Escalas musicais da série harmônica

José Fornari (Tuti) – 17 de abril de 2019

fornari @ unicamp . br


Como vimos no artigo anterior, o sistema de afinação temperado passou a ser adotado pelos instrumentos musicais harmônicos ocidentais a fim de permitir com que estes não ficassem atrelados a uma única tonalidade (ou que tivessem que ser afinados novamente, toda vez que fossem tocar peças musicais em diferentes tonalidades). Esta mudança de sistema de afinação impactou tanto no modo de escutar como no de fazer música. Para os ouvintes da época, acostumados aos intervalos justos (dados pela série harmônica) a música executada na escala cromática afinada no sistema temperado provavelmente soava levemente desafinada. No entanto, as liberdade de transposição tonal que o sistema temperado proveio com o passar do tempo suplantou esta pequena aresta perceptual. Compositores que adotaram o sistema temperado também passaram a explorar novas possibilidades de transposição da melodia e da harmonia, dentro de uma mesma peça musical, fato este que se evidenciou no período clássico europeu, no século 18 DC, que precede o início da implantação do sistema temperado de afinação. No entanto, a série harmônica é, e continua sendo, o principal fenômeno acústico de criação da escala musical, onde a afinação temperada é uma estratégia inteligente de permitir, através da distribuição de uma pequena desafinação por todos os intervalos da escala (com escessão da oitava), que a arte musical expandisse e transpusesse a fronteira estética imposta pela afinação justa.

Vimos anteriormente que a série harmônica decorre da ressonância regular de corpos materiais. Temos a série harmônica evidenciada na própria voz humana (em especial, no som das vogais) e outros sons tonais que ocorrem naturalmente. Ao longo do desenvolvimento musical alguns objetos passaram a ser construídos de forma a ressaltar tais modos de vibração regulares e estacionários, como é caso de instrumentos musicais tradicionais da orquestra, normalmente construídos a partir de cordas retesadas ou de colunas de ar dentro de tubos (abertos ou fechados). O primeiro instrumento musical que se tem registro arqueológico, utilizando esse tipo de técnica, é a flauta de Divje Babe, datada do período paleolítico superior, há cerca de 40 séculos atrás; mesma época do surgimento dos primeiros seres humanos com a modernidade anatômica e cognitiva que ainda temos hoje em dia. Esta flauta é feita de osso do fêmur de um urso jovem. Foram feitas diversas réplicas dessa flauta, por Matija Turk (que a batizou de “Neanderthal Bone Flute”) em colaboração com o musicólogo Ljubenque Dimkaroski. Estas réplicas sugerem que a flauta original era capaz de reproduzir uma escala diatônica de cerca de 2 oitavas e meia.

A flauta de Divje Babe, datada de cerca de 40 séculos atrás (do período paleolítico superior). Fonte: http://www.divje-babe.si/en/the-neanderthal-flute/

Como dito anteriormente, estes modos estacionários geram variações regulares de compressão e expansão da pressão acústica que são percebidas pela audição como som tonal. Este fenômeno compõem a base da formação das primeiras escalas musicais. As frequências de ressonância de tais modos são chamadas de harmônicos. Rememorando, na série harmônica, a razão entre a frequência do primeiro e do segundo harmônico é de 2/1 equivalente ao intervalo musical de 1 oitava. Do segundo para o terceiro harmônico, a razão de frequência é de 3/2, onde ambos os harmônicos estão separados por um intervalo de quinta justa. Entre o terceiro e o quarto harmônico, a razão é de 4/3 e ambos estão separados pelo intervalo de uma quarta justa. Entre o quarto e o quinto harmônico, a razão 5/4, e ambos estão separados por um intervalo de uma terça maior. Entre o quinto e o sexto harmônico, a razão é 6/5 e o intervalo é assim equivalente a uma terça menor.

Serie harmonica no pentagrama. Fonte: http://www.wikiwand.com/en/Harmonic_series_(music)

Estamos aqui utilizando novamente a conhecida notação de notas em cifras, onde temos a seguinte correspondência entre as notas:

Nota

Cifra

C

D

Mi

E

F

Sol

G

A

Si

B

Quando acrescentamos um número à direita da letra, estamos nos referindo à sua oitava. Por exemplo, C4 é o Dó na oitava central do piano, enquanto que C1 é o Dó localizado 3 oitavas abaixo deste. Desconsiderando as repetições de oitava do segundo e do quarto harmônico, devido ao fato destas serem perceptualmente muito similares, e reduzindo os intervalos dentro de uma única oitava (por exemplo, o intervalo entre C1 e E2 é considerado como sendo de uma terça maior, e não o de uma décima) temos que os primeiros dois harmônicos da série, cuja tonalidade é de fato distinta do harmônico fundamental, são o terceiro harmônico (intervalo de quinta, em relação à fundamental) e o quinto harmônico (intervalo de terça maior, em relação à fundamental).

