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Filosofia e Divulgação Científica

Como compreendemos e nos comunicamos com o conhecimento e com as relações humanas?

Alguns pontos de vista  (parte 1) – Por Vinícius Nunes Alves

O título pareceu complicado?

Tim-Burton: The nightmare before christmas – Jack Skellington

Vamos tentar descomplicar um livro que tem relação com esse título a partir de uma resenha. Mas, para começar, vamos falar um pouco sobre o autor e uma visão geral do livro.

O Humberto Maturana

Foto: Cortesia Instituto de Formação Matríztica / BBC News Brasil 

Para Humberto Maturana, a linguagem caracteriza o ser humano e é nela que toda relação social ocorre. O autor ainda complementa que a linguagem se funda especialmente nas emoções que estão dispostas entre os indivíduos. Mas quem é Maturana?

Ele nasceu em Santiago (Chile), no ano 1928, é um biólogo e neurocientista chileno. Também é criador da teoria da autopoiese e da biologia do conhecer. Atualmente trabalha como professor e pesquisador na Escola Matríztica de Santiago, onde se dedica à temática da Matriz Biológico-cultural da Existência Humana.

Em Emoções e Linguagem na Educação e na Política (2002), Humberto Maturana contesta a visão comum de que ser mais racional é a melhor forma para entender e lidar com a realidade à nossa volta.  O livro sustenta a ideia de que não existe acesso ou leitura de uma realidade que seja só racional ou universal.

Para Maturana, toda realidade é dependente do observador, e este, por sua vez, tem a sua cultura e as suas emoções quando expõe seus argumentos sobre algum tema.

A disposição emocional que as pessoas estão em uma interação é o que define se elas vão se aceitar ou não, ou seja, se a interação será social ou anti-social. A obra em questão propõe que os seres humanos têm potencial para se reencontrarem consigo próprios e, assim, reencontrarem-se entre si. Tal utopia deve ser buscada especialmente em interações na educação e na política, conforme o autor defende  ao longo do livro.  

Emoções e Linguagem na Educação e na Política

Imagem: capa do livro pela editora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

O começo . . .

O primeiro capítulo aborda a educação na perspectiva da biologia do conhecimento. Para isso, o autor ressalta que o projeto de vida que a geração dele teve ou tem é, provavelmente, diferente do projeto de vida que a geração jovem de hoje possui.

Embora a educação se mantenha com responsabilidades, como a de contribuir para o desenvolvimento do país e para o fim da desigualdade social, as formas como os estudantes são convocados a operarem na sociedade são atualmente diferentes. 

Como assim?

Segundo Maturana, preparar-se para devolver ao Chile o que se recebeu dele e trabalhar para acabar com a pobreza é diferente do que é esperado dos jovens hoje em dia, no caso, preparar-se para competir no mercado de trabalho, muitas vezes se negando a empatia social. Embora Maturana esteja fazendo referência ao seu país, pode-se estender essa preocupação do autor para o contexto educacional brasileiro.

Segundo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ministério da Educação (MEC) de 2016 na área das Linguagens para o Ensino Fundamental, as próprias profissões da juventude atual poderão ser diferentes das profissões estabelecidas no mercado até então:

“uma parte considerável das crianças e jovens que estão na escola hoje vai exercer profissões que ainda nem existem e se deparar com problemas de diferentes ordens e que podem requerer diferentes habilidades, um repertório de experiências e práticas e o domínio de ferramentas que a vivência dessa diversificação pode favorecer”. 

Algumas formas de pensar a competição

A competição como forma de negação do outro se funda em uma ideologia do autor que é expressa quando ele já assume que não tem como existir um mercado da livre e sadia competição.

O neurobiólogo destaca que os encontros mercantis não são homogêneos, existindo situações que os atores são afinados e pertencem a um mundo em comum e situações que os atores são indiferentes entre si e não pertencem a uma lógica comum, de forma que o livre mercado contribui para aceitar alguns e negar outros.

Mas o que é ideologia?

