Alguns limites. (Ou: como não explicar o massacre de Realengo.)

Dois dias ouvindo opiniões de psicólogos das mais diversas orientações, psiquiatras, psiquiatras forenses, representantes religiosos, profissionais de segurança, analistas diversos e opinadores-sobre-todos-os-assuntos. Além da óbvia indignação pela quantidade de bullshit dita na maioria dos telejornais, dos pseudo-noticiários e dos programas vespertinos… um monte de dúvidas.

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Todo mundo quer uma explicação, um motivo, uma causa certa e determinante para o comportamento do atirador que entrou na escola de Realengo e matou 12 crianças, feriu mais uma dezena delas e depois cometeu suicídio quando confrontado com um policial. O que ninguém quer ouvir é um claro e sonoro “não sei”. Como se, a um dito “especialista”, fosse vetada qualquer expressão de dúvida, de limitação das teorias explicativas. Um “psi” (ou “AS” psi) tem que ter uma explicação e uma solução.

Sinto informar: NÃO SEI. E digo mais: NÃO SABEMOS. E afirmo categoricamente: NINGUÉM SABE. Não mesmo. Nem os especialistas do Jornal Nacional, da Discovery, do Datena, e nem ninguém sabe, realmente, as razões que levaram à tragédia no Rio de Janeiro. Temos, no máximo, um levantamento de hipóteses explicativas, algumas mais palusíveis do que outras e diversas delas excludentes entre si.

Vejam, o assassino está morto. Ninguém mais pode examiná-lo, entrevistá-lo, observar seus comportamentos, avaliar suas funções cognitivas e sua saúde mental. Não há mais como levantar hipóteses funcionais testáveis para seu repertório comportamental, a não ser aquelas baseadas em relatos de outras pessoas, agora todos enviesados pelas informações da imprensa e pelas regras morais e religiosas de cada pessoa que foi, um dia, testemunha do comportamento do atirador.

Isso não quer dizer que a gente não deve procurar as possíveis causas do acontecido. Mas é um alerta para que não compremos qualquer discurso sobre o fato como verdadeiro, único, definitivo. Por exemplo, a explicação causal da “doença mental” do atirador. Sim, dado que seja confirmada a informação de que a mãe biológica sofria de esquizofrenia, há uma grande PROBABILIDADE de que ele também fosse portador desse transtorno. Quando um parente em primeiro grau (pais ou irmãos) apresenta o diagnóstico da doença, a probabilidade de que o indivíduo também seja suscetível à doença é cerca de 10% maior do que a probabilidade de uma pessoa sem histórico familiar ser suscetível à esquizofrenia (Kendler & Walsh, 1995).

Mas não há (pelo visto, nunca houve) o diagnóstico da doença. E ela não pode ser tomada como EXPLICAÇÃO do comportamento violento. A taxa de prevalência da esquizofrenia entre a população mundial é de 0,92% para homens e 0,9% para mulheres, segundo a OMS. (A prevalência é a medida da proporção de indivíduos que apresentam um determinado transtorno no momento da avaliação). E a incidência desta doença, ou seja, o número de novos casos que se verificam anualmente, oscila entre 7 e 14 em cada 100 mil habitantes, com idades compreendidas entre os 15 e os 54 anos (Mari & Leitão, 2000). Entre os sintomas marcantes da doença estão delírios de grandeza, delírios persecutórios e alucinações, além de retraimento social e o tal do “afeto embotado”, ou seja, a incapacidade de sentir afeto, ou seu oposto, a exacerbação dos sentimentos de afeto por uma ou algumas pessoas. Mas o que deve ser especialmente destacado é que, entre pessoas com doença mental como esquizofrenia, transtorno bipolar e outras psicoses, apenas 6,4% pode se tornar violenta e cometer crimes, principalmente quando a doença é associada ao uso de álcool e de drogas. Os outro 93% não se comportarão agressivamente. Só para ter uma comparação, entre as pessoas que fazem “apenas” uso abusivo de álcool, o nível de violência e agressividade é de 10% (Hodgins, Mednick & Brennan, 1996).

