagem em cativeiro.

Não vou criticar longamente a primeira posição. Afinal, essas pessoas parecem acreditar que, assim como cachorros, um tigre seria um animal domesticado que deveria estar capacitado à andar entre pessoas, sendo assim a eutanásia justificada. A estupidez dessa posição me é evidente. Vamos a segunda posição.

Tigre: uma espécie ameaçada

Há cerca de um século, tínhamos aproximadamente 100.000 tigres selvagens no mundo. Hoje esse numero não passa de 3.200 espécimes, uma redução de mais de 97% da sua população nativa. As principais pressões em populações naturais são caça por pele, perda de habitat e  morte por vingança: devido a redução de seu habitat natural, tigres enfrentam escassez de alimentos, o que muitas vezes os força a atacar gado e outros animais domésticos. Isso, por sua vez força moradores locais a matar o predador para preservar seu rebanho, algo muito similar ao que ocorre com onças no brasil.

Parece horrível, e é. Mas o ponto é que tudo isso ocorre na natureza. Uma das grandes iluminações que qualquer movimento conservacionista deve ter é que tais pressões em populações naturais ocorrem, principalmente, por um motivo simples são também fortemente influenciadas por dois motivos simples: crescente população humana e desigualdade de renda. Não são apenas populações ricas que vivem em enclaves de matas, cortando ilegalmente madeira para plantar beterrabas e criar carneiros. Pois é… o Capitão Planeta estava errado.*

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– Vamos, crianças, vamos descer o cacete naqueles pobres. Pela natureza!

 

O meu ponto é: enquanto tivermos uma população crescente e desigualdade de renda brutal, teremos problemas ambientais, especificamente os do tipo que causam o declínio de populações de mamíferos de grande porte, como o tigre.

Agora, vamos ser honestos: quais as chances disso acontecer em um tempo viável para salvar populações naturais que às vezes tem menos de 200 animais na natureza? Pois é… foi o que eu pensei.

Conservação ex situ

Conservação ex situ é, resumidamente, a conservação de espécies biológicas fora de seu habitat natural (ex: fora, situ: sitio, local). Isso normalmente significa a conservação de animais em zoológicos, aquários e santuários e de plantas em jardins botânicos. Muitas vezes essas instituições tem programas específicos de manutenção de variação genética, por cruzamentos preferenciais, de forma a manter a viabilidade das espécies, mesmo em cativeiro. Isso é feito através da manutenção de registros minuciosos das relações de parentesco de animais em cativeiros ao nível global, que permite a realização de trocas e cruzamentos em cativeiro de maneira informada. Isso é necessário, pois na eventualidade de extinções locais, tais populações podem ser reestabelecidas a partir de estoques em cativeiro. Não é a melhor opção, não é a mais usada, mas é uma possibilidade.

Uma avaliação desses registros também demonstra um detalhe: a grande maioria dos animais em cativeiros nessas instituições não advém da natureza, mas sim de programas de cruzamentos que já estão em vigor ha décadas. Ou seja, com exceção de animais que estão inviabilizados de serem reintroduzidos por diversos motivos como doenças, injúrias ou pelo simples fato de não sabermos de onde eles vieram, de modelo geral, animais em cativeiro não poderia ser liberados sem um programa muito especifico e custoso de reintrodução. Eles não podem e nem devem ser liberados na natureza: além de despreparados para cuidar da própria subsistência, por estarem mais habituados à presença de humanos, eles podem se tornar um perigo real para populações locais, como já acontece nos Estados Unidos com ursos. Esses animais precisam ser abatidos, e tigres liberados na natureza de forma displicente também teriam que ser.

Defensores dos animais X prudência

Uma das coisas que mais me incomoda em alguns dos autoproclamados “defensores dos animais” é sua ausência completa de pragmatismo: testes em animais é errado, mas nenhuma alternativa racional é proposta (com ênfase no “racional”); zoológicos são antros de exploração animal e deveriam ser fechados, mesmo que os ambientes naturais estejam degradados, e que populações naturais quase com certeza estejam fadadas à extinção. Acho que o melhor exemplo disso foi o recente post de nossa “defensora dos animais” favorita, Luisa Mell:

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Eu não duvido por um momento que pessoas como a Luisa Mell agem por causa de sua empatia para com animais não-humanos, algo que considero louvável. Agora o que não é louvável é a utilização de desinformação para manipular os sentimentos das pessoas para fortalecer o seu próprio ponto de vista, no caso, anti-capitalista. De boas intenções, o inferno está cheio. E o que sobra em qualquer movimento social, incluindo no movimento de defesa dos animais, são boas intenções.

