Complicação, complexidade e criatividade musical

Parte 3

José Fornari (Tuti) – 09 de dezembro de 2019

fornari @ unicamp . br


No artigo anterior, tratei da definição de criatividade sob a perspectiva evolutiva, onde seus processos mentais constituintes são similares aos processos darwinianos de evolução biológica das espécies. Em seguida, tratei rapidamente das 3 formas de inferência do raciocínio humano e como estas dialogam com o processo criativo, a atração (pelo que é meigo, erótico, saboroso ou engraçado) e a estética.

Esta forma de interpretar a estética tem suas raízes no século 19 DC, num campo da psicologia experimental conhecido como “estética experimental”, definida por Gustav T. Fechner. Esta, por sua vez, tem suas raízes na “psicofísica”, que estuda a relação entre um estímulo físico e a sua percepção. A estética experimental procura investigar experimentalmente a relação entre a percepção da comunicação através de um estímulo como a música através do som) e a sua predileção (ou repulsa). Dennett termina seu video (apresentado no artigo anterior) tratando sobre a estética da comédia, que ele chama de “joy of debugging” (o prazer de resolver um enigma), o que ele, juntamente com colegas, descreve como “Hurley model” no livro “Inside Jokes” (link nas referências).

Eu penso que este segmento, que Dennett atribui apenas à comédia, pode ser estendido também para a estética artística e musical. O prazer que temos ao apreciar uma obra musical passa pela identificação, compreensão e entendimento, em diversos níveis, desde os mais básicos e perceptuais, como o andamento, tonalidade, identificação de instrumentos, vozes, seguido pelos entendimentos mais contextuais e complexos, como a identificação do gênero musical, do estilo dos músicos intérpretes e da inserção sociocultural da obra musical. A estética experimental na música trata do entendimento sistemático dos processos que levam o ouvinte a identificar, a compreender e a antecipar a complexidade musical nos seus diversos e multidimensionais níveis de percepção, cognição e afeto.

A complexidade é sistematicamente estudada pelo menos desde o século 19 DC, com o surgimento da famosa curva de Wundt (posteriormente refinada por Daniel E. Berlyne, no século 20 DC) com relação ao seu valor hedônico (um outro termo para se referir à satisfação, que eu considero adequado aqui, no sentido de diferenciar este tipo específico de prazer estético artístico). Isto traz outros 2 conceitos relacionados ao estudo da complexidade; a novidade e a curiosidade. A novidade é determinada pela sensação do quanto uma informação nos parece nova. Um ruído branco, por exemplo, gerado por um processo aleatório uniformemente distribuído, é informacionalmente sempre original (novo), porém para a nossa percepção auditiva, este soa sempre igual.

 

Acima tem-se um arquivo áudio de um ruído branco, criado através de um gerador de números aleatórios. A figura acima mostra um pequeno trecho deste mesmo áudio onde pode-se observar a ausência de um padrão (ou periodicidade), tornando-o acusticamente desprovido de padrão mas auditivamente com um padrão constante e facilmente identificável. 

 

Assim a “novidade” perceptual não é a mesma que a “novidade” física; uma diferença psicofísica que é fundamental para o entendimento da natureza da mente humana. A curiosidade é o elemento mental impulsionador do “joy of debugging” de Dennett. A curiosidade é o elemento afetivo que nos motiva a sentir prazer em querer entender algo que nos é velado por uma tênue cortina de complexidade. A curva de Wundt-Berlyne é assim uma curva experimental, que relaciona valor hedônico à complexidade, da seguinte forma:

Exemplificação de uma curva hipotética de Wundt-Berlyne.

Cada indivíduo tem a sua própria curva hedônica, mas todas apresentam um formato similar a este descrito acima. A grande contribuição desta curva é relacionar diversas definições, como satisfação/insatisfação, novidade, curiosidade, simples/difícil, complexo e complicado, em uma única descrição pictórica. Esta descreve o valor hedônico em relação à complexidade, não apenas para música, mas para toda forma de comunicação humana.

Deste modo, tem-se a relação entre complexo e complicado. O que determina se algo é complexo para um indivíduo depende de muitos fatores, como atenção, percepção, bagagem cultural, inteligência analítica e predileção estética. Assim, a complexidade é percebida de modo diferente para cada indivíduo, em cada forma de comunicação. A partir do momento em que a percepção de complexidade torna-se tal que esta é ingerenciável pelo raciocínio do indivíduo, seu valor hedônico cruza a fronteira do satisfatório para o insatisfatório e a comunicação passa a ser percebida como “complicada”, onde o indivíduo passa a experimentar emoções de repulsa, desde a ansiedade até a raiva, que o convidam a abandonar a tarefa. O complicado é o complexo mentalmente ingerenciável.

Do mesmo modo, no extremo oposto, a comunicação muito rudimentar e simples para o indivíduo pode despertar emoções relacionadas ao tédio e, apesar de não estarem descritas na curva de Wundt-Berlyne, também podem vir a ser insatisfatórias (quem já sentiu tédio prolongado sabe do que estou falando). O ponto ótimo da complexidade comunicacional é individual e atinge um pico de satisfação ao combinar adequadamente conceitos conhecidos com conceitos originais. Na música percebe-se isso nas canções de maior sucesso, como as que são apresentadas no filme Yesterday, que mencionei na introdução da primeira parte desta discussão. A meu ver, a intenção do compositor deveria ser a de criar estruturas musicais que sejam devidamente complexas, para instigar os ouvintes a desvenda-las mas sem exceder sua complexidade a um dado ponto onde esta passa a ser percebida como complicada pelo ouvinte, que muito provavelmente abandonará a escuta por não sere mais capaz de resolver os enigmas musicais contidos na composição. Este é um comportamento recorrente da grande maioria dos compositores eruditos contemporâneos, que tem uma bagagem intelectual e até perceptual acima da média da população de ouvintes e assim compõem músicas que só poderão ser de fato apreciadas por seus pares. A música pop, por outro lado, como é acossada pelos desidérios do mercado (onde os mais famosos artistas são sempre os que mais vendem) tem naturalmente uma preocupação com o que o ouvinte quer ouvir. Desse modo, a produção pop espontaneamente segue perfeitamente a curva hedônica de Wundt-Berlyne, mesmo que não a conheça. Ambos são necessários. A experimentação intelectual divorciada das plateias e a estética reacionária da indústria cultural cumprem papéis importantes em reconstruir e representar a filogenia emocional que constitui os valores a anseios da sociedade contemporânea expressos pela produção musical.

 

Referências:

Abduction Stanford Encyclopedia of Philosophy https://plato.stanford.edu/entries/abduction/

Novelty, complexity. and hedonic value https://link.springer.com/content/pdf/10.3758/BF03212593.pdf

Aesthetic Preference: Anomalous Findings for Berlyne’s Psychobiological Theory https://www.jstor.org/stable/1423259?seq=1

Matthew M. Hurley, Daniel C. Dennett and Reginald B. Adams, Jr. “Inside Jokes: Using Humor to Reverse-Engineer the Mind”. An evolutionary and cognitive account of the addictive mind candy that is humor. MIT press. 2011.https://mitpress.mit.edu/books/inside-jokes

 

Como citar este artigo:

José Fornari. “Complicação, complexidade e criatividade musical – parte 3”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 09 de dezembro de 2019. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/12/09/39/