De modo simples, ideologia é o conjunto de ideias e representações já constituídas pelas quais os cidadãos procuram explicar e compreender sua própria vida individual e social, define a filósofa Marilena Chaui (1997). 

Diferentemente da Filosofia, se considerarmos a Análise de Discurso, uma linha de pesquisa das ciências humanas, a ideologia é o mecanismo de produção de evidências subjetivas. 

Conforme Michel Pêcheux, linguista, filósofo e um dos fundadores da Análise de Discurso, não se pode falar no lugar do outro, pois cada discurso tem um sujeito e cada sujeito tem uma ideologia, sendo que o sujeito é resultado do processo de interpelação ideológica. 

Quando o sujeito Maturana discursa sobre competição, conforme vimos acima, opera a interpretação de que não é possível existir uma competição sadia na sociedade. Mas esse entendimento sobre competição  pode não ser compartilhado nem por outros autores também considerados progressistas e humanitários.

Por exemplo, Carl Sagan – astrofísico  e expoente divulgador científico do século XX – divide o sentido de competição na sociedade, considerando a existência de competição maléfica e de competição benéfica. Em um excerto do livro Bilhões e bilhões do Sagan consta: 

“Embora tenhamos de cooperar num grau sem precedentes, não ataco a competição sadia. […] Vamos competir na arte e na ciência, na música e na literatura, na inovação tecnológica. Vamos criar uma corrida de honestidade”. 

Jada Pinkett Smith Fonte: @redtabletalk

Para qual tipo de público Maturana escreveu?

É válido também ressaltar que o Maturana escreve para um público alvo que é a juventude chilena. Nesse sentido, o neurobiólogo imagina que esse tipo de leitor, em geral, compreende as premissas que ele apresenta.

Em outras palavras, o neurobiólogo pratica o mecanismo de antecipação que Eni Orlandi enuncia em seu capítulo Os efeitos de leitura na relação discurso e texto:

“[…] o sujeito-autor projeta-se imaginariamente no lugar em que o outro o espera com sua escuta e, assim, ‘guiado’ por esse imaginário, constitui, na textualidade, um leitor virtual que lhe corresponde, como seu duplo”.

Há pessoas que são só emoção e outras que são só razão?

Outro ponto central que Maturana desenvolve nesse primeiro capítulo é que

“vivemos uma cultura que desvaloriza as emoções, e não vemos o entrelaçamento cotidiano entre razão e emoção, que constitui nosso viver humano, e não nos damos conta de que todo sistema racional tem um fundamento emocional”.

Para o autor, emoções não são apenas sentimentos, mas sim disposições que definem os domínios de ação.

Por exemplo, as diferentes ideologias políticas também se baseiam em premissas que as pessoas aceitam como válidas e tratam como pontos de partida em uma conversa sobre política. Isso, por sua vez, já implica uma emoção de aceitação pelas premissas e, consequentemente, uma tendência de manter as mesmas ideologias.

No entendimento de Maturana, nunca brigamos quando o desacordo é apenas lógico, isto é, quando o desacordo surge de um erro ao aplicar as coerências operacionais derivadas de premissas fundamentais aceitas por todas as pessoas desde o início. Por outro lado, discussões que sustentam diferentes ideologias facilmente geram conflitos, pois as premissas fundamentais das quais cada um parte são diferentes e estão sob domínios emocionais diferentes.  

Uma dica sobre relações interpessoais. Você abraça?

Uma das formas de se evitar conflitos nas relações interpessoais com diferentes premissas e emoções pode ser o que o livro A mente organizada, do neurocientista e psicólogo cognitivo Daniel Levitin, traz:

“os atos de fala indireta constituem uma poderosa cola social que permite a nossa convivência. […] o ato de fala indireta pode ser considerado um ato lúdico, um convite de cooperação num jogo de pique-esconde verbal […] O filósofo John Searle diz que o mecanismo que permite a eficácia da fala indireta é que ela evoca, tanto no falante quanto no ouvinte, uma representação compartilhada do mundo”.

