Genealogia e o Implexo dos ascendentes: a genética dos casamentos consanguíneos.

Árvore genealógica de Maria Justina e seu irmão Johann Maximilian zum Jüngen,
Cada indivíduo tem dois pais, quatro avós, oito bisavós, 16 trisavós e assim sucessivamente.

No estudo da genealogia existe um fenômeno bastante interessante chamado implexo, relacionado à disparidade entre o número real e o teórico de antepassados (ascendentes) que uma pessoa possui. Isso porque, matematicamente, cada indivíduo que habita este planeta tem dois pais, quatro avós, oito bisavós, 16 trisavós, 32 tetravós e assim sucessivamente.

Só que ao fazermos este cálculo, logo nos deparamos com uma contradição bem óbvia que é a impossibilidade de haver um número tão grande de antepassados vivendo na Terra. Não só porque a população mundial era muito menor do que a de hoje, mas porque em poucas gerações chegamos a números muito maiores do que o planeta é capaz de suportar.

Por exemplo, se consideramos que cada geração tem, em média, entre 25 e 30 anos, uma pessoa nascida na metade do século 20 teria mais de dois BILHÕES de triacontavós vivendo mil anos atrás, no início do século XI. Um número significativo, mas que ainda está dentro das possibilidades do planeta, embora só tenhamos atingido esta quantidade de pessoas há menos de 100 anos. Mas, e se voltarmos ao início do século IV?

O matemático Malba Tahan calculou que esse mesmo indivíduo nascido no século 20 teria cerca de 18.676.506.394.745.634.816 antepassados que viveram ao mesmo tempo entre os anos 301 e 400, um número tão alto que eu nem sei como pronunciar. Para se ter uma ideia, esse tanto de gente seria suficiente para cobrir 7.400 planetas Terra ou, se colocadas lado a lado, formar uma fila que iria da Terra até o sol 128 milhões de vezes.

Como isso é possível? A resposta simples e óbvia demonstra uma realidade muito mais frequente do que alguns de nós gostariam de admitir. O casamento consanguíneo – também chamado de incesto – desempenhou papel fundamental no crescimento da população humana e foi essencial para que chegássemos em 2021 com mais de 7 bilhões de habitantes no planeta.

E quais são as consequências disso?

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay
Filhos de casais aparentados apresentam risco maior de desenvolver doenças com herança recessiva.

Os motivos para essa realidade são vários: Manter o poder e o dinheiro dentro da família, dar continuidade às mesmas crenças e à posição social ou falta de opção em comunidades com um número reduzido de indivíduos e pouca mobilidade geográfica. A verdade é que a História está permeada de casamentos entre primas e primos, tios e sobrinhos e até mesmo irmãs com irmãos e ainda hoje estima-se que em torno de 10% da população mundial seja composta por casais aparentados ou seus filhos.

E, ao contrário do que diz o senso comum, casamentos consanguíneos não significam um destino de malformações e sofrimento para os descendentes. O que acontece é que casais aparentados apresentam um risco maior para o desenvolvimento de doenças com herança recessiva, ou seja, aquelas causadas por genes que, de forma geral, ficam escondidos diante da presença de um gene dominante. Como um bebê recebe metade de seu material genético de cada um dos pais, ele só vai desenvolver uma doença com herança recessiva se ambos possuírem aquele gene, algo muito mais provável de acontecer se ambos forem da mesma família.

Por isso, enquanto os filhos de casais não consanguíneos têm uma chance entre 2 e 3% de apresentar alguma anomalia congênita importante, a reprodução entre primos de primeiro grau tem um risco de até 6 ou 7% de resultarem em anomalias, valor que vai diminuindo com consanguinidades mais distantes, como primos de segundo ou terceiro graus e aumentando para consanguinidades mais próximas, como tios e sobrinhos. Ou seja, não é um número tão alto quanto se imagina, mas também não é algo que possa ser ignorado.