Não, Luisa, esses animais não foram retirado de seu meio-ambiente. Eles nasceram em cativeiro e sua presença em zoológicos e outros centros de conservação ex situ se torna cada vez mais necessário em um mundo de crescente degradação ambiental e desigualdade social. Zoológicos precisam de mais recursos para tratar bem de seus animais e a cobrança de ingressos é um jeito de faze-lo. Abusos e maus-tratos devem ser denunciados, mas isso não advoga contra zoológicos, mas em favor de uma administração correta e bem fiscalizada.

O mundo não é perfeito para humanos, para ursos polares ou para tigres. Lide com isso.

* Devido a criticas, modifiquei essa passagem, apesar de achar que não muda a mensagem central do texto. Para maiores informações e referencias, checar o comentário do Luiz Pires no facebook sobre o assunto.

What does the [red panda] says?

Com a viralização da musica da dupla Ylvis “What does the fox say?”, o debate acadêmico de alto nível sobre qual é o barulho que certos animais fazem era inevitável.

Como foi apontado no hypercubic, a raposa regougara, um verbo inesperadamente específico, mas e outros animais? Leões e ursos rugem e grunhem, lobos e coiotes uivam… e o panda-vermelho?

Confesso que eu nem sabia que esse bicho fazia qualquer barulho, mas quando escutei, fiquei realmente impressionado:

Até achei que o arquivo estava errado, mas existem filmagens feitas e realmente pandas parecem… piar. Na verdade, o termo correto em inglês é “twittering” (sim, como em “twitter”) que pode ser traduzido para “chilrear” ou “gorjear”, ambos termos relacionados com pássaros.

Quando escutei isso lembrei de quando estudava no Museu de Zoologia da USP, no Ipiranga. Atrás do museu tem um pequeno parque que abriga (ou abrigava) um pequeno grupo de saguis, que eventualmente visitava minha janela nos fins de tarde. O curioso é que saguis (e outros macacos) fazem sons indistinguíveis dos sons de pássaros, o que me faz perguntar: visto que pandas-vermelhos, saguis e pássaros estão sob a influencia de ambientes similares (as copas de árvores; lembrando que pandas-vermelhos passam muito tempo em árvores), não seria a aparente similaridade consequência de algum tipo de adaptação para superar um obstáculo presente neste ambiente, como por exemplo, a dificuldade de visualizar outros membros da sua espécie?

Uma busca rápida no google.scholar mostra que o assunto já foi abordado, principalmente na questão de convergência entre aves e primatas, mas nada evidente sobre pandas-vermelhos.

Será que alguém anima e explorar a idéia? Pode ficar. Eu não cobro royalties.

Momento “cuteness” + conservação

Recentemente o Zoológico de Toronto liberou imagens dos primeiros passos de um filhote de urso polar que nasceu em 9 de Novembro do ano passado:

[youtube_sc url=”http://www.youtube.com/watch?v=OkfEChXa2V0″]

Segundo um dos leitores do Why Evolution is True, o filhote “é o único sobrevivente de uma ninhada de três. Ele foi tirado de sua mãe Aurora, visto que ela tem um histórico de rejeição de seus filhotes”.

Essa história de me lembrou do Knut, um filhote de urso polar rejeitado pela mãe no zoológico de Berlin. Knut alcançou o status de fenômeno, após ser abandonado pela mãe, em 2006, se tornando o primeiro filhote da espécie a atingir a fase adulta no zoológico em 30 anos.

Knut e seu tratador

Sua carreira chegou a um fim trágico, entretanto, quando em 2011 Knut sofreu um colapso em decorrência de uma encefalite e acabou morrendo afogado em seu recinto.

