Ciência é que nem salsicha


Rigor metodológico sempre foi um dos principais méritos da Ciência. A delimitação e exposição honesta da metodologia de um trabalho científico é o que permite que outros pesquisadores e estudantes repliquem seus achados de forma a valida-los ou refutar suas conclusões.

Bem, isso na teoria.

Na prática, ciência é muito parecida com qualquer outro trabalho: muitas vezes temos que cumprir protocolos e resolver problemas em condições sub-ótimas, em contextos alucinados, em meio a problemas pessoais e profissionais. Ou seja, é uma zona.

Motivado por esse contexto caótico, ontem estourou um hashtag #OverlyHonestMethods no twitter, que seria melhor traduzida como “Métodos Honestos Demais” (“Métodos” faz referência à parte de um artigo científico onde está delimitado o protocolo experimental que foi seguido). Milhares de cientistas e estudantes manifestaram de forma bem humorada situações da parte humana do cotidiano acadêmico.

Eu obviamente me deleitei (e ainda estou me deleitando) com essa HT (que, segundo o Igor Santos, “é como a galera legal cita hashtag a partir de agora”). O Bernardo Esteves da Piauí fez uma compilação e tradução de algumas, mas para os que entendem ingles sugiro visitar aqui e aqui para listas bem maiores e melhores. Mas como os twits não param, aconselho seguir a HT. A diversão é garantida.

Agora, como sou levemente egomaníaco, abaixo vou compilar traduções dos meus twits. Talvez não sejam os melhores (os biólogos moleculares parecem ficar com metade da diversão), mas eles refletem muito do que é a minha vida acadêmica. Obviamente existem hipérboles e sátiras, mas algumas passagens são bastante literais. Deixo para vocês descobrirem quais são quais.

(twits originais estão no link entre parênteses)

“O tempo de duração das gravações variou entre 30-50min. Esse era normalmente o quanto durava minha soneca pós-almoço.” (link

“Nós desenvolvemos uma nova métrica para excluir todos os parâmetros que precisariam ser medidos através de trabalho de campo árduo” (link

“Nós apenas correlacionamos a porra toda e então achamos algumas racionalizações engenhosas na literatura”  (link

“Código está disponível através de pedido, porque nós conseguimos programar em C, mas não temos a menor ideia de como construir uma página da internet”  (link

“Todos os nossos resultados foram não-significantes no nível de alfa=0.05, então nós começamos a aprender estatística bayesiana”  (link

“Nós diminuímos a variância residual em nossa regressão linear aumentando o tamanho dos pontos”  (link

“Por sorte, a curva de acumulo de espécies estabilizou quando um morcego raivoso mordeu minha mão” (link

“As redes de neblina foram abertas das 8pm até 11pm porque a siesta durou um pouco mais naquele dia” (link)  

“O revisor sugeriu um teste de normalidade para o uso de estatísticas não-paramétricas, mas SÉRIO cara, os caracteres tem apenas 2 malditos estados!” (link

“Nós transcendemos a epistemologia Popperiana porque nos demos conta de que nosso trabalho era infalseável”  (link)

Porque a síntese evolutiva não é uma festa do pijama – Uma resposta zangada a um anti-darwinista

Bom, eu já havia previsto que isso iria acontecer em algum momento.

Já a alguns meses venho acompanhando uma discussão no Research Gate (link para me seguir lá aqui) sobre as alternativas ao neo-darwinismo para a compreensão da evolução biológica. Como esperado, essa pergunta foi um imã de criacionistas, com a participação especial do nosso querido Enésio, falando o que ele sempre fala: em algum momento no futuro não-tão distante será lançada uma nova síntese evolutiva, que não será “selecionista” e blablabla. Só faltou a distinção entre fato, Fato e FATO, ou seja lá qual é o chavão que ele sempre usa.

