Desafio de Lisboa

Desafio de Lisboa

José Mario Martínez e Maicon Ribeiro Correa
GT Engenharia Matemática/CRIAB

“Desafio de Lisboa” é a forma como nos referimos à participação do GT Engenharia Matemática – que pertence ao CRIAB – no 6th Workshop on River and Sedimentation Hydrodynamics and Morphodynamics, organizado pelo Instituto Superior Técnico de Lisboa (IST) com o objetivo de disseminar e intercambiar conhecimentos sobre rompimento de barragens e seus modelos.

O rompimento de uma barragem é um evento físico com enormes consequências sociais, ecológicas e materiais. Trata-se de um evento único: uma barragem não colapsa duas vezes ou, pelo menos, não colapsa duas vezes sob as mesmas circunstâncias. Como ocorre nos acontecimentos históricos, não é possível sua reprodução em laboratório. Por esse motivo, para compreender, prever e mitigar esse tipo de fenômeno, é pertinente o uso de modelos.

Um modelo físico é uma reprodução aproximada, em pequena escala, do evento verdadeiro. A proposta de Lisboa começa com um modelo físico, construído no IST, que pretende se assemelhar a um processo de rompimento de uma barragem de água por “galgamento”, isto é, quando o nível d’água no reservatório se eleva além da cota da crista da barragem (parte superior de contenção).

Para visualizar o modelo físico apresentado pelo IST, imaginemos uma caixa de 6 metros de comprimento, 1,20 metros de largura e 45 centímetros de altura. No extremo direito da caixa, envolvendo os últimos 2,20 metros do comprimento, colocamos “a barragem”. Esta é uma construção de 45 centímetros de altura, cujo corte longitudinal tem a forma de um trapézio, e cuja parte superior horizontal, chamada de “crista”, tem 17 centímetros de largura. Comecemos enchendo a caixa de água, exatamente até o topo dos 45 centímetros.  Diremos, então, que o “reservatório a montante” está cheio.

Em princípio, considerando que a barragem é impermeável (na prática, ela não é, mas podemos considerar que o escoamento da água em seu interior é muito lento), a água permaneceria no reservatório a montante para sempre. Entretanto, os experimentadores de Lisboa praticam um pequeno entalhe (incisão) em sua parte superior, mais precisamente no meio da crista, no sentido longitudinal da barragem. Naturalmente, a água que se encontrava no reservatório a montante passa a circular pelo entalhe, escoa sobre a superfície da barragem e começa a verter à direita, em outra caixa que chamaremos “reservatório a jusante”.

Evidentemente, este pequeno escoamento através da pequena incisão duraria pouco tempo, pois acabaria quando o nível da água a montante ficasse por baixo da altura da incisão. Entretanto, os experimentadores se preocupam em acrescentar água ao reservatório permanentemente, de maneira a manter seu nível a montante sempre igual (na medida do possível) a 45 centímetros.

Mais uma vez, parece que temos um processo que durará para sempre. Porém, há um fato que impede esta permanência: a passagem da água pelo entalhe (que, de agora em diante, chamaremos “brecha”) provoca uma erosão que gradualmente faz crescer o tamanho da brecha, tanto em profundidade como em largura. Ao longo do tempo, a brecha aumenta de forma e tamanho até que o reservatório fique praticamente destruído.

A seguir é o primeiro desenho que fizemos na nossa tentativa de entender o modelo físico de Lisboa, quando observado por cima.


Figura 1: Vista planar do sistema reservatório-barragem-reservatório

Esse foi o início de nosso trabalho a partir da ampla convocatória para grupos do mundo inteiro que o Workshop de Lisboa fez para elaborar modelos matemáticos do modelo físico construído pelo IST e que tentamos descrever mais acima. 

Lembremos que os modelos físicos são auxiliares para entender os processos históricos de rompimento de barragens. Entretanto, a construção de modelos físicos é extremamente cara e demorada no tempo. Vídeos fornecidos pelo IST mostram a forma rigorosa com a qual os materiais foram escolhidos para a construção da barragem e os sofisticados equipamentos usados para medir vazões, profundidades e cotas de fundo. Por isso é necessária a definição de modelos matemáticos, que são intrinsecamente rápidos e baratos, para emular o comportamento de modelos físicos, ou seja, simular esses comportamentos. Usamos a matemática para modelar um determinado fenômeno, assim como no artesanato, a argila pode ser usada para esculpir o que o artista vê ou imagina.

A convocatória de Lisboa foi dirigida a modeladores dispostos a encarar esse desafio. Na primeira etapa do processo, que culminou nos primeiros dias de novembro, foi fornecida aos modeladores uma quantidade moderada de dados, com o objetivo de que as primeiras vers˜oes dos modelos matem´aticos fossem programadas. Para a segunda etapa, Lisboa liberar´a mais medi¸c˜oes, que permitir˜ao “ajustar” os modelos ao comportamento efetivo do modelo f´ısico.

A participação do GT Engenharia Matemática no Desafio de Lisboa

Quando tomamos conhecimento da existência do Desafio de Lisboa decidimos que, apesar de nossa inexperiência no tema, deveríamos participar da proposta. Para isso, organizamos reuniões semanais, das quais grande parte do GT de Engenharia Matemática acabou participando, onde discutimos o problema, a bibliografia que nos parecia pertinente, esclarecemos dúvidas, colocamos propostas no início disparatadas e, depois, mais sensatas, organizamos nossa comunicação com Lisboa e nos dividimos informalmente em subgrupos fluidos para diferentes aspectos do desafio.

