É de pequenino que se torce o pepino: um pouco sobre períodos críticos
Genie é o “codinome” de Susan M. Wiley, adotado pelos profissionais que encontraram a menina de quase catorze anos em abril de 1970. Ela é um caso contemporâneo de criança selvagem – juntamente com outros clássicos como Vítor de Aveyron, Kaspar Hauser, Mogli (oi?!) e, mais recentemente, a Menina Cambojana da Floresta. Genie foi privada quase totalmente do contato social desde o nascimento, criada em um quarto escuro, com restrição de movimentos e completa negligência de contato afetivo, segundo o relatório da assistente social que a encontrou na casa dos pais em Arcadia, na Califórnia.
Vítor, o menino selvagem de Aveyron, encontrado num bosque da França em 1797, e educado por Jean Marc Gaspard Itard.
Kaspar Hauser, encontrado vagando nas ruas de Nuremberg em 1828. Ninguém
sabe muito bem qual era a dele. As vezes falava, as vezes desenhava, as
vezes dava uma de selvagem. Segundo consta, ele provavelmente não era
uma criança selvagem.
Mogli, o menino lobo, da história de Kipling. Vivia na Índia na
companhia do urso Balú (“necessário, somente o necessário…”) e da
cobra Cazzzzca. Foi posteriormente estudado por Walt Disney.
A história de Genie é longa, triste, cheia de reviravoltas e de personagens malvados: sua primeira instrutora, no Hospital Infantil de Los Angeles, mantinha um especial interesse em se tornar “a próxima Ann Sullivan“, e ficar famosa à custa da menina. A equipe de profissionais de saúde e pesquisadores encarregados de cuidar dela vivia em constante pé de guerra, cada um reclamando para si a “preferência” e o afeto da criança, com prováveis intenções de se tornarem tutores e, conseqüentemente, terem direitos exclusivos de estudar seu caso. Depois de quatro anos sob os cuidados do casal Marilyn e David Rigler (que conseguiram a maior parte dos progressos em linguagem e comportamento social da menina), de ter os fundos para seus cuidados e para as pesquisas sobre sua condição cortados pelo National Institute of Mental Health por “conduta não-profissional e falta de dados científicos seguros“, de uma tentativa fracassada de voltar aos cuidados de sua mãe, e de passar por outros seis lares adotivos onde foi negligenciada e abusada, Genie vive hoje em um abrigo para deficientes mentais, no sul da Califórnia.
Mas o que nos interessa aqui é a história de como os pesquisadores tentaram ensinar linguagem a Genie, e o que eles descobriram no caminho. Desde o início do tratamento, depois com a publicação do livro de Susan Curtiss em 1977 (Genie: A Psycholinguistic Study of a Modern-Day “Wild Child”, Academic Press) e de outros vários livros e artigos científicos, diversas questões sobre o desenvolvimento da linguagem e sobre os períodos críticos de sua aquisição foram levantadas a partir das observações e estudos feitos com Genie. Por “período crítico” entende-se a janela de tempo em que determinada habilidade ou competência se desenvolve e se torna parte do repertório comportamental de um indivíduo. É esperado que, depois de passado este período, a habilidade não seja mais desenvolvida. Segundo Johnson e Newport (1989), “… em alguns domínios, tem sido sugerido que a aquisição de competências não aumenta monotonicamente acompanhando o desenvolvimento, mas antes atinge um pico durante um período crítico, que pode ser relativamente cedo na vida, e então declina depois que este período estiver terminado.”
Genie, aos dezesseis anos, já sob a tutela do casal Rigler.