Mas esse não é exatamente sobre o que quero falar no momento. Meu problema principal com essa discussão tem sido com o Dr. Emilio Cervantes, que até onde pude notar é um pesquisador daqui da Argentina, que parece ser algum tipo de botânico*. Desde o começo da discussão, ele tem batido na mesma tecla: neo-darwinismo está errado porque se baseia em um “fantasma semântico”, que é seleção natural. E o porque isso, exatamente? Oras, porque a natureza não tem uma mente para selecionar, logo o termo é contraditório. Obviamente, os criacionistas de plantão bateram palma, sem notar que a ausência de uma mente selecionadora na natureza não é lá uma coisa muito boa para o criacionismo. Ademais, segundo o Dr. Cervantes, Darwin confundiu criação de variantes domesticadas com o que acontece na natureza, e isso fere mais ainda a ideia de seleção natural como tendo qualquer significado.

Enfim, não entrarei em detalhes do resto da discussão, mas colarei abaixo minha última resposta. Em seu comentário anterior, depois de ignorar minhas respostas ou responde-las com ad hominem, Dr. Cervantes alega que é necessário testar a evolução de grupos caso-a-caso, e que não existe uma teoria que explica tudo em biologia. Eu concordo com esses pontos, mas discordo do discurso que ele apresentou. Acho que a minha resposta em si explica muito do que eu penso sobre o assunto e talvez resuma minhas impressões do debate, e da posição anti-darwinista do Dr. Cervantes.

Sem mais delongas:


Bom, eu na verdade concordo com isso, mas por motivos completamente diferentes.

A síntese evolutiva não foi uma festa-do-pijama entre paleontologos, taxonomistas e geneticistas, onde eles calharam de deixar os embriologistas de fora porque eles eram meio estranhos, e na qual eles decidiram “Puxa vida! Vamos apenas dizer que tudo funciona bem em conjunto e ver se cola”.

Ela foi uma unificação precisa de duas teorias (genética mendeliana e neo-darwinismo, sensu Weismann) através dos desenvolvimentos teóricos de genética de populações, e o entendimento de que essas teorias eram consistentes com o que se observa na natureza (incluindo o registro fóssil). Ela não é uma coleção de narrativas adaptacionistas não-testadas, como muitos dos críticos E defensores da síntese costumam acreditar.

O outro lado da moeda é que, sendo um corpo de conhecimento teórico especifico, ele só se aplica em casos nos quais suas premissas são verdadeiras. Então, ela não é onipotente, e todo mundo que usa esse arcabouço teórico sabe para que ele serve, como testar previsões com ele e que tipo de dado é necessário para que ele possa funcionar. Quando premissas e demandas teóricas falham, o mesmo ocorre com a teoria.

E é verdade que provavelmente não existe uma teoria unificadora em biologia. Por exemplo, qualquer teoria de ontogenia não vai se aplicar a organismos sem ontogenia, como bactérias. Mas isso não significa que teorias ontogenéticas são desprovidas de valor, longe disso. Ela explica o que ela pode de fato testar em cenários que se adequam à suas premissas.

O poder da síntese é ter premissas gerais como “herança genética mendeliana”, algo que é verdade para bactéria e para humanos. Mas fora isso, esses dois grupos diferem em quase tudo (ex: bactéria tem consideravel transferencia genética horizontal, humanos são diploides, etc) o que nos faz reconhecer que talvez existam mais premissas que podem ser incluidas em nossos modelos para melhorar seu poder explanatório.

Geralmente, todos os proponentes da síntese estendida não estão chamando por uma rejeição da síntese evolutiva. O que eles estão fazendo é chamar para a inclusão de mais fenômenos que não se adequam aos modelos clássicos. Essa inclusão não é apenas “vamos simplesmente colocar tudo nos livros texto e encerrar o dia”, mas o desenvolvimento teórico que está voltado à integração da síntese com esses fenômenos  Alguns são relativamente fáceis de integrar, como topologias adaptativas multidimensionais e construção de nicho, outras não são tão fáceis, como ontogenia. Se isso mudar nossas equações e previsões teóricas, que assim seja! Mudança baseada em evidencia é melhor que estagnação por negação de evidencias. Conscientização para essas questões é importante, iconoclastia má-orientada não.

E, não importa o que façamos, qualquer teoria vai ser necessariamente limitada. Mesmo que nós achemos um modelo que seja útil para todas as espécies que tenhamos estudado, existem potencialmente centenas de milhares mais que ainda não descobrimos, muito menos estudamos. As recentes estimativas são que conhecemos apenas 13% da biodiversidade presente. Jogar fora qualquer teoria biológica porque ela tenta ser ampla e defender o estudo de casos isolados é, na melhor das hipóteses, contraditório no presente contexto.