Além disso, o conteúdo das alucinações e delírios do doente será diferente em cada caso, a depender das experiências de vida, do ambiente em que a pessoa vive, da presença ou ausência de tratamento, de inúmeras variáveis que não estão mais ao alcance do conhecimento daqueles que se arvoram a “analisar” o criminoso. A história de interações do atirador com seu ambiente físico e social é mais determinante de seu comportamento do que o fato dele ser ou não doente mental, porque é dessa experiência que ele tira o repertório para constituir o delírio e as alucinações.

Então, ao invés de continuar procurando “motivos” na doença mental, que tal começar a verificar quais as condições de vida dessa pessoa? Como foi sua interação familiar? O que ele viveu quando estava na escola? Qual a rede de suporte social que estava presente durante sua vida? Havia uma rede de suporte social para esse indivíduo?

É, minha gente, o buraco é BEM mais embaixo.

Referências:

Mari, J.J.; & Leitão, R.J. (2000). A epidemiologia da esquizofrenia. Rev. Bras. Psiquiatr., 22 (1). ISSN 1516-4446.

Kendler, K.S.; & Walsh, D. (1995). Gender and Schizofrenia: Results of an epidemiological-based family study. The British journal of Psychiatry, 167, 184-192.

Hodgins, S.; Mednick, S.A.; Brennan, P.A. (1996). Mental disorder and crime. Evidence from a Danish birth cohort. Arch Gen Psychiatry 53, 489-496.

Discussão - 16 comentários

  1. Izaura Cruz disse:

    Olá Ana,
    Tomei conhecimento do seu texto e do seu blog através do Prof. Paulo Gurgel, meu colega aqui da Faculdade de educação da UFBA, e queria lhe parabenizar pela lucidez da sua análise. Ainda ontem discutia com as alunas em sala de aula (foi impossível não discutir o assunto diante da angústa de tod@s com a situação), e falava para elas que existem algumas questões muito maiores a serem discutidas do que a simples busca de uma justificativa ou explicação simples para este fato terrível, e que infelizmente trata-se de um fato aleatório que talvez nunca consigamos explicar e precisamos aceitar que coisas assim podem acontecer. Entretanto, existem algumas questões maiores, de cunho social que precisam ser discutidas sim. Um exemplo delas é a facilidade de acesso às armas e a completa falta de controle sobre a circulação delas em nosso país. Outra coisa é cultura de violência que vem sendo cada dia mais acentuada pela mídia, inclusive da espetacularização de fatos como este ocorrido em Realengo. As redes televisivas "brigando" para ver quem mostrava mais detalhes sangrentos e escabrosos possíveis no intuito de capturar a audiência e "faturar" cada vez mais através das tragédia particulares.
    É preciso sim, discutir as condições sociais que fazem emergir a cada dia situações individuais que traduzem ações coletivas de indiferença, falta de cuidado e descaso para com pessoas, que desde a infância são submetidas a situações de violência extrema sem que ninguém discuta ou se preocupe com isso.
    Sei que a dor das famílias que perderam suas crianças deve ser terrível, mas me preocupa muito o que vai acontecer com as crianças que testemunharam e sobreviveram a isso, principalmente depois que os holofotes da mídia se deslocarem para outras tragédias emergentes.
    Quem cuidará delas? Como elas irão conviver com isso?
    Talvez seja mais importante debater questões comoessas do que buscar explicações para o comportamento do assassino.
    Izaura Cruz

  2. Ótimo texto, Ana. Muito oportuno, sobretudo, sua crítica ao velho mito que associa "doença mental" (não vou nem comentar os problemas envolvidos nessa metáfora infeliz...) a violência e agressividade.

  3. Bel disse:

    oi Ana,
    de tudo que vi e ouvi, de fato muita bobagem, o melhor comentário (que aliás se absteve de qualquer intenção de explicar)foi do Xexéo, jornalista da CBN. Ele pronunciou exatamente esse difícil "não sei", e afirmou que, agora, o que há de realmente "sabido" são apenas a dor, a tristeza e o trauma das pessoas mais proximamente envolvidas. Foi a coisa menos explicativa e mais lúcida que ouvi em meio às tantas buscas implacáveis por causas e explicações...