Num estudo feito por Fromkin, Krashen, Curtiss, Rigler e Rigler (1974), os pesquisadores submeteram Genie a uma bateria de testes para identificar seu grau de compreensão lingüística. Foram construídos testes em que não eram requeridas respostas verbais, já que a intenção não era verificar suas habilidades de produção ativa de fala. As respostas exigidas eram principalmente respostas de apontar para figuras que representavam o que os pesquisadores diziam, e o início dos testes se deu quando Genie já estava há 11 meses sob os cuidados do Hospital. Durante este período, a menina já havia demonstrado entendimento e produção de alguns nomes, mas estas habilidades em si não revelavam muito sobre sua competência verbal. Os resultados de 17 diferentes testes de compreensão, administrados semanalmente durante dois anos de estudo, demonstraram que Genie estava aprendendo habilidades lingüísticas tais como contraste entre singular e plural, distinção entre sentenças afirmativas e negativas, construções possessivas, modificações, algumas preposições e conjunções, e algumas formas comparativas e superlativas de adjetivos.
Por conta da dificuldade de fala, o acesso às competências de linguagem produtiva de Genie apenas pelas vocalizações era dificultado. Apesar disso, Fromkin e cols. (1974) descrevem um aumento importante nas habilidades vocais e na produção de fala. As primeiras palavras ditas por ela foram palavras simples, com sílabas do tipo consoante-vogal (como as de qualquer criança que começa a falar), e ao longo do estudo Genie aprendeu a falar palavras de duas ou mais sílabas e a usar todas as consoantes do alfabeto inglês, embora houvesse deleção das consoantes finais na maioria das palavras e de algumas consoantes iniciais em palavras com “clusters consonantais” (como em SPike, STay ou SKate). Em testes de imitação, Genie era capaz de reproduzir qualquer som da língua inglesa, mesmo que tais sons não estivessem presentes nas palavras de sua produção vocal espontânea, o que foi interpretado pelos pesquisadores como a evidência de limitadores fonológicos, mais do que a presença de dificuldades de articulação dos sons da fala. Depois algumas semanas no Hospital, Genie começou a usar imitativamente palavras e nomes que ela ouvia dos cuidadores e, cinco meses após o início do treinamento, já era capaz de falar espontaneamente algumas palavras. Cerca de oito meses depois de sua internação, a menina começou a produzir sentenças de duas palavras dos tipos nome+nome ou nome+modificador (“more soup“, “Genie purse“), e dois meses depois disso passou a usar verbos em suas construções (“want milk“). Em novembro de 1971 (pouco mais de um ano após sua internação), ela passou a produzir sentenças de três e quatro palavras com estrutura sujeito+verbo+objeto (“Genie love Marilyn“). Em fevereiro de 1972 foram registradas as primeiras sentenças negativas, embora os testes de compreensão tivessem demonstrado que ela era capaz de compreender sentenças negativas muitos meses antes disso. A crescente habilidade de combinar palavras em sentenças e de aumentar ou recombinar sentenças já conhecidas levou os pesquisadores a concluir que Genie havia adquirido os elementos essenciais da linguagem que permitem a geração de infinitos conjuntos de sentenças.
Em muitos aspectos, o desenvolvimento da linguagem de Genie aconteceu na mesma seqüência em que acontece o desenvolvimento da linguagem em crianças sob condições normais, mas havia diferenças expressivas entre a emergência de linguagem em Genie: seu vocabulário era muito maior do que o de crianças “normais” no mesmo estágio de desenvolvimento lingüístico e ela era capaz de lembrar de listas de palavras relativamente grandes. Para Fromkin e cols. (1974), isso ilustraria definitivamente o fato de que a linguagem é muito mais do que apenas o armazenamento infinito de palavras. Em outros pontos, as habilidades de linguagem de Genie ficavam muito aquém das esperadas, por exemplo, ela nunca foi capaz de construir sentenças no modo passivo e as habilidades gramaticais eram análogas as de uma criança de dois ou dois anos e meio. De modo geral, seu progresso na aprendizagem de linguagem foi muito mais lento do que o normal, e algumas habilidades não foram adquiridas de modo algum, como o uso de palavras indicativas de interrogação (qual, onde, por que), de marcadores sintáticos (pontuações e vírgulas), de palavras demonstrativas (isto, este, aquilo) e principalmente de regras transformacionais (que permitem a transformação de sentenças mudando-se a ordem das palavras como, por exemplo, transformar uma sentença na voz ativa em outra na voz passiva, sem perder seu significado específico). Ao fim de muitos anos de estudo, Genie, uma mulher adulta, chegou ao nível máximo de capacidade lingüística análogo ao de uma criança de quatro anos de idade.