A vida de Knut não foi livre de controvérsias. Em 2007, o ativista de direitos animais Frank Albrecht disse que criar Knut violava os direitos animais, pois a criação por humanos levaria a distúrbios compartimentais e sofrimento ao animal. Eu honestamente nunca vi evidencias de que animais criados em cativeiro, se bem criados, sofrem, muito menos que sofrer o suficiente para justificar… bem, não cria-los (o que supostamente deixaria só uma outra alternativa). Mas é verdade que a criação por humanos pode impactar negativamente comportamentos essenciais para a espécie, o que pode dificultar, e até inviabilizar, a re-introdução do animal na natureza ou a sua criação em cativeiro.

Então… criar animais em cativeiro é necessariamente ruim? Eu acho que não.

Recentemente eu vi um lindo exemplo no Aquário de Monterey, na Califórnia. Lá eles mantinham diversos animais em cativeiro, inclusive uma albatroz fêmea chamada Makana que, após várias tentativas de recuperação, se mostrou incapaz de ser re-introduzida no meio ambiente (ela possui uma asa fraturada) e hoje é usada para educar os visitantes sobre os perigos da poluição para esses animais.

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Makana se exibindo. Veja ela em ação aqui

Agora o que mais me impressionou foram as lontras-marinhas. Não é apenas pelo fato delas serem incrivelmente fofas:

Nhonhonhonhonho.
Clique aqui para ver uma camera ao vivo.

O mais impressionante, para mim, foi aprender que os animais em exposição eram usadas como babás para lontras orfãs que eram resgatadas pelo aquário. A idéia é simples: lontras órfãs, se criadas por humanos, não poderiam ser re-introduzidas no meio ambiente. Esse era na verdade o caso das lontras expostas. Porém, se um filhote é criado por uma babá, mesmo uma criada por humanos, existe uma chance maior dele ser re-introduzido no ambiente com sucesso. E, de fato, muitas dessas lontras ajudaram a criar diversos animais que foram mais tarde re-introduzidos na natureza. Ou seja, a criação de alguns poucos animais em cativeiro ajudou as populações naturais desses animais. Fantástico!

Claro, isso não significa que todos os zoológicos e aquários são paraísos de conservação ex-situ. Aliás, acho que muitos zoológicos tem uma relação atávica com seu passado, como um local de coleções e curiosidades do mundo animal. Mas talvez, com um pouco de esforço, podemos chegar lá.

Curiosidade: lontras-marinhas adoram mastigar camarões congelados e, depois de uma bela refeição, tirar uma soneca boiando em alto-mar.

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É… eu sei. Insuportável não?

Castrar um hipopótamo não é tão fácil quanto parece (e não parece nem um pouco fácil)

O problema é simples: temos um dos animais mais agressivos e mortais da terra e queremos mantê-los em zoológicos, sem risco para a vida de tratadores. Solução? Oras, castração! Afinal, se funciona com animais domésticos, deve funcionar com outros animais.

Porém as coisas não são tão fáceis. Como se castrar um animal de mais de 3 toneladas não fosse um problema, os testículos dos hipopótamos são móveis, e tem-se mostrado um grande desafio para os cientistas da castração animal (aparentemente ¬¬).

Isso levou a um desenvolvimento de um procedimento original por um time de cientistas liderados por Christian Walzer, da universidade de Vienna. Esse novo procedimento, adaptado do utilizado em cavalos, permite a localização e remoção dos testículos dos animais. Yei, Science!

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O pior dia da vida de um jovem hipopótamo

Viu, fácil. Agora você só precisa de um guindaste, quantidades obscenas de tranquilizante e uma tesoura.

É, eu sei. De nada.

O porque dos testículos desses animais se movem, como que fugissem de dedos gelados de um urologista, é um mistério. Mas o Walzer tem uma teoria:

Hipopótamos machos realmente brigam- não é apenas uma bravata quando eles bocejam e abrem suas bocas- eles podem atacar o testículo dos rivais com seus dentes.

Agora, nunca vi evidência de que hipopótamos atacam os testículos uns dos outros, mas tanto faz, parece uma ótima ideia! Próximo passo: identificar genes envolvidos para aplicação “biomédica” em humanos.

Já!

Aranhas, Beagles e as Mentiras que os Cientistas contam.