Tal fala indireta também pode ter equivalência na análise de discurso em casos que se identifica a necessidade e a presença do não dito dentro do que é dito. 

Aproximando ideias do Humberto Maturana com a Análise de Discurso

Maturana ainda complementa que o racional está presente nos argumentos (válidos ou falaciosos) que construímos na linguagem, mas que até esses argumentos racionais que defendemos ou justificamos possuem uma emoção fundante por trás.

Com relação a isso, Eni Orlandi vai mais longe em seu artigo Discurso e Argumentação: um observatório do político, no qual ela analisa que a própria argumentação se produz sob o efeito da sua ilusão subjetiva afetada pela vontade da verdade conduzida pelas intenções do sujeito que estão sob influência da subjetividade e da tentação da verdade.  

Uma maneira redutora de conceber a linguagem humana?

Uma das teorias centrais do neurobiólogo é que a linguagem não é apenas uma forma de comunicação humana, mas a linguagem só ocorre quando há duas ou mais pessoas coordenando ações consensualmente em uma dada interação. Ou seja,

“linguagem está relacionada com coordenações de ação, mas não com qualquer coordenação de ação, apenas com coordenação de ações consensuais”.

E para haver uma coordenação de ações consensuais, é preciso que as pessoas em interação aceitem o outro como legítimo outro na convivência. Partindo dessa ideia, é razoável sintetizar que para Maturana nem toda convivência é social.

Provavelmente é por isso que o neurobiólogo não poupa palavras para defender no livro a importância da educação formal para além das funções conteudistas, uma  educação que se configure como um ambiente que estimule os jovens a experimentarem a aceitação do outro e de si próprios na convivência.

Chris Pratt Reaction GIF By @sahlooter

Contudo, a maneira de Maturana conceber a linguagem e, subsequentemente, a relação social pode ser considerada muito específica ou, em alguma medida, redutora.

Por exemplo, para Análise de Discurso, o consenso na linguagem pode ser apenas aparente ou forjado e, também, o âmbito social é feito de divisões. Por outro lado, tanto Maturana quanto a linguista Eni Orlandi da Análise de Discurso reconhecem que a linguagem não é apenas um instrumento de comunicação humanas, sim, um fenômeno social.

Para Orlandi, linguagem é uma mediação simbólica que se funda em dadas ideologias, histórias e interpretações.

Está achando interessante?

Então não perca a segunda parte da resenha do livro no blog Mindflow. Nesta segunta parte vou tratar sobre os próximos capítulos e farei um fechamento não unidirecional.

Relações como linguagem, emoções e ética voltarão a aparecer. Também vou introduzir o entendimento do autor (e não só do autor) sobre a interação da ciência com objetividade e subjetividade, e finalizarei pincelando ideias sobre relações sociais e cidadania. Até a próxima!     

Para Saber Mais

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base nacional comum curricular. Brasília, DF, 2016. 

CHAUI, Marilena. O que é ideologia. 42ª ed. Ed. Brasiliensis, 1997. 

LEVITIN, D. A Mente Organizada: como pensar com clareza na era da sobrecarga de informação. Ed. Objetiva, 2015. 

ORLANDI, E.P. Discurso e Argumentação: um observatório do político. Ed. Fórum Linguístico, 1998. 

ORLANDI, E.P. Interpretação. Ed. Pontes, 2004.

ORLANDI, E.P. Os efeitos de leitura na relação discurso e texto. In: Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos. Ed. Pontes, 2ª edição, 2005.  

SAGAN, C. Bilhões e bilhões: reflexões sobre vida e morte na virada do milênio. Ed. Companhia de Bolso, 2008. 

Sobre o autor:

Vinícius Nunes Alves é licenciado e bacharel em Ciências Biológicas pelo IBB/UNESP, mestre em Ecologia e Conservação de Recursos Naturais pela UFU. Atualmente é estudante de especialização em Jornalismo Científico pelo Labjor/UNICAMP e colunista do jornal Notícias Botucatu.

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