Premiado recentemente com Tocar Território em um festival internacional de cinema voltado ao meio ambiente e à música, o pesquisador e artista de Botucatu revela sua trajetória e os bastidores de suas criações
Por Vinícius Nunes Alves*
Fernando Martins Parré (@_ferpar), nativo de Botucatu-SP, é graduado em Agroecologia (UFSCar) e Design de Música (Unicesumar), seus projetos são marcados por criatividade, inovação e relevância cultural. No campo da Ciência, Fernando começou pesquisando sobre o impacto de planta invasora na restauração do solo e da serapilheira em floresta tropical, bem como sobre a construção de quintais agroecológicos no Cerrado. Posteriormente e até os dias atuais em sua pós-graduação na Unesp de Rio Claro, Fernando pesquisa na linha da ecologia da paisagem sonora, como membro do laboratório de Ecologia Espacial e Conservação (LEEC).
Já no campo da Arte, Parré é fundador e diretor do Estúdio Forja, liderando projetos de composição, produção musical e direção artística. Entre seus principais trabalhos na música, destacam-se os álbuns e EPs Desistencial (2020), Meio Assim (2020), Forja (2021), Navegando I (2023), Cabocla (2024) e Sedimentar (2024). A sua experiência no audiovisual é igualmente notável, com trabalhos como Entre o chão e o céu: front de água e rocha (2021), Curanderias (2024), Gosto de Terra (2024) e Tocar Território (2025).
Gabriel O Pensador – rapper, compositor e músico brasileiro – pondera em uma canção que tem gente que escreve por ego ou firula, mas também tem gente que escreve com sinceridade e tinta que sai da medula. Sem deixar dúvidas, Fernando encontra-se no segundo caso de pessoas. Em sua miríade de poiesis (e de autopoiesis), seja na escrita de um artigo científico, de um roteiro cinematográfico ou de uma partitura musical, exprime sensibilidades diversas com potencial para tocar tantos e tantas, dentro ou fora do campo de atuação artístico. Não é diferente em um prefácio que se dispõe a escrever, como foi com a obra “Esboços Naturais” – livro de contos com autoria de Cavito e que foi finalista do Prêmio Jabuti 2025 –, Parré prefaciou com genuinidade introduzindo uma breve reflexão geral, entre a simplicidade e o requinte, acerca dos sabores, fronteiras e conflitos que as histórias reais e oníricas do livro (e da vida humana) trazem.
Sem mais delongas, nesta entrevista exclusiva para o blog Natureza Crítica, Fernando Parré discorre uma pitada da sua persona e trajetória inquietas, multifacetadas e intercambiáveis.
Como dizia o saudoso Rubem Alves, as crianças ainda têm olhares encantados. Você já comentou que o acervo do Museu Aberto de Geologia, Mineralogia e Astronomia (MAGMA) da Demétria em Botucatu-SP foi um dos fundamentos do seu interesse pela Ciência. Isso foi desde a infância? E no seu interesse pela Arte, você teve pessoas e oportunidades na infância que te estimularam?
Foi, sim. Desde a infância tive contato com arte, ciência e conhecimento. Meu avô violonista era uma inspiração, ouvindo-o tocar violão e também admirando os instrumentos que ficavam na sala de estudos dele. Assim como meu outro avô, que era daquelas pessoas que, com uma bancada na garagem, construíam de tudo: peças de ferro, madeira e outros materiais. Estudei em uma escola de pedagogia Waldorf, a Aitiara, que já tinha história, mas ainda estava ganhando forma, consolidando-se enquanto associação e na relação com as famílias. E acho que essa escola foi um encontro de famílias e amigos que até hoje seguem conectados, mais próximos ou distantes, e um portal para a arte e a ciência em muitos aspectos.
Da orquestra da escola às viagens de geologia para o PETAR, das aulas de desenho e marcenaria às de matemática e física — cheias de experimentos interessantes de ver —, tudo isso compôs um ambiente fértil. E as situações de estar em palco, com música, teatro, poesia e outras vivências, também contribuíram bastante para esse gosto pela arte, fosse nessa escola ou em outras onde estudei. E acho que para a ciência também. Assim como a arte, ela é muito sobre produzir algo e comunicar ao mundo.