Mas, se o ponto é mesmo que “seleção natural” é um conceito vazio, então eu sugeriria direcionar a sua análise semântica para temos como “buracos negros” (que não são nem buracos, nem negros), o uso de “evidente” em matemática (nada que é evidente precisa de demostração) e “afinidades” em química (elementos não tem preferências). Na verdade, esse ultimo exemplo foi levantado por Darwin, quando a mesma objeção que você levantou chegou a ele: que seleção natural era contraditória, porque apenas criadores podem selecionar. Palavras podem ter mais de um significado e, sim, isso pode ser confuso (veja a ambiguidade do termo “singularidade” e “Big Bang” em cosmologia). Isso é tudo verdade. Mas dizer “por isso elas estão erradas”, é falacioso.

Darwin também apontou que sua idéias foi derivada da observação de criadores, mas ele dispendeu uma grande quantidade de páginas explicando como isso poderia ser atingido na natureza, e é ai que dinâmicas Maltusianas entrem na jogada. A relação entre seleção natural e artificial é, para mim, evidente partindo de uma leitura do Origens das Espécies. É uma relação de analogia, e não de identidade. Os principais filósofos da evolução parecem concordar comigo.

Nós podemos ter uma discussão produtiva sobre o uso de termos, e quais seriam os melhores de serem usados. Isso é difícil, pois linguagem é uma coisa complicada. Ela evolui por si próprio. Mas nós tivemos sucessos moderados com termos como “macaco” e “mais evoluído”. Mas termos e teorias são coisas diferentes.

Resumindo, sim, nós devemos ser específicos sobre o que nós estamos falando e tornar bem claro o que a teoria sintética é, o que ela deve explicar e o como ela faz isso. Na prática, isso deve levar a mais cautela no pronunciamento de afirmações não-substanciadas sobre adaptação (ou sobre qualquer outra coisa), e isso é bom. Pelo menos é isso que espero.


* Quando comentei o caso para um colega, que permanecerá inominado, ele comentou “aposto meu pinto que ele é ecologo ou botanico“. Não é preciso dizer que ele manteve o pinto dele.

Referência

Mora, C., Tittensor, D., Adl, S., Simpson, A., & Worm, B. (2011). How Many Species Are There on Earth and in the Ocean? PLoS Biology, 9 (8) DOI: 10.1371/journal.pbio.1001127

Criacionismo no Research Gate?

Eu gosto de bate-bocas online tanto quanto o próximo detentor de banda-larga com tempo demais nas mãos, mas acredito que haja lugar e tempo para tudo.

Não é que hoje, para minha surpresa, ao abrir minha conta no ResearchGate me deparo com os seguintes posts


*
Quais são as ‘provas’ da Evolução??
Bem, eu gostaria de explanações formais, e não comentários desconexos..

Porque a teoria da evolução é científica?
Usando a premissa da logica indutiva:

Se a probabilidade matemática sobre uma teoria é alta, ela é científica. Se é pequena ou tende a zero, ela não é.
*

Essas pessoas só podem estar de brincadeira.

Confesso que estou bastante decepcionado com o ResearchGate. Meu objetivo ao entrar nesta rede era, talvez, tentar participar de debates mais acadêmicos e fazer contatos profissionais. Porém o site sofre do mesmo problema que o Academia.edu: falta gente. (clique aqui para ver uma exposição mais completa sobre a rede social).

E agora isso. Eu esperava que o ResearchGate estivesse livre de criacionistas, ou que talvez os tivesse em extrema raridade. Eu posso estar completamente equivocado no meu julgamento, apesar de eu achar bastante improvável. É por esse motivo que só estou emitindo um alerta de DEFCON 4.

Visto que essas questões foram postadas em tópicos com um número relativamente razoável de seguidores, talvez fosse sábio da minha parte simplesmente deixar passar. Mas nós sabemos que isso não vai acontecer. Eu já postei respostas (bastante exploratórias e não-confrontadoras, eu prometo) e convido quem participa da rede à fazer o mesmo aqui e aqui, respectivamente.