Itard vs. Pinel: o problema Tostines na aquisição da linguagem

 Uma criança que nunca teve contato com uma língua humana nem se relacionou com outros seres humanos pode chegar a falar?

Esta é uma das grandes questões sobre a linguagem que se coloca desde a antiguidade e que Fernanda Mendes (Pós-doutoranda, IEL, UNICAMP) nos apresenta a partir da análise do filme O garoto selvagem.

O filme L’Enfant Sauvage [1] (O garoto selvagem), lançado em 1970 pelo aclamado cineasta francês François Truffaut, se constitui como a parte final de uma sutil trilogia temática, que se inicia em 1959, com o lançamento de Les quatre cent coup (Os incompreendidos), seguida de Fahreinheit 451, lançado em 1966.

Em cada um desses três filmes, o autor toma a linha temática dos recusados pela sociedade, como apontaram Gonçalves & Peixoto (2000)[2], por um viés diferente. Enquanto no primeiro filme o personagem é rejeitado pela sociedade por falta de amor e ternura, no segundo, o personagem é recusado por ela por falta de cultura. No terceiro, por fim, o personagem não se insere socialmente por uma falta muito mais radical, a linguagem.

O filme, que se baseia em dois livros [3, 4] do psiquiatra francês Jean Itard, conta o caso verídico de um garoto capturado, em 1798, num bosque depois de ter vivido cerca de 12 anos afastado do convívio social. Victor de Aveyron[5], como ele foi chamado pelo seu tutor, é apenas mais uma entre as inúmeras crianças selvagens que já foram encontradas e registradas.

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O trabalho de Gonçalves & Peixoto (2000), por exemplo, exibe uma tabela com 53 registros de crianças selvagens encontradas ao redor do mundo desde 1344 até 1961, estando, entre elas, além dos chamados meninos lobo ou meninos urso, um outro caso célebre também presente nas telonas de cinema: Kaspar Hauser.

Quando encontrado, Victor não andava como bípede, não falava, não lia e muito menos escrevia. Por apresentar sérios problemas linguísticos, o garoto selvagem foi considerado portador de deficiência mental pelo mais célebre psiquiatra da época, Pinel, e, por isso, chegou a ficar internado no famoso hospício parisiense Bicêtre até que fosse resgatado por Itard.

Neste momento, em que Pinel e Itard discutem sobre a origem dos problemas do garoto, o filme apresenta ao expectador um dilema paradoxal do ponto de vista linguístico e, tal qual o famoso comercial transmitido na televisão brasileira nos anos 80 que gerou a expressão problema Tostines , deixa a pergunta no ar: o garoto não teve acesso à linguagem porque ele não fala, ou ele não fala porque não teve acesso à linguagem?

Por um lado, do ponto de vista de Pinel, que considerava que Victor tivesse algum tipo de deficiência, o garoto teria sido vítima de abandono por apresentar, desde muito cedo, algum traço atípico no desenvolvimento cognitivo e, consequentemente, não seria capaz de adquirir nenhum tipo de linguagem, dada essa sua deficiência.

Por outro lado, do ponto de vista de Itard, que não considerava que Victor apresentasse qualquer tipo de deficiência, o garoto teria sido vítima de abandono por outras questões – tal como ser um filho ilegítimo – e foi justamente esse isolamento que o impediu de desenvolver suas capacidades cognitivas e linguísticas de forma adequada.

Assim, de acordo com o último, se Victor tivesse crescido em um ambiente linguisticamente favorável, isto é, se não tivesse sido abandonado e isolado de todo o contato com outras pessoas – que se constituem, entre outras coisas, como fontes de input linguístico –, ele teria plena capacidade de adquirir uma língua tanto quanto qualquer outra criança com desenvolvimento típico, uma vez que ele apresentou grandes avanços em relação a outras áreas de desenvolvimento cognitivo, durante o tempo em que esteve com Itard.

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Então, o que impediria, em especial, o desenvolvimento da linguagem de Victor, e não de outras áreas cognitivas do garoto selvagem?

[simple_tooltip content=’Teoria linguística fundada nos anos 50 por Noam Chomsky.’]Gerativismo[/simple_tooltip], uma das abordagens linguísticas modernas, dando base científica ao pensamento apresentado por Itard no filme, explica esses fatos com base no que se chama de período crítico.

Segundo a teoria, esse período, que vai do nascimento até a puberdade, demarcaria um tempo em que a criança estaria biologicamente apta para a aquisição de linguagem. Assim, da mesma forma que o período crítico explicaria a não aquisição de nenhuma língua por parte das crianças selvagens, uma vez que elas nunca foram expostas a nenhuma língua até a puberdade, ele também explica porque é tão mais difícil aprender uma língua estrangeira quando se é mais velho.

REFERÊNCIAS

[1] L’Enfant Sauvage. Direção: François Truffaut. Produção: Jean-François Stévenin, Claude Miller. Roteiro: François Truffault, Jean Gruault. França: Les Films du Carrose, Artistes Auteurs Associé (AAA), 1970. Drama (86 min). Disponível em: http://www.imdb.com/title/tt0064285/

[2] GONÇALVES, J. e PEIXOTO, M. A. O menino selvagem: estudo de caso de uma criança selvagem retratado no filme “O menino selvagem”. Universidade de Lisboa, 2000.

[3] ITARD, J. M. G. De l’education d’un homme sauvage ou des premiers developpemens physiques et moraux du jeune sauvage de l’Aveyron. Goujon. Paris, 1801. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8626267t/f1.image

[4] ITARD, J. M. G. Rapports et memoires sur le sauvage de l’Aveyron. Tradução inglesa con introducção e notas de G. y M. Humprey: The wild boy of Aveyron. Century. New York, 1932. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5752734w

[5] Victor, porque esse foi o primeiro nome próprio ao qual ele reagiu, dado que ele mostrava uma atenção maior às palavras que continham o som [o], que pode ser “traduzido” de uma maneira menos técnica por ô – tal qual a palavra que significa água em francês: eau, pronunciada apenas como [o]. Aveyron, porque esse era o nome da cidade onde ele foi encontrado.

2 Comentários

  1. Olá Fernanda, gostei muito do seu post.
    Uma vez, li um texto sobre as "meninas lobo", mas não conhecia os filmes de François Truffaut.
    Interessante essa questão do 'período crítico'. Realmente, quando pensamos no aprendizado de línguas, ele se dá de forma mais fácil na infância.

  2. Olá, Liz! Fico feliz por você ter gostado do post!
    De fato, é uma questão muito interessante! E, além dela, há ainda muitos outros fatos no processo de aquisição da linguagem que são bastante surpreendentes. Caso você tenha interesse em se aprofundar no assunto, posso te indicar alguns textos 🙂

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