Meu primeiro estágio em pesquisa científica foi no Instituto Butantan, pesquisando o comportamento de caça de um gênero muito curioso de aranhas, as Scytodes. Esse gênero é diferente de todas as outras aranhas por uma modificação anatômica muito curiosa: diferente das outras aranhas que apresentam glândulas de veneno, os animais desse gênero apresentam enormes glândulas cefálicas que produzem uma substância pegajosa, que a aranha é capaz de ejetar sobre sua preza, capturando-a a distância:

[youtube_sc url=”http://youtu.be/9PJlfzc4SiE?t=2m20s”]

*A ejeção de cola é rápida demais para ser vista em vídeos normais. Clique aqui e aqui  para ver algumas imagens em close das queliceras.

Esse tipo de habilidade não vem sem um custo: as quelíceras, provavelmente por serem muito modificadas para “cuspir”, não são muito poderosas. Isso faz com que esses animais tenham que caçar animais de exoesqueleto frágil, principalmente aranhas. O fato das Scytodes poderem capturar animais à distância faz com que elas se deem bem contra outros predadores perigosissímos, como a aranha marrom, e até mesmo as espertas e Salticidae.

 

“Glup… ela já foi embola?”

Para desenvolver essa pesquisa eu pedi uma bolsa de iniciação científica para a FAPESP. Para quem nunca teve a experiência, uma das requisições dessa agência para a concessão da bolsa é que precisa estar devidamente justificado o mérito do projeto. Na época isso não ficou muito claro para mim… que tipo de mérito eles queriam? Porque valia a pena pesquisar essas aranhas? “Oras, porque elas são fascinantes!” não me parecia uma resposta muito profissional. Na época o meu orientador me instruiu a descrever os potenciais benefícios para nós, seres humanos, desse estudo.

Meu raciocínio foi simples: aranhas marrons podem ser um problema, eu ia estudar um bicho que come aranhas marrons e SHAZAM… por motivos não explicitados isso soava como uma ótima aplicação prática desse tipo de estudo. “Potenciais aplicações práticas para controle de aranhas marrons” ou coisa que o valha.

Bem, na época eu ganhei a bolsa, realizei o projeto e, eventualmente publiquei um artigo sobre o assunto. “Codificando caracteres comportamentais para analises cladisticas: usando homologia dinâmica sem parcimônia.” Se você acha que soa hermético e totalmente alienado de qualquer aplicação prática, então você pegou a ideia certa.

Na época um colega me perguntou “como você justifica o uso de dinheiro público para estudar comportamento de aranhas?”.

“Eu não sei. Só espero que nunca descubram”.

Eu não acho que essa minha inépcia nesse ponto seja particularmente fora do padrão. A grande maioria dos pesquisadores que conheço sequer pensa sobre como justificar sua pesquisa frente a sociedade. Talvez a maior evidência disso seja o Projeto Genoma Humano, que gastou 3 bilhões de dólares com a desculpa que ajudaria a curar doenças genéticas, cancer ou alguma porcaria assim, quando na verdade poucos avanços terapêuticos reais vieram dai. Não me entendam mal… o projeto genôma humano foi um grande avanço para a ciência. Assim como o projeto do genôma do Ornitorrinco, mas ninguém nem tentou justificar esse com base nos benefícios terapêuticos para o bichinho.

O ponto é: acadêmicos e cientistas de maneira geral não estão treinados para responder esse tipo de questionamento. Me recordo quando, em uma mesa redonda sobre Direitos Animais, o neurocientista Sidarta Ribeiro ficou simplesmente sem ação quando veganos na plateia lhe perguntaram se ele era a favor do uso de animais em pesquisa. “Sim”, ele disse, e isso foi o suficiente para levar a plateia aos gritos.

O que me trás aos beagles… A não ser que você tenha estado debaixo de uma pedra nos últimos dias, você sabe que houve uma invasão ao Instituto Royal, e cerca de 150 beagles que estavam sendo usados para testes farmacêuticos foram libertados. Rapidamente, muitos cientistas vieram repudiar a ação, algo que foi bem exemplificado pelo pronunciamento da ABC e da SBPC sobre o assunto. Muitos de meus colegas no meio acadêmico ficaram boquiabertos. Afinal, uso de animais em pesquisas científicas é algo justificadamente importante, e seria inconcebível imaginar como alguém racional e instruído poderia ser contra o uso (consciente e dentro das normas, que fique bem claro) de animais em laboratórios, certo? Certo???

