O que se conhece sobre a “cura gay”

Foi noticiado recentemente que a “cura gay” foi aprovada pela Comissão de Direitos Humanos da câmara. Alguns colegas pediram a minha opinião sobre o assunto e, portanto, resolvi expô-la aqui:

 

1. O que diz o projeto?

Na verdade este é um Projeto de Decreto, que tem como objetivo “sustar a aplicação do parágrafo único do Art. 3º e o Art. 4º, da Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 1/99 de 23 de Março de 1999”. O que estes artigos dizem é:

“Resolução nº 1/1999

Art. 3° – os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.
Parágrafo único – Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.

Art. 4º – Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica.”

Um esclarecimento: este projeto suprime apenas o parágrafo único do Art. 3º, e não ele inteiro.

 

2. O que o projeto está suprimindo?

Considerando que o projeto visa sustar somente o parágrafo único do Art. 3º, então ele não dá ao psicólogo o direito de tratar a homossexualidade como doença. Também não permite ações coercitivas para orientar homossexuais ou tratamentos não solicitados. Ou seja: mesmo que este decreto seja aprovado, homossexualidade continua não sendo uma doença e ninguém vai receber tratamento de reorientação sexual contra a sua vontade.

 

3. O que o projeto está permitindo?

No entanto, suprimindo o parágrafo único do Art. 3º, o projeto permite que “psicólogos colaborem com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”, e aí ele mesmo entra em contradição, pois se não há doença, não deveria haver cura. Entrarei em detalhes sobre estes possíveis tratamentos mais à frente.

Com relação ao Art. 4º, a supressão do mesmo acaba permitindo que os psicólogos se pronunciem publicamente de modo a “reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica”, o que é um absurdo. Mas absurdo mesmo é saber que já tem gente fazendo isso, como o pastor, psicólogo (e babaca) Silas Malafaia.

 

4. Existe tratamento de reorientação sexual?

A homossexualidade constava como transtorno mental no DSM (o manual que lista os diagnósticos psiquiátricos) até o ano de 1974, na sétima impressão da segunda edição. Antes disso, durante o desenvolvimento da psicologia, em especial a psicologia clínica, foram estudadas algumas técnicas para reorientação sexual, e alguns estudos de caso chegaram a ser divulgados na literatura científica. No entanto, nem todos obtiveram sucesso e hoje ainda não há um consenso sobre como deve ser realizada uma terapia com este objetivo.

Durante as décadas de 60 e 70 foram testadas algumas técnicas como dar choques ou medicamentos que induzem náuseas junto a imagens eróticas com o mesmo sexo. Outros métodos incluíam terapia pela fala e até mesmo eletroconvulsoterapia. Em 1972, foram descritas por John Marquis algumas técnicas para o tratamento da homossexualidade¹:

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Na mesma época, em 1974, George Rekers e Ivar Lovaas² chegaram a publicar um estudo de caso intitulado “Tratamento comportamental de comportamentos de papéis sexuais desviantes em uma criança masculina“. Aparentemente eles conseguiram bons resultados, mas não há um acompanhamento a longo prazo, ou seja, não sabemos o que aconteceu com o garoto nos anos futuros.

É importante acompanhar estes casos longitudinalmente por causa de exemplos como o de Kirk Murphy, que se tornou um adolescente isolado e antisocial que acabou cometendo suicídio aos 38 anos por ~~razões desconhecidas~~.

Estes tipos de intervenção deixaram de ser feitas a partir da década de 80 e hoje não há dados suficientes que comprovem a eficácia de técnicas psicológicas para mudar a orientação de uma pessoa homossexual para heterossexual. Além disso, a Associação Americana de Psicologia fez um levantamento dos estudos sobre técnicas de reversão e chegaram a conclusão de que elas não funcionam. É importante destacar este fato, pois eu me pergunto o que psicólogos como Marisa Lobo fariam para tratar seus pacientes homossexuais. Usariam a “psicologia cristã“?

 

5. Porque sou contra o projeto:

É possível alguém mudar sua orientação sexual? Talvez sim, assim como mudamos outros hábitos no curso de nossas vidas. Mas ainda não temos evidências científicas suficientes que possam provar isso. E ainda que fosse ou venha a ser praticamente possível, seria eticamente viável?