  4. liliam disse:

    Ana,
    concordo com você, mas é muito mais fácil responsabilizar alguém individualmente que fazermos uma reflexão sobre a nossa responsabilidade na construção "daquilo" que poderia levar alguém a agir como esse rapaz.

  5. Oi Ana,
    Não obstante o fato de seu comentário abordar uma tragédia humana que extrapola o limite do individuo, achei-o bastante interessante, na medida em que não se coloca na condição de "doutora" sabe-tudo, e questiona a nossa "imprensa LIVRE" e "democrática", que além da notícia, se coloca também na posição de analista, julgadora, e assim por diante.
    A sua postura me fez lembrar do episódio noticiado recentemente (sem qualquer destaque na "grande" imprensa"), segundo o qual, o presidente do STJ ofendeu brutalmente um garoto que estava atrás dele, numa fila do caixa eletrônico.
    O garoto, que era estagiário concursado do STJ, dirigiu-se à Delegacia de Policia e registrou uma queixa contra o Ministro-Presidente do STJ.
    É importante lembra, que até o momento em que foi ofendido, o rapaz não sabia que a pessoa à sua frente era o presidente do Tribunal.
    Atitudes como essa nos permite sonhar com uma sociedade um dia melhor, cujo detalhe, essencial, por sinal, é que não sejamos omissos.

  6. Paulo Maciel disse:

    Comentário muito sensato, Ana, muito bom ler um texto assim!

  7. Olá Ana, parabéns pela análise. Muitas vezes buscamos explicações onde elas não existem, de fato. E aí é incrível a quantidade de bobagens que é dita e escrita.
    A mídia e o cinema teimam em traçar um perfil de assassino psicopata que a Ciência não corrobora. Basta ver o sucesso que "Mentes Perigosas" fez no mercado editorial.
    Doenças mentais e genética são mais cômodos como vilões do que a dura realidade. Por mais doloroso que seja, ainda prefiro as explicações de Philip Zimbardo e Stanley Milgram.
    Um abraço, Rodolfo.

  8. Nancy Capretz disse:

    Parabéns Ana pelo excelente texto que discursa racionalmente sobre mais um tema tratado de forma inadequada...É uma pena que os psicólogos ainda sejam procurados para rotular problemas da sociedade e falte espaço para que as relações humanas sejam abordadas de forma educativa. As questões que você coloca no final do texto certamente são as que as pessoas deveriam estar se fazendo e o fato triste poderia ter sido evitado se atitudes diferentes tivessem sido tomadas em relação ao assassino durante o seu desenvolvimento prévio. Grande abraço!

  9. Mauro Rebelo disse:

    Oi Ana, vim retribuir a visita e gostei muito do seu texto. Como qualquer evento observado a posteriori, poderemos encontrar várias explicações plausíveis para o evento, sem que nenhuma delas seja minimamente próxima da verdade. E acho que não conseguiríamos nem mesmo se o cabra estivesse vivo para ser interrogado, da mesma forma que não adianta perguntar a um autor 'porque' ou 'o que' ele quis dizer com aquilo que ele escreveu. Por fim, como eu escrevi uma vez aqui, as pessoas dificilmente aceitam uma conclusão desagradável. E a desagradável conclusão foi muito bem sintetizada por Boris Yellnikoff, o personagem de ‘Tudo pode dar certo’ de Woody Allen (‘Whatever works’ 2009): "Os ensinamentos básicos de Jesus são bem bonitos... assim como era a intenção original de Karl Marx. O que poderia dar errado? Todos vivendo em igualdade. Fazer pelos outros. Democracia. O povo governando. [...] São ótimas idéias, todas elas... mas todas sofrem de uma específica falha fatal. Todas elas são baseadas na idéia falaciosa de que as pessoas são, essencialmente, decentes: 'Dê a elas a chance de fazer o certo e elas farão'. Elas não são estúpidas, egoístas, gananciosas, covardes e pequenas. Fazem o que podem.[...] Só estou dizendo que as pessoas fazem a vida ser pior do que É. E, acredite, já é um pesadelo sem a ajuda delas. Mas, no geral, lamento dizer, somos uma espécie fracassada."