Bem, eu não acho que seja bem por ai. Acho sim que a questão de uso de animais em pesquisas e testes é algo que sim deve ser colocada em discussão, e que está longe de ser evidente. Mas não quero argumentar contra ou a favor da ação dos ativistas, nem defender ou atacar o uso de animais em pesquisas, muito menos mais testes laboratoriais. Quero apenas fazer uma pergunta para meus amigos da academia: podemos dizer com cara limpa que nós fizemos direito o trabalho de expor e justificar nossa pesquisa frente a sociedade ao ponto que toda a opinião contrária ao uso de animais em experimentação científica seja associado ou a fundamentalismo fanático ou ignorância?

Será?

Variáveis, ou porque precisamos de ratinhos

A um certo tempo atrás, meu colega Pirula fez um video falando sobre testes em animais no qual ele menciona sobre a necessidade de controlar variáveis durante a realização de um estudo com o objetivo de identificar efeitos de tratamentos médicos.

Apesar da questão ética ser de grande interesse meu, não é exatamente esse o meu foco aqui. Durante o vídeo, Pirula dá alguns exemplos do que seriam “variáveis” e passa a bola para o Bernardo (do canal NerdCetico) explicar em mais detalhes. Eu assisti o vídeo do Bernardo e não acho que ele fez um bom trabalho. Meu objetivo aqui não é mostrar que o Bernardo está errado, pois não sei disso: ele tem formação matemática e eu não. Ou seja, a diferença de nossas explicações podem ser meramente um reflexo do jargão das diferentes áreas. Porém posso dizer que estou relativamente familiarizado o jargão experimental de alguns ramos do conhecimento, especificamente em biologia. Visto que o tema original era sobre experimentação em animais, imagino que minha exposição chegue mais próxima do que o Pirula tinha originalmente em mente, e complemente a explicação sobre o porque precisamos controlar variáveis de um ponto de vista estatístico prático (se é que podemos conceber algo assim).

Sendo assim, vamos aos termos:

O que são variáveis?
Variáveis são quaisquer aspectos de um sistema sob investigação que podem variar entre as diferentes observações. Em outras palavras, é o que pode variar entre diversos objetos ou fenômenos que caem dentro da mesma categoria. Por exemplo, se eu estou investigando cadeiras,  variáveis possíveis são desde o peso, o material do qual ela é feita e até mesmo se o seu design se enquadra no movimento bahaus ou não. Ou seja, não existe uma regra que determina que uma variável necessariamente é expressa em valores numéricos, como normalmente se pensa.

Em sistemas biológicos temos uma multitude de características que variam entre os diversos organismos: cor, tamanho, forma, número de células, capacidade de manutenção de temperatura, grau de atividade, idade, etc. Dentro dessa pluralidade de variáveis podemos reconhecer alguns tipos gerais:
-Variáveis Qualitativas, Categóricas ou Discretas:  são todas aquelas que podem ser expressas em categorias que agrupam todos os objetos que possuem aquela característica específica. Por exemplo, quando tentamos identificar a espécie em roedores silvestres, a pelagem é uma característica bastante importante, podendo variar em cor e em tonalidade. Normalmente tais variáveis não apresentam o que chamamos de “ordenação”, ou seja, não existem valores intermediários entre as categorias: um organismo pode ser autotrofo ou heterótrofo, sendo que não existem intermediários entre essas categorias.
Variáveis Quantitativas ou Contínuas: são todas aquelas que variam ao longo de um escala contínua. A grande maioria das grandezas físicas varia dessa forma: peso, massa, aceleração, etc. Muitas variáveis biológicas também se comportam desta forma, como taxas metabólicas, comprimentos de estruturas biológicas, período de atividade, força de mordida, porcentagem de matéria vegetal na dieta, etc.

Variáveis Ordinais (ou semi-quantitativas): assim como as variáveis categóricas, são compostas por classes mutuamente exclusivas. Assim como as variáveis contínuas, essas categorias estão ordenadas de alguma forma, ou seja, existem valores mais baixos, intermediários e maiores. Exemplos desse tipo de variáveis são contagens de eventos, ou qualquer outro tipo de variável expressa por números inteiros (e.x: 1, 2, 3, 4…).

Nem sempre um tipo de fenômeno precisa ser avaliado necessariamente como um tipo único de variável. Por exemplo, podemos avaliar a altura dos indivíduos de uma população de como uma variável quantitativa (medida em centímetros) ou de forma qualitativa (indivíduos “altos” e “baixos”) ou ordinal (indivíduos “pequenos”, “médios” e “grandes”). Tudo depende do tipo de investigação que está sendo feito, nossa capacidade de medir os fenômenos, etc.