Os modelos matemáticos referentes a esse desafio devem encarar simultaneamente duas questões: “Como evolui o fluxo de água (profundidade e velocidade) dado um estado da brecha?” e “Como evolui a brecha em um instante do tempo como consequência do fluxo da água?” Isto significa que, pensando em uma abordagem idealmente bi-dimensional (duas dimensões espaciais), o “estado do sistema” envolve, em cada instante do tempo, o conhecimento da altura da lâmina d’água, de sua cota de fundo e da velocidade da água (Cota de fundo é a coordenada vertical do fundo sólido do reservatório em relação a um zero absoluto, digamos, o nível do mar. Portanto, o estado da brecha está bem representado pela cota de fundo em cada instante do tempo).

Quando consideramos que a cota de fundo não varia com o tempo, a evolução do fluxo de água se considera bem representado por “equações diferenciais parciais” conhecidas como “equações de águas rasas”, que representam uma versão bi-dimensional das famosas equações de Navier-Stokes, devidas a Claude-Louis Navier e George Gabriel Stokes, na primeira metade do século XIX. As técnicas para resolver estas equações, com auxílio computacional, variam muito em termos de precisão e complexidade. De uma forma geral, podemos afirmar que mesmo as técnicas mais populares e bem difundidas são não-triviais. Por outro lado, a consideração de uma cota de fundo variável com o tempo leva a problemas adicionais: Devem ser incluídas, na dinâmica do processo, leis que expressem a variação temporal da cota de fundo em função das demais variáveis de estado dos modelos.

Apesar destas complicações, quase todos os modelos apresentados pelos diferentes grupos que participaram do Desafio de Lisboa adotaram a abordagem de águas rasas bi-dimensionais com leis intrínsecas para a formação da brecha. As diferenças entre esses modelos apareceram na escolha destas leis e o ajuste preliminar dos parâmetros das mesmas para compatibilização com as informações disponíveis. Os programas elaborados pelos diferentes grupos que seguiram esta linha demoraram, em geral, várias horas de computação.

Nossa avaliação das condições específicas do problema nos levou a adotar um enfoque diferente. (De fato, a adoção de “águas-rasas-2D” pela maioria dos outros modeladores era desconhecida por nós até a reunião geral de novembro). Com efeito, conjeturamos que a geometria do problema faria possível a simplificação unidimensional, introduzindo uma lei adicional para computar a variação da largura da brecha, o que levaria a tempos computacionais moderados sem perda de precisão. Assim, nosso grupo trabalhou em duas linhas paralelas, embora ambas com a perspectiva unidimensional. 

Uma linha foi fortemente apoiada em um modelo consolidado para a formação de brechas, chamado DL-Breach. Este modelo analisa exaustivamente o emprego de relações constitutivas que permitem prever a evolução de uma brecha dependendo dos materiais da barragem, sua coesão ou falta dela, e considerações globais de vazão e profundidade.

A segunda linha considera o sistema reservatório-barragem-reservatório em uma única dimensão longitudinal, invoca as “equações de Saint-Venant”, que são a simplificação unidimensional das equações de águas rasas, e incorpora dinamicamente novas equações para a modificação da cota de fundo e a largura da brecha em cada instante do tempo. 

Com essas perspectivas submetemos nossas conclusões aos organizadores do workshop e apresentamos nosso trabalho junto com os outros grupos, na segunda semana de novembro de 2021.

As previsões fornecidas por nossos modelos para a profundidade e largura da brecha ao longo do tempo resultaram bastante adequadas e, de modo geral, com parecido nível de precisão que as dos modelos computacionalmente mais caros.

Na próxima etapa do Desafio de Lisboa serão fornecidos dados adicionais que devem permitir o “ajuste fino”, ou definitivo, dos modelos. Em outras palavras, todos os modelos têm parâmetros e coeficientes que, na primeira versão apresentada, foram tirados da literatura ou estimados sem a precisão mínima necessária a partir de fotografias enviadas pelos organizadores. Na próxima etapa haverá a possibilidade de calcular esses parâmetros e, talvez, outros, usando um conjunto de medições mais amplo e mais preciso. Para essa tarefa deverão ser usadas técnicas sofisticadas de otimização, cuja plausibilidade será facilitada pelo fato dos modelos matemático-computacionais adotados por nosso grupo rodarem rapidamente. Isto se deve a que, em essência, o processo de otimização e ajuste se assemelha a uma operação de ensaio e erro inteligentemente conduzida mas dependente de cálculos que envolvem rodadas completas dos modelos. Isto abre uma interessante oportunidade para modelos “baratos”, em contraposição aos baseados em águas rasas 2D.

De todos modos, o Desafio de Lisboa não se configura como uma competição mas como uma oportunidade de diferentes grupos interagirem, trocarem experiências e avançarem nas técnicas gerais de modelagem de rompimento de barragens, tema de interesse crescente no mundo inteiro por evidentes razões humanitárias e ambientais.

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