O risco maior acontece quando a prática de endogamia se torna, digamos, uma tradição na família, o que faz com que os genes sejam muito mais parecidos do que o parentesco inicialmente aponta. O caso mais conhecido é o da dinastia Habsburgo, da Europa. Ao longo de gerações, eles promoveram o casamento entre parentes como uma forma de manter o domínio e influência sobre boa parte do continente e de seus territórios além-mar, estratégia que deu muito certo no âmbito político.

Para se ter uma ideia, entre os séculos XIII e XX, a família foi soberana de Estados que iam da Áustria ao Sacro Império Romano-Germânico, da Espanha aos Países Baixos, de Nápoles, Sicília e Sardenha à Boêmia, Hungria e Croácia, além do Ducado de Milão e de Portugal. Já do ponto de vista genético, os benefícios deixaram a desejar. O prognatismo mandibular foi uma das características passadas ao longo das gerações para centenas de membros da família. Nessa condição, os ossos da mandíbula se projetam para a frente de forma inadequada, com consequências que vão muito além de uma mera questão estética.  

Efeitos da endogamia entre os Habsburgo

Retrato de Carlos II, da dinastia Habsburgo
Os pais de Carlos II, último rei das Áustrias, eram tio e sobrinha, mas seus genes eram como o de irmãos.

Carlos V, Sacro Imperador Romano e rei da Espanha no século XVI tinha uma mandíbula tão desproporcional que seus dentes de cima nunca se encontravam com os de baixo, causando muita dificuldade para falar e para comer. E uma pesquisa publicada em 2019 no Annals of Human Biology concluiu que o problema era sim causado pela endogamia da família. Por meio da análise de retratos dos monarcas e de documentos históricos, eles constataram que quanto mais próxima era a relação de parentesco entre os pais, maior era a prognatismo do filho.

Mas esse foi um problema pequeno quando comparado ao de Carlos II, o último rei das Áustrias. Além do maxilar característico da família e do rosto “caído”, ele sofria de uma série de mazelas como fraqueza muscular, vômitos, diarreias, edemas, ejaculação precoce e impotência, além de ter demorado anos para aprender a andar e falar. O pai de Carlos II era tio de sua mãe, mas com a quantidade de casamentos consanguíneos que vinham acontecendo ao longo das gerações – mais de 80% – seus genes eram como o de irmãos.

Ainda assim, Carlos II foi um dos “afortunados”, pois viveu até os 38 anos e conseguiu governar seu império. Muitas crianças da família, inclusive vários de seus irmãos, não tiveram a mesma “sorte”, e morreram antes de chegar à vida adulta, contribuindo para manter o índice de mortalidade infantil na família maior do que o registrado entre os moradores de vilarejos espanhóis no mesmo período.

Referências

ANSEDE, Manuel. Sexo entre parentes causou deformidade facial dos reis espanhóis dos séculos passados. (El País)

BITTLES, A.H., BLACK, M.L. Consanguinity, human evolution, and complex deseases. (PNAS)

CUMMINS, Eleanor. Go ahead, marry your cousin – it’s not that bad for your future kids (Popular Science)

LOPES, Reinaldo J. Casamento entre parentes extinguiu linhagem de reis europeus, diz estudo. (G1)

PENA, Sergio D. “Passione” e a genética de primos no altar. (Ciência Hoje)

SBGM. Quais são os riscos genéticos de casamentos consanguíneos? (Aqui)

Teew et. al. Consanguineous marriage and reproductive risk: attitudes and understanding of ethnic groups practising consanguinity in Western society. (European Journal of Human Genetics)

Vilas, et. al. Is the “Habsburg jaw” related to inbreeding? (Annals of Human Biology)

____ Implexo. (Brava Gente Brasileira).

Sobre Paula Penedo P. de Carvalho

Jornalista de ciência e tecnologia, carioca não praticante e feminista desde criancinha. Cursa atualmente o mestrado em Divulgação Científica e Cultural do Labjor / Unicamp, onde tenta finalizar sua dissertação sobre a trajetória de mulheres na botânica.
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