  10. Bessa disse:

    Ana, excelente texto. Como já comentei antes no texto do Felipe (PsicoLógico) esse ocorrido me foi um tapa na cara de como comportamentos não podem ser determinados nem ambiental, nem instintivamente. O crime foi uma combinação de fatores genéticos do criminoso, seu ambiente de criação, doenças psiquiátricas possíveis, suas experiências, até a oportunidade de um dia adquirir uma arma. São fatores demais que combinados geraram a explosão de violência. Talvez aí sim um exemplo de complexidade irredutível. Casual? Não diria tanto, mas difícil de traçar uma relação de causa-efeito simples.

  11. Oi Ana,
    Independentemente das motivações que levaram o Wellington a cometer esta chacina, as quais muito provavelmente tiveram origem nos pontos que você assinalou no último parágrafo de tua postagem, existe uma última questão que poderia, talvez, ter determinado o curso dos eventos: o acesso às armas de fogo aqui no Brasil.
    abraço,
    Roberto

  12. Ju Otoni disse:

    Oi Ana, ótimo texto!
    Um dia estava vendo TV num desses programas que têm a pretensão de descobrir a causa do crime e a repórter perguntou pra uma criança que estuda na escola Tasso da Silveira: "Por que você acha que o Wellington fez isso?" E a criança: "Ah, são muitos motivos né? Não é uma coisa só...". Quer dizer, uma CRIANÇA dando uma lição na jornalistona que quer achar uma causa única para o fenômeno.

  13. Aline Santos disse:

    Boa tarde, Ana.
    Particularmente, achei seu texto fantástico. Com uma grande catarse, sinto-me um pouco menos engasgada, mas não menos embasbacada por todos os absurdos que ouvi nos últimos dias, fora as altas doses de sensacionalismo e falta de compaixão ao colocarem as crianças sobreviventes para falar sobre o assunto sem o mínimo suporte psicológico e no auge das emoções.
    Acho que a sociedade em geral no fundo sabe que não somos e nunca seremos capazes de explicar o que moveu Wellington a agir de tal forma. Temos hipóteses e fazemos inferências, mas nunca teremos certeza. Apesar de sabermos disto, nossa alma, ávida por explicações em todas as situações, busca razões para explicar as emoções.
    Enfim, sabemos que não temos como explicar, mas buscamos justificativas e um bode expiatório para culpar unicamente por algo que a própria existência e as inúmeras interações constroem.

  14. Jaqueline disse:

    Olá Ana,
    Só queria fazer uma sugestão e ao mesmo tempo tirar uma dúvida. Não seria o caso de usar referências mais atuais? Ou essas referências usadas por você são as mais recentes? Digo isso porque como você utilizou dados (de mais de 10 anos, 1996 e 2000) é importante que eles estejam sempre atualizados.
    Um abraço,

  15. maria disse:

    Boa noite,Ana.
    Bom texto.
    A unica explicação, que considero razoável hoje em dia, para uma coisa dessas, é a conjugação de uma neuroquímica ruim com a incitação de alguém.Embora digam que ele agiu sozinho, por que então ele queimou o disco rígido do computador dele?
    Considerar a família como uma incubadora desses casos, também não é uma boa medida.Quais seriam os fatores, que elencados e irrefutavelmente juntos, resultariam, sem sombra de dúvidas, num ser deste? Certamente há inúmeras famílias problemáticas que não resultam neste problema. E outras menos problemáticas que resultam neste problema. Podemos considerar que um indivíduo que apresentou este problema É um problema, e fica muito difícil para os familiares lidarem com ele.Acho que o buraco mais embaixo é a química do cérebro e um "amigo daqueles".

  16. Daniel disse:

    Como eu disse na CBN: tem chutes melhores e chutes piores, mas é tudo chute. -> http://t.co/2MGj9hA

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