O estudo do desenvolvimento da linguagem de Genie foi a primeira tentativa direta de se testar a hipótese do período crítico para a aquisição da linguagem. Ainda hoje, sabemos pouco sobre as habilidades que têm períodos críticos e sobre os mecanismos neurais que controlam o “fechamento” das janelas de aprendizagem de determinadas habilidades. No caso da linguagem, o que se pode dizer com alguma certeza é que há uma necessidade de inputs (estímulos provenientes do ambiente, das pessoas com quem se mantém relações, etc…) durante um longo período, e desde muito cedo na vida dos indivíduos. Mais do que isso, as estimulações sociais e as interações com diversas pessoas competentes no uso da linguagem parecem ser muito mais importantes do que estimulações programadas e complexas. E, mais importante de tudo, toda essa estimulação deve ser o mais precoce possível.
Referências bacanas:
Fromkin, V., Krashen, S., Curtiss, S., Rigler, D., & Rigler, M. (1974). The development of language in Genie: a case of language acquisition beyond the critical period. Brain an Language, 1. 81-107. Reprinted in M. Lahey (Ed.), Readings in childhood language disorders, 1978. New York: John Wiley. pp 112-133.
Sobre “períodos críticos” recomendo: Johnson, J.S. & Newport, E.L. (1989). Critical period effects in second language learning: the influence of maturational state on the acquisition os english as a second language. Cognitive Psychology, 21. 60-99.
Almanaque de curiosidades: um trabalho sobre o filme “O Menino Selvagem” do Truffaut – quem não viu e tem paciência pra assistir Truffaut, veja… – que tem como Anexo o relatório completo de Itard sobre os desenvolvimentos de Vítor. Começa na página 76.
Discussão - 10 comentários
Tenho um documentário legendado sobre a história dela que baixei na internet, cheio de gravações reais, chama "The Secret of the Wild Child". É bem interessante!
E quando dizem que usamos apenas uma pequena parte da capacidade de nosso cérebro? As diferentes zonas cerebrais "subutilizadas" poderiam ser desenvolvidas através dos estímulos adequados? Ou isso depende de períodos críticos também?
Texto interessantíssimo, Aninha!
Oi, Sibele!!!
Então... essa história de que nós só usamos 10% do nosso cérebro é conversa. Usamos o cérebro todo o tempo inteiro. (O que não quer dizer que não haja "espaço" para mais aprendizados: aprendemos coisas novas até o dia da nossa morte, amém.) Mesmo depois de passados os períodos críticos de aprendizados, a gente pode aprender algumas habilidades, mas parece que essas habilidades não são totalmente desenvolvidas, - como o caso da Genie, ela aprendeu linguagem, mas não consehuiu se desenvolver totalmente...
A "plasticidade neural" existe e é uma coisa fantástica, mas ainda não sabemos muito bem como ela acontece, e nem porque algumas pessoas são capazes de estimular outras regiões cerebrais e readquirir as funções de uma área lesionada, por exemplo, mas acontece.
Ou seja, muita pesquisa pela frente! 🙂
sou estudante de pedagogia,e queria saber de q o victor de aveyron(o menino selvagem)morreu?
agradeço desde ja obrigado.
Não sei, não, Alessandra.
Usei esse post como fonte no meu trabalho, mas como faço referencia a ti?
Parabéns pelo blog, interessantíssimo!!
Beijos!
Obrigada, Letícia!
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Qual a diferença entre a história de Genie e
a de Victor, levando em consideração aspectos sociais e linguísticos.
Há diferenças nas histórias de vida dos dois, com certeza, mas aparentemente o resultado da falta de estimulação social e da linguagem durante um período crítico do desenvolvimento foi muito parecido nos dois casos...