Relações entre variáveis

Uma metodologia comum em investigações científicas é o estudo das relação entre diferentes variáveis, com o objetivo de testar previsões teóricas (ex: tal remédio é seguro para o uso). Nesse contexto, costumamos interpretar o valor de uma variável como uma função dos valores de outra variável. Por exemplo, no exemplo abaixo, y é uma função dos valores de x:

Neste exemplo, a relação entre as variáveis é linear, ou seja podemos entender que a relação entre elas é dada por uma reta (ou por uma equação de primeiro grau), na qual cada valor de x tem um valor associado de y. O que é interessante notar é que nessa caso temos uma variável y que depende do valor de x de forma linear (ou seja, segundo uma equação de primeiro grau do tipo). Por esse motivo chamamos y comumente de variável dependente e o x de variável independente. 

Quando analisamos estatisticamente duas variáveis, digamos, dosagem de uma droga experimental e taxa de recuperação, o que fazemos é tentar achar as relações de dependências entre elas. Ou seja, no exemplo, precisamos achar como a taxa de recuperação (Tr) depende da dosagem (d) da droga experimental. Estatisticamente a relação entre essas duas variáveis é dada pela função

onde a0 e a1 são coeficientes da função linear e epslon (simbolo que parece um “e” no fim da equação) é o que chamamos de “erro“, que contem tudo aquilo que não estamos interessados no momento, como peso do indivíduo, idade, dieta, etc. Dessa forma, os métodos estatísticos nos permitem avaliar o que é o real sinal nos nossos dados (ou seja, qual é o efeito da droga na recuperação) do que não nos interessa naquele momento.

Porque controlar o erro?
Visto que o erro em uma analise pode ser controlado estatisticamente, então porque devemos controlar esse erro, ou melhor, no contexto da discussão inicial, porque devemos usar animais de laboratório, que são todos homogeneizados para minimizar tais erro?

O motivo é basicamente estatístico. Quando nosso erro não está controlado, ele pode apresentar uma magnitude grande demais, o que dificulta a identificação da real relação entre as variáveis. No exemplo abaixo, a relação entre as variáveis é a mesma (y=0.5+0.03*x), mas o erro na segunda analise é muito maior do que na primeira. Note também que as retas são bastante diferentes, indicando que a reta obtida com maior erro é muito diferente da real.

Outro ponto é que para o erro (pequeno ou grande) ser considerado como tal em analises estatísticas, ele tem que ser aleatório, ou seja, não pode mostrar forte associação ou padronização com qualquer outra variável que possa ser relevante para o nosso estudo. Quando isso ocorre, tais variávies precisam ser incorporadas  explicitamente na analise, onde cada variável que existe na população deve ser avaliada:

Onde todas as variáveis são expressas por x e seus coeficientes lineares por a. Nesse exemplo, a taxa de recuperação é uma função não apenas da dosagem do remédio, mas da idade, peso, dieta, tipo sanguíneo, sexo, etc.

Entretanto, a solução não é simplesmente coletar mais informações sobre os indivíduos que estão na análise. Existe um numero mínimo de indivíduos que precisam ser utilizados que aumenta a medida que avaliamos mais e mais variáveis. Esse número mínimo é uma função de diversos fatores, e existe toda uma área dedicada ao estudo desse tipo de coisa, porém uma coisa pode ser colocada categoricamente: o número de indivíduos na sua análise nunca pode ser inferior ao número de variáveis abordadas explicitamente. Ou seja, se formos em uma população humana natural, quantas variáveis devem variar de forma significativa? Cinqüenta? Trezentas? Acho que dá para pegar a idéia. Adicionalmente, quando avaliamos um número muito grande de correlações, existem sempre a possibilidade de identificar correlações onde na verdade não existem nenhuma, por puro acaso (é o que os estatísticos chamam de erro do tipo I).

Isso talvez ajude a entender porque muitas das análises sobre benefícios de algum tipo de alimentação variam tanto. Via de regra, tais estudos tem que ser realizados na população humana, incluindo todos os problemas metodológicos colocados. Ou seja, o resultado pode variar tanto não porque os “cientistas não se decidem se ovo é bom”, mas porque os indivíduos amostrais para esse tipo de investigação (e.g. seres humanos sem controle algum) são particularmente ruins para análises estatísticas.