Como curiosidade, é interessante mencionar que a ideia de utilizar letras para representar notas musicais é atribuída a Boécio, embora este pesquisador medieval atribuísse letras diferentes para notas separadas por oitavas. Por exemplo, se para a primeira nota do piano (um Lá) fosse desse modo atribuída a letra A4, então para o Lá uma oitava acima, teria-se que atribuir a letra H (ao invés de A5).

Percebe-se no entanto que os intervalos entre as notas da escala formada pelas cifras não é uniforme. Entre A4 e B4, por exemplo, tem-se 2 semitons (equivalente a 1 tom). Porém, entre B4 e C5, tem-se um semitom. Esta organização representa um modo menor (o modo eólio) da escala conhecida como diatônica (A-B-C-D-E-F-G). Já partindo-se de C, tem-se a escala diatônica maior conforme a conhecemos atualmente, formada por 2 tetracordes iguais (formados pelos intervalos tom-tom-semitom) e separados por um tom. Representando cada semitom por 1 asterísco, tem-se, como primeiro tetracorde: C**D**E*F e como segundo tetracorde: G**A**B*C. Apesar de pouco intuitiva em sua explicação, esta é uma escala fundamental da música ocidental, que por este motivo, foi até grafada no pentagrama musical moderno, de 5 linhas (colocando as notas em sequência no pentagrama, tem-se naturalmente a formação de uma escala diatônica). Como se viu aqui, esta tem a sua origem profundamente embasada na série harmônica.

A escala diatônica maior, formada pelos 2 tetracordes.

Partindo da nota C, seu terceiro harmônico (uma quinta justa), que é o primeiro harmônico perceptualmente relevante em relação à fundamental, equivale à nota G. Partindo de G, sua quinta é o D. Do mesmo modo, a quinta de D é A, a quinta de A é E, e a quinta de E é B. Colocando em ordem cromática (ignorando diferenças de oitava) tem-se a seguinte sequência formada por este ciclo de quintas: C, D, E, G, A, B. Esta escala é quase que idêntica à escala diatônica atual, faltando apenas a nota F, que é o seu sétimo grau. Conforme mencionado anteriormente, Guido D’Arezzo, a quem a notação musical moderna deve sua origem, retirava o 6 grau da escala diatônica a fim de evitar o “diabolus in musica”, ou seja, “o intervalo do diabo” (o trítono). Rearranjando essa sequência obtida a partir dos sucessivos intervalos de quinta, iniciando pelo G, na clave de sol, teríamos: G, A, B, C, D, E, o que é um hexacorde sem o sétimo grau (no caso F), conforme utilizado por D’Arezzo. A ausência do sétimo grau na escala diatônica impede a formação do intervalo do diabo, ou seja, o intervalo de trítono, com o quarto grau. O trítono era considerado muito instável para a música sacra do século 10 DC. No entanto, ainda falta o sétimo grau para se completar a escala diatônica maior que conhecemos atualmente. De onde este poderia vir? A resposta novamente encontra-se no ciclo de quintas formado pela série harmônica. O sétimo grau da escala diatônica é dado pela quinta descendente do seu primeiro grau, ou seja, a nota para a qual o primeiro grau seria sua quinta. Voltando à nossa sequência iniciando em C (C, D, E, G, A, B), F é a nota para a qual C é a sua quinta. Assim, incluíndo a quinta descendente de C, temos a escala diatônica completa: C, D, E, F, G, A, B. Para simplificar, se iniciarmos o ciclo de quintas em C e continuarmos até o F#, teremos todas as notas que compõem a escala diatônica maior de G, conforme mostra a figura abaixo.

Escala diatônica maior de Sol formada a partir do ciclo de quintas iniciado em Dó.


Como citar este artigo: 

José Fornari. “Escalas musicais da série harmônica”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 17 de abril de 2019. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/04/17/16/.