O fato de a escola estar na zona rural também trazia um olhar que hoje me parece bastante potente: morar no meio urbano, mas viver boa parte da semana no meio rural. O MAGMA ainda era o acervo pessoal do Sr. Blaich que, como uma figura quase mítica sob os meus olhos de criança, apresentava cristais e histórias encantadoras. Nos bazares de final de ano, eu dava um jeito de passar horas vendo as rochas expostas na venda de cristais. E as professoras e professores foram pessoas fantásticas, abrindo portas à música e ao conhecimento de forma acolhedora aos meus anseios de descobrir o mundo.
Aqui, tanto professores da escola quanto de outros locais onde estudei — violão, piano, cerâmica, desenho — tiveram um papel marcante. Enquanto respondo a esta entrevista, me pego reafirmando a mim mesmo a sorte que tive, porque é até difícil citar uma pessoa específica sem deixar de fora tantas que foram muito importantes. Tive a oportunidade de conviver com muitas pessoas que me estimulavam a seguir o gosto pela arte e pelo conhecimento.
Meu núcleo familiar — mãe, pai, irmã, irmão, padrasto, avós, tios, primos — incluía pessoas da academia e das artes, fossem musicais ou visuais. Mesmo quem não estava envolvido diretamente nesses campos sempre teve interesse em escutar e estimular as buscas e ideias nas quais eu me colocava. Apesar do tom saudosista, reconheço que a vida teve — e tem — seus desafios; não foram só passagens fáceis de viver. Mas, olhando para trás, houve muita coisa boa.
Acho que sempre gostei de olhar para o mundo com curiosidade, e tanto o ambiente escolar quanto o familiar me abriram a possibilidade de cultivar essa forma de olhar: buscar e vivenciar conhecimento e arte enquanto processos conjuntos, experienciáveis e sensíveis. E, como toda criança dos anos 1990–2000, documentários e programas sobre arte, ciências naturais, exatas, filosofia e cultura na TV também foram estímulos importantes ao interesse por esses temas.
A Agroecologia é uma área da Ciência que tem a sua Arte. Há quem considere obra artística o que a Agroecologia é capaz de criar e conciliar, como biodiversidade, educação ambiental e subsistência. Recentes estudos indicam que a Amazônia, maior floresta tropical do mundo, sempre foi palco de técnicas de agroecologia pelos povos originários e comunidades tradicionais da região. Se pudesse sintetizar, como você descreveria cientificamente e artisticamente uma agrofloresta sustentável?
Enquanto processo conjunto artístico e científico, uma agrofloresta tem escalas materiais e simbólicas. É um sistema agrícola inteligente, adaptado e adaptável, onde conceitos de diversas áreas da ciência e conhecimentos diversos são articulados e colocados em prática. Uma forma de gerir o planeta de maneira inteligente, pondo em ação o entendimento básico de que os ecossistemas são processos vivos em múltiplas escalas, e os recursos todos são preciosos e finitos. Carrega, em si, repercussões amplas, indo das questões geopolíticas e socioeconômicas de produção aos ciclos biogeoquímicos planetários.
Existe também a dimensão simbólica da beleza, que acredito que se conecta à arte e ao sensível de forma bastante potente. No sentido da conexão das pessoas com a paisagem, por meio da beleza, sejam pessoas que vivem em cidades ou outros tipos de ocupação. A lógica do monocultivo tem pouco interesse na estética. Já a agrofloresta dá atenção a isso, seja materialmente, seja simbolicamente. Ao suscitar cuidado, atenção ao planeta, às crises atuais, ela também afirma a fartura, a justa distribuição, a ciclagem inteligente e a existência e respeito às formas de vida no planeta. Ao planeta como um todo! Em escalas sensíveis, experienciar a agrofloresta pode se assemelhar a uma visita a uma exposição de arte ou a um espetáculo musical, uma vivência artística. É o tipo de processo que me parece fundamental à condição de ser humano, que nos fez e nos faz mais humanos. O que não serve apenas como produto — e nem precisa ser analisado à luz de algo —, é parte da experiência encantadora de estar vivo. E sendo tão negada ou dificultada para tanta gente no mundo, é revolucionária.