Em outras palavras, testar um produto em uma população não controlada não é apenas perigoso (afinal, estamos falando de medicamentos, e não shampos para cabelos secos), mas é ciência ruim.

Porque devemos comer carne

Original: John S. Wilkins, evolvingthoughts.net

Humanos, assim como outros primatas, comem principalmente raízes, vegetais e nozes, mas irão comer carne quando disponível. Carne é uma valiosa fonte de proteínas e outros recursos nutricionais, e não pode ser desperdiçada. Mas, apesar dessa ser uma afirmação de fato, ela não é uma afirmação de obrigação ou permissão moral. Eu irei argumentar que nossa história evolutiva torna a ingestão de carne não apenas inevitável, mas algo que vale a pena, apesar de que eu não advogaria em favor da quantidade de carne que ingerimos hoje no mundo ocidental.

Existem muitas teorias de ética, mas uma das mais antigas e influenciais é a visão que pode ser traçada até Aristoteles: a Boa Vida é aquela que leva ao florescimento da vida humana. Isso é chamado de “eudaimonia” em Aristoteles. Agora, dessa perspectiva, o que devemos fazer é o que contribui para a eudaimoni, e por acaso todos concordam que humanos evoluíram para, e se desenvolvem melhor quando, comem uma dieta primariamente constituída de matéria vegetal, com uma pequena quantidade de carne, a famosa “pirâmide alimentar” da escola primária. Existem nutrientes que humanos requerem que a carne provêem e são impossíveis ou muito difíceis de serem obtidos de outra forma.

Eudaimonismo é uma ética “espécie-relativa”. Diferentemente da ética universal do vegetarianismo, direitos e deveres morais não são necessariamente estendidos para outras espécies, mas eles se aplicam à todos os humanos. Em “Expanding the Circle” (Expandindo o Circulo), Peter Singer argumenta que direitos morais são universais a todos os seres sencientes; uma visão eudaimoniana não presume isso. Esse é o universalismo de Kant, não de Bentham. Nós sabemos que todos humanos têm direitos e posturas morais; nós precisamos saber com que base nós devemos conferir direitos a animais. Nós presumimos que membros da especie humana têm uma natureza moral.

Sociedades escolhem conferir direitos baseados nas propriedades morais das pessoas. Pode ser objetado que essa visão faria crueldade contra animais permissível. Isso não procede. Como Kant notou, crueldade contra animais afeta seres humanos, degradando sua natureza moral, e apenas com base nisso ela deveria ser proibida. Mas nós podemos também conferir direitos para não-humanos com base no fato de deterêm algumas ou todas as propriedades morais dos humanos. Por exemplo, adultos de grandes primatas tem as capacidades cognitivas aproximadas de uma criança de três à cinco anos; e então eles deveriam ter os direitos e proteções conferidas a aqueles humanos.

Portanto não devemos comer, ou permitir que comam, grandes primatas ou outras espécies com capacidades cognitivas comparáveis. Mas os animais de abate não estão nessa classe (e aqueles que estão, em algumas culturas, como cachorros, deveriam ser excluidos da categoria de “animais de abate”). Nós deveríamos demandar que animais sejam abatidos (e criados) de forma humana (ou seja, sem crueldade ou dor), mas isso não é o suficiente para que seja proibido consumi-los.

Uma implicação disso entretanto é que nós devemos fazer todas as coisas que contribuem para o florescimento humano, e que isso irá incluir a redução da quantidade de carne ingerida, por vários motivos: muita carne leva a várias doenças, desde gota até problemas cardíacos; carne é um recurso caro e ultimamente insustentável nos níveis atuais; e animais de abate são rotineiramente invasores e ecologicamente nocivos.

Em todas as coisas, proporcionalidade é a chave para o florescimento. Muito de qualquer bem pode se tornar um mal. Um pouco de carne é bom; muito dela é um mal. Isso também é uma visão antiga dos gregos. Epicurianos diziam que o prazer é bom, mas muito dele não é. Em contraste com os extremismos do vegetarianismo, todas as coisas, em moderação, para o florescimento da humanidade, este é o caminho.