O projeto é polêmico por permitir que psicólogos pratiquem a reorientação sexual das pessoas que busquem esse tratamento. Pior ainda, ninguém sabe como fazer isso. Uma coisa é você permitir o desenvolvimento de técnicas e pesquisas controladas para este objetivo, outra coisa é deixar os psicólogos fazerem qualquer coisa, isso só traria mais prejuízos do que benefícios à população em geral.

 

Mais informações:

Na íntegra: Projeto de Decreto Legislativo de 2011
Jornal da Globo: ‘Cura gay’ é aprovada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara
Olhar Comportamental: Psicologia Cristã, Marisa Lobo e a Psicoterapia para Homossexualidade
Olhar Comportamental: Terapia para Homossexualidade – O Trágico Caso de Kirk Murphy
Pedro Sampaio: O que a Psicologia tem a dizer sobre a homossexualidade?
ScienceDirect: 5 Things You Should Know About Gay Conversion Therapy
University of California: Facts About Changing Sexual Orientation

¹ Agradeço ao Psicólogo César A. A. Rocha pela revisão deste post e disponibilização da imagem utilizada.

² Segundo o leitor Vinícius Garcia: “Não foi o Ivar Lovaas que publicou o estudo de 1974. Ele foi coautor orientador).  O autor é um tal de George Reekers, que, além de analista do comportamento, é também ministro da Igreja Batista e ativista pela terapia da reorientação sexual. O tal Kirk Murphy, mencionado no texto, que cometeu suicídio aos 38 anos, foi justamente o sujeito do estudo do Reekers. Esse tal Reekers, em 2010, após toda uma vida dedicada a oferecer terapia de reorientação sexual, foi flagrado num aeroporto norte-americano, viajando para a Europa com um garoto de programa de 20 anos a tiracolo.”

Discussão - 6 comentários

  1. Igor Chacon disse:

    Melhor texto que li até agora sobre o assunto. Parabéns. Não concordei com todas as reflexões, mas foi ótimo. Paz!

  2. […] exatamente o que é o projeto e o que ele significa para a prática psicológica, confira o blog  Psicológico do colega Felipe Epaminondas). Em outras palavras, um deputado federal que não é psicólogo […]

  3. Andre Souza da Silva disse:

    Epaminondas…E o Ato Médico, que foi aprvado? Acho q seria interessante um debate aqui no ScienceBlogs, especialmente com o Karl do Ecce Medicus…

  4. Chloe disse:

    Olá Felipe,
    tenho uma dúvida bem básica:
    – ex 1. Estou com dor de barriga, vou ao médico, ele faz o diagnóstico e me diz ‘faça isso’.
    – ex 2. Estou com dificuldade de lidar com alguma questão pessoal-psicológica, vou ao psicólogo. Seria inerente à função dele me dizer ‘faça isso’?
    Porque sempre achei que a função do psicólogo era conduzir a consulta com questionamentos que levassem o próprio paciente a olhar para suas questões de formas diferentes e assim ir organizando as idéias, seja descobrindo novas, seja reafirmando as antigas; descobrindo as SUAS respostas e caminhos.
    Ou no máximo mostrar resultados de pesquisas feitas sobre situações semelhantes à apresentada, já que um caso nunca vai ser exatamente igual ao outro.
    Mas não passa pela minha cabeça que um psicólogo possa dizer para o paciente o que ele deve, ou não, fazer! (isso é coisa de amigos, familia, rs… )
    Acho confusa essa questão toda, porque pra mim, se uma pessoa é gay E se incomoda com isso, nada a impede de ir a um psicólogo e contar o que a incomoda.
    Penso que cabe ao psicólogo ir questionando, por ex: ‘o que faz com que vc se sinta assim?’, ‘o que te incomoda exatamente’… enfim, não sou psicóloga, mas ir ajudando a pessoa a PENSAR melhor sobre tudo e com isso entender o que exatamente está incomodando.
    Talvez ela encontre ‘n’ outras situações a serem trabalhadas e a questão de gostar de alguém do mesmo sexo vai ser o menor dos problemas.
    Mas, como disse, é só uma