Quando você escreve ou dirige algum roteiro, essas criações nascem de maneira mais caótica e depois você vai organizando ou seu lado cientista te induz para um pensamento cartesiano desde a origem? Mia Couto diz que se escuta muito a cada texto que cria, independente do gênero. Para você, com outras formas de arte, é fundamental se escutar dentro da música, do vídeo ou da fotografia que participa?
Eu acho que vivo uma similaridade criativa na arte e na ciência. Tenho meu bloco de notas do celular, que alimento com ideias, poemas, letras, perguntas, esboços de artigos, num fluxo do dia a dia, sem muito critério. Talvez, nesse sentido, tudo possa ser um pouco caótico — e, nessas horas, na música, às vezes eu só ponho a mão em um instrumento e surge algo, mais ou menos pronto. Ainda assim, quando me direciono para uma atividade de produção focada, como dirigir, compor ou escrever, em geral a ideia ou prática já teve alguns dias de pensamento dedicados.
Acho que há um processo de ir concebendo algo, e essa concepção leva um tempo dentro de si: ouvindo-se, refletindo, sentindo, deixando descansar — até que, às vezes, surge o rompante, a conexão, a boa ideia, enfim. A criatividade como processo tanto de invenção, polimento e reflexão paulatinos e cotidianos quanto de rompantes, desse extraordinário eruptivo.
Os movimentos tectônicos me soam uma boa metáfora nessa hora: placas que deslizam constantemente e vão produzindo novos continentes, a dança tectônica da história, ao mesmo tempo em que empurram umas às outras, acumulando quantidades gigantescas de energia que são liberadas de uma vez só em um terremoto. Talvez as ideias sejam um pouco assim.
A gente se envolve muito quando cria, produz ou coordena algo. E um fluxo importante, acho, é também dar tempo e distância, para se ver e se ouvir de outras perspectivas. E nisso reside, também, a alegria e a importância de trocar com pessoas que estejam falando as mesmas linguagens e sejam de confiança.
Acho que funciono de forma meio analítica no pensamento — e gosto disso! Ao mesmo tempo, não me sinto sufocado pelo caos; pelo contrário, ele me parece um momento de muita potência. Nessa hora, acho que arte e ciência, além de similares em muitos processos, podem ser mutuamente complementares em suas formas de organizar e sensibilizar.
O estúdio onde trabalho, Forja, ganhou esse nome um pouco nesse sentido: observar o ofício da arte e da ciência. Trabalhar o metal requer calor, energia, força bruta (intelectual, física, emocional) e, certamente, cuidado — pois há sempre risco — e, simultaneamente, exige calma, sensibilidade, agilidade e precisão. Com arte e ciência, me parece, também é assim.

O clipe Sedimentar apresenta uma melodia instrumental com raiz no gênero musical Afrobeat, passeando por paisagens com arenito e basalto da Cuesta de Botucatu e região. Você pode detalhar melhor como se dá essa integração entre linguagens artísticas e científicas no videoclipe?
Os conceitos e o desvelamento da beleza que o clipe propõe nascem de olhar para a paisagem de forma racional e sensível. O trabalho usa palavras e dimensões da explicação e do estudo do mundo para estruturar a proposta artística, que é entregue como uma experiência da música e da imagem. E aqui, beleza não é apenas o que é bonito num sentido histórico-estético (que é bem volátil), mas aquilo que desperta esse sentido de ser humano que comentei acima. Acho que o conhecimento e a arte são belos em si mesmos. Além disso, eles fazem uso um do outro inevitavelmente. E, quando essa relação é trabalhada de forma direcionada, ativa, consciente, a experiência vivida pelas pessoas — seja em processos de arte ou de conhecimento — ganha uma potência a mais, significativa.
Existe um lugar em que a arte usa a ciência para se alicerçar, e a ciência usa a arte para comunicar. Ao mesmo tempo, a relação não me parece estanque. O que se produz e acessa do mundo, do sentido de realidade que cada pessoa tem, e o que é possível compartilhar disso em sociedade e em relação, possui significados e implicações maiores que a simples soma de cada uma dessas partes constituintes. Por exemplo: aprender matemática por meio da música, ou pesquisar as paisagens sonoras por meio da estatística e da composição — o que se cria e se experiencia nesse processo ganha dimensões que, isoladamente, ou simplesmente com um fazendo uso do outro, não existiriam.
Compor a música em Afrobeat foi um estudo e uma inspiração. Fela Kuti, Souljazz Orchestra, Newen Afrobeat, Antibalas e várias outras referências que atravessaram meu processo de escuta fundamentaram esse caminho. A composição nasceu também de pesquisar a harmonia dos metais, montar o arranjo e ir testando como soava. Foi na pandemia que compus a música, e depois fui entendendo e aprofundando a composição com os conceitos e os visuais que foram surgindo.
E também, desde sua origem, o Afrobeat fala de uma posição política progressista, de justiça social, colonialismo e tantos outros temas que foram — e ainda são — bastante relevantes. E acho que falar da paisagem, das rochas, da água, do tempo, da beleza do ambiente ao redor foi um caminho para trazer à tona algumas discussões atuais: crise climática, arte, meio ambiente, conhecimento, ciência. Arte também como uma experiência que promove atenção ao mundo, cuidado e pensamento crítico.
Hoje você é um pesquisador na linha de ecologia da paisagem sonora, como explicaria para o público amplo, em palavras simples e resumidas, a metodologia de um estudo nessa área? Basicamente, o que é importante de um ecólogo de paisagem sonora analisar em determinado ambiente?
O ecólogo de paisagem sonora deve analisar o som das paisagens: entender padrões, diferenças, mudanças e variações dos sons em diversas escalas. Busca a vasta quantidade de informação presente nos sons. Os sons que a vida gera são características que existem desde o início da evolução das espécies. Assim, da mesma forma que a distribuição espacial de uma espécie é resultado de suas características evolutivas e históricas, a distribuição e a ocupação das frequências sonoras são também processos produzidos pelos seres vivos.
A ecologia de paisagem sonora, então, mede as características temporais e espectrais (das frequências) de um som em determinado local. Com isso, é possível identificar padrões dos ecossistemas e das paisagens por meio do que há no espectro sonoro.
Entende-se que existem três grandes classes de sons que podem compor todas as paisagens sonoras do planeta: antropofonias — sons de humanos, máquinas e cidades —, biofonias — sons de seres vivos —, e geofonias — sons de processos abióticos, como chuva, rios e ventos.
Numa rotina básica de coleta, são instalados, em locais selecionados, gravadores sonoros automáticos. Eles passam dias captando os sons daquela paisagem sonora. Depois, os sons são convertidos em índices numéricos que dão um valor — uma “nota” — para cada paisagem. A partir daí, cada índice tem sua particularidade de funcionamento e descreve características do espectrograma que podem ser relacionadas a processos ecológicos. Características ambientais (chuva, vento, temperatura, tipo de ecossistema) e de uso do solo (distância a estradas, tipo de ocupação, latitude, elevação etc.) também entram na análise, assim como validações com escuta manual, detecções de espécies ou grupos vocalizantes e modelos estatísticos.
O ecólogo de paisagem sonora, então, analisa e articula os muitos fatores ecológicos dos locais com os valores de cada índice que a paisagem sonora produziu. A partir dessa integração, torna-se possível estudar a estrutura e o funcionamento dos ecossistemas.
A rocha em si do Arenito Botucatu, com sua coloração avermelhada e porosidade acentuada, foi uma das maiores inspirações para elaborar o clipe Sedimentar? Você já pensou também em elaborar um projeto sobre o Aquífero Guarani que está diretamente relacionado ao Arenito Botucatu?
Acho que foi uma grande inspiração, sim, ao mesmo tempo que não sei se existe “a maior”. Talvez seja mais uma junção de algumas inspirações e referências (várias!). Mas, certamente, a cor, a textura e o movimento das camadas na rocha foram noções e sensações que guiaram a estética e a proposta conceitual. E o nome do projeto, claro: Arenito Afrobeat. Um nome que surgiu depois de boa parte do processo de criação já em andamento.
A presença e distinção dessa rocha — e também de todos os tipos de arenitos — sempre me chamou atenção. Acho bastante bonita a ideia de rochas permeáveis; de um relevo poroso, um filtro. Ao mesmo tempo, a imagem do maciço de arenito segurando uma cobertura de basalto — esse, sim, mais denso, impermeável, de cor menos vibrante. O contraste de forças e tipos — e a potência do contato entre eles. O fato de o arenito ter precisado da lava acima para que a areia virasse rocha, e de o basalto agora ser sustentado, em partes, pelo arenito e, em partes, pela pressão que a água dentro do arenito consegue suportar.
Essa questão ambiental — de que o arenito, em grandes profundidades, acaba sendo compactado, até mesmo esmagado pelo peso acima caso haja remoção excessiva de água — me parece muito simbólica. E, de novo, retorna a ideia do álbum de juntar conhecimento, arte, meio ambiente, conservação, fruição e formação.
Esse single é uma abertura para um álbum que está em processo de composição. Linha de Ruptura — acho que vai ser esse o nome. Passeia por paisagens, processos e conceitos da Cuesta, do tempo, e pela criação de mitologias das paisagens. Uma das faixas se chama Águas, e parte do aquífero: do real, geológico e da ideia, do conceito da palavra. Sobre a água que fica dentro da pedra, orientada pelas rochas porosas que formam esses reservatórios, como o Arenito Botucatu. Mas fala também do ciclo hídrico como um todo, e da petrificação em sentido amplo: “algo estar petrificado, mas ainda ter água por dentro”. Uma imagem que me parece quase dois grandes opostos em sinergia.
Na ecologia espacial, os elementos interagem na paisagem, muitas vezes elevando a beleza da natureza, como uma cascata que associa rochas sobrepostas com água corrente. Esteticamente, o que mais você considera ter explorado na paisagem natural para o clipe? Quais ideias e sensações você pensou ao usar cenas com grãos de arenito e água da cascata nos dois sentidos – a favor da gravidade e contra a gravidade?
O clipe surgiu como um dispositivo de viagem no espaço e no tempo. Desde os grãos de areia passando pelo tempo até os mergulhos na imensidão do relevo. A areia e a cachoeira, especificamente, tiveram uma conexão com essa viagem que vai e vem no tempo. A areia saindo do vaso, como uma ampulheta que, por ser o marcador do tempo das coisas, não volta para trás. E a cachoeira nesse sentido: da passagem, da erosão, da água que escava a pedra e cria a areia.
Esse processo de passagem linear do tempo — mas, pensando no planeta inteiro, um ciclo — propõe uma visão que acelera a história da Terra, uma visualização da superfície do planeta esfriando pela primeira vez, formando rochas. E essas rochas sendo erodidas, formando solos, areia, sedimentos. Os sedimentos sendo novamente transformados em rochas — sedimentares, metamórficas ou ígneas. Os dois sentidos das imagens são esse dispositivo do clipe: controlar o tempo, ir e vir, subir, descer. Passear na escala do tempo, na erosão acontecendo com uma mão desgastando o arenito, fundindo escalas geológicas e humanas.
E, nesse ciclo, o processo sedimentar ganhou uma relação forte com a composição musical, no sentido de o Afrobeat também ter muitas camadas. Muitas vezes não muito variadas, ao mesmo tempo complementares e rítmicas. Acho que o desenho do arenito tem algo disso.
A paisagem foi o mergulho estético que guiou o visual: em escala pequena, grande, acelerada e contemplativa. Na exposição de fotografias da Cuesta que fiz (@front.cuesta), fiquei com uma sensação bastante forte — a mesma que guiou as fotos — do tamanho do front da Cuesta. Da potência que essas paisagens têm, e de como é uma sensação bastante única contemplar esse relevo. Esse uso das muitas escalas, no videoclipe, foi no sentido de tentar construir um gesto da sensação que é estar na paisagem: sentir subjetivamente e sensorialmente todas essas escalas juntas, ao mesmo tempo.

A personagem Arenito é uma representação de resiliência da rocha e da artista, além das vestimentas e movimentos que são esteticamente pensados. Como foi a concepção e a gravação sobre essa personagem?
A ideia foi fazer a paisagem em forma de criatura — e a criatura enquanto processos do tempo na paisagem. Então, as cores foram escolhidas em tons de arenito e solos da região: mais avermelhados, amarelados, e a parte cinza, que é o basalto. Achei legal o nome “personagem Arenito”. No roteiro, foi Criatura Sedimentar, mas isso era para todo mundo conseguir se comunicar no set, porque, no fim, o nome é justamente para cada pessoa escolher o seu.
E a questão dessa criatura estar em vários ambientes — no rio, no arenito, no basalto — reforça esse fio condutor do dispositivo de viagem no tempo, ao mesmo tempo em que a torna uma personificação do espaço e do tempo de forma mítica, mitológica. Os movimentos são a comunicação mais direta com quem assiste: os processos de larga escala temporal sendo feitos ali, em segundos, metaforicamente. As mãos raspando o arenito, erodindo; recolhendo as camadas da vestimenta e prensando, num fluxo de esvaziamento e recarga da água — como um aquífero; o pó vermelho sendo jogado para cima, no momento explosivo da música, como lava vulcânica em erupção, vindo debaixo de paleodesertos que formaram o arenito.
E a gravação foi sempre uma aventura! Eu agradeço muito, sempre, a toda a equipe que esteve comigo. Cinema é ação coletiva, conjunta. E foi uma honra trabalhar com artistas muito potentes na equipe inteira — e que toparam um roteiro de gravação totalmente off-road! Para montar a criatura, a cada cena era uma pilha de cobertores e uma máscara de uns bons 3 kg que a Fernanda Ribeiro, a performer, tinha que vestir. Em geral, era chegar no set, montar as câmeras nos quadros e definir o lugar onde ela ia se sentar. Depois, repassar o roteiro junto com a Fer, fazendo um último ensaio dos movimentos. Daí eu vinha colocando os cobertores, em um processo de camada em camada, e a máscara por último. Era colocar e tirar a cada corte para dar conta do calor. Com certeza bastante intenso.
Ao mesmo tempo, divertido — regado a bons bolos, sucos, frutas e boas ideias. E sempre num esquema de cooperação entre a equipe. O Renato Piri e o Guilherme Maia, outros dois membros da equipe, também sempre toparam todos os caminhos que tínhamos que fazer: trilhas para a cachoeira com todos os equipamentos, levar uma bateria para dentro de uma voçoroca, montar um carrinho dolly de filmagem para percorrer os trilhos da estrada de ferro. Enfim, teve um monte de tudo!
No ano passado, as crianças de uma turma minha do ensino fundamental anos iniciais da Escola Municipal de Ensino Fundamental Integral (Emefi) Dr. Cardoso de Almeida em Botucatu, apreciaram muito a personagem contendo o desenho dela em todos os desenhos e relatos. Considerando seu olhar subjetivo e artístico, a quais elementos você atribui essa simpatia infantil pela personagem? Já considerando o público adulto, o que você achou que foi mais apreciado?
Acredito que a simpatia infantil se conecta ao elemento mitológico da figura — ao fato de ser algo estranho, inexplicado; algo que “não existe”. E achei muito legal que elas se conectaram assim. Até num sentido de que a invenção e reinvenção de mitologias pessoais e coletivas do mundo e das coisas acaba sendo sufocada pelas estruturas sociais, políticas, religiosas e culturais. Daí vem a visão das crianças, que me parece aguçada para a potência de invenção e de descobertas que o desconhecido tem.
Acho que o público adulto também se conecta com a criatura, possivelmente por esses motivos do estranho, do diferente, e, daí, também do ousado. Ainda assim, as cenas em fast forward da Cuesta levantaram mais de uma pergunta, vinda de pessoas que assistiram, sobre o processo de produção delas — que fizemos com o carrinho dolly que o Zazá Leite e o Pedrinho Murari construíram. Acho que essas cenas foram marcantes para o público mais adulto, também. E não dá para não comentar que foi uma aventura à parte percorrer os caminhos para fazer as filmagens de todo o trilho, para depois acelerar no clipe.
E também muitas amizades reconheceram a mim, ao Zazá e ao Pedro Almeida tocando os instrumentos durante o clipe. Acho que isso foi um destaque especialmente para o público adulto, mais do que para o infantil.

Quanto tempo levou para você e equipe concluírem a produção do clipe Sedimentar? Quais foram os principais desafios?
Foram nove meses de produção intensos, e três meses de lançamento e pós-lançamento. Desafios são sempre muitos, mas sempre acompanhados de muita satisfação em trabalhar com uma boa equipe. A logística é sempre um trabalho delicado, envolvendo as agendas de muitas pessoas. E o fato de terem sido diversos sets de filmagem em ambientes abertos demandava locomoção de carro e, depois, a pé para chegar aos locais e, nisso, carregar na mão todos os equipamentos, figurinos e alimentação.
Talvez o maior desafio seja o desafio de quase todas as produções e trabalhos em equipe, ou na verdade, de todas as relações entre pessoas: a comunicação. É sempre um processo coletivo de trocas, acolhimento, respeito, escuta e diálogo. O bom é que a equipe estava bastante sintonizada. Todo mundo acolhia as aventuras, se comprometia e contribuía para fazer acontecer, driblar o cansaço e acolher os limites.
E justamente esse maior desafio talvez tenha sido a maior potência nesse videoclipe! Viver um lançamento de uma obra em que o processo aconteceu entre profissionais e entre amizades transforma o desafio em potência de encontro e de construção.
Projetos como Arenito Afrobeat (2024), Tocar Território (2025) e outros que você dirigiu receberam recursos da Lei 195/2022 Paulo Gustavo. Quais palavras de incentivo você deixaria para outros artistas locais se entregarem mais em projetos e buscarem financiamento?
Criar ideias, valorizar o que já está sendo feito em arte e, cada vez mais, buscar se conectar. Esses editais, como o da Lei Paulo Gustavo, ganharam maior alcance após a pandemia — e isso foi e é um grande avanço. Mas precisam seguir avançando. Em grande parte dos editais, muitos projetos de alta qualidade acabam não sendo aprovados pela simples inexistência de verba. E, por isso, é importante conversar, construir e integrar cenas culturais. Conhecer quem está junto nessa caminhada de fazer arte e se organizar.
Escrever projetos mesmo sem nunca ter escrito; conversar com quem já tem alguma prática. É com o tempo que se vai aperfeiçoando a escrita. E, não menos importante, exigir e se organizar em pautas políticas, e apoiar representantes que aumentem os volumes de recursos destinados à cultura e à arte. Não desanimar quando um projeto não for aprovado — às vezes, não é só ou nem é sobre qualidade, mas sim sobre falta de verba.
Os órgãos públicos de cultura são espaços de diálogo com a sociedade. Conhecer, conversar, sugerir, fiscalizar e trabalhar junto pode ser uma boa forma de estar integrado à cultura e de conseguir trabalhar coletivamente para que haja, cada vez mais, oportunidades.
Recentemente, o curta-metragem Tocar Território, que você dirigiu, foi finalista no festival internacional da Itália — Ferrara Film Corto Festival: Ambiente è Musica (2025) — e acabou sendo premiado na categoria trilha sonora. Na letra de uma canção de Paulo Monarco e Dandara, dupla de músicos prestigiados da nossa região, há o verso que fala sobre “equilibrar a expectativa da linha fina que se tem para pisar”. Como tem sido para você essa experiência de reconhecimento internacional, elevando e divulgando a produção cultural de Botucatu sob o olhar de especialistas do mundo?
Tem sido um reconhecimento bastante potencializador, que ativa a criatividade e inspira. É muito forte ver um trabalho sendo avaliado e reconhecido por pessoas que trabalham com isso em outros países, em outros cenários culturais — dado o júri e o público internacional do festival. Acho que mostra também a força e a potência do cinema independente do Brasil. Temos muito a produzir, e isso é reconhecível mundo afora!
É uma alegria poder reverberar as paisagens da região, que admiro profundamente, com pessoas de outras realidades, locais, culturas e visões de mundo. E, claro, receber feedbacks de quem trabalha com a linguagem audiovisual e musical. As pontes que vão surgindo a partir disso são das coisas mais potentes e necessárias nesses tipos de reconhecimentos e eventos. E, na minha experiência, todas as pessoas estão muito dispostas a trocar, a conhecer as paisagens que estão no filme, a refletir sobre os conceitos e sensações que vêm com ele.
E, vendo a potência gigante que Botucatu tem enquanto cena produtora de cultura e arte, fico muito contente de poder contribuir com um pouco disso. Certamente ainda há muito a fazer: dá para crescer muito mais, especialmente com mais reconhecimento e mais verba girando no cenário e no mercado da cultura local. Não menos, o que já existe é muito valioso — é essa potência já manifestada. E acho que o que componho é também fruto da minha trajetória na arte, e boa parte dela aconteceu aqui na cidade. Nesse sentido, todo artista é também reflexo do território.
Ao mesmo tempo, procuro manter uma perspectiva atenta para não cair em deslumbramentos. Acho que é preciso dizer que, mesmo que pareça paradoxal, não é o reconhecimento que define a qualidade da arte — muito menos é a justificativa do fazer. E, num cenário em que redes sociais, likes, plays e views viraram quase a única referência de qualidade e impacto de diversas formas de arte, me parece sensato cuidar para que o fazer artístico — esse processo de invenção, releitura, ruptura, fruição, reflexão e tanto mais — não seja pautado como algo que precise ser aceito por essas métricas e formatos da indústria cultural.
Ainda assim, festivais e premiações são muito importantes no sentido de conectar cenários culturais, territórios e pessoas, e gerar reconhecimento. É valioso estar trocando com quem vive as mesmas linguagens artísticas, mas a partir de cada atuação individual. Acho que a linha fina que você cita na pergunta diz muito desse lugar do reconhecimento perante o fazer artístico — e diz muito do fazer artístico como um todo, também. É um equilíbrio delicado entre ir ao mundo com as criações, saber observar o que e como chega ao mundo e, a partir dessas reflexões, seguir construindo a prática.
E sendo a arte um processo bastante íntimo de cada pessoa, é preciso cuidar desse jogo das expectativas, dos desejos de formas específicas de reconhecimento e validação. Ter a força de bancar o que se cria, frente ao mundo, junto com a perspicácia de se ver no mundo — e também ver como o mundo reage e o que diz sobre a obra. Buscar afinar os processos e as ideias. E, nesse jogo dinâmico, ir construindo uma obra significativa.

Contato com Fernando Martins Parré: fer_parre@hotmail.com
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*Vinícius Nunes Alves é biólogo pela Unesp-IBB, mestre em Ecologia e Conservação de Recursos Naturais pela UFU-Inbio e especialista em Jornalismo Científico pela Unicamp-Labjor. Foi professor substituto em Filosofia da Ciência na Unesp-IBB e é colunista no jornal Notícias Botucatu. Atua como professor de Ciências na Prefeitura de Botucatu e como jornalista independente, colaborando em veículos como O Eco, #Colabora, ComCiência, Ciência na Rua e Observatório da Imprensa
Vinícius, grande em tamanho e em referências biográficas do entrevistado. Seu jornalismo científico tem a mesma importância e valor do professor Vinícius. Parabéns a você e parabéns ao Fernando Parré!
Excelente entrevista . Fernando promete ótimas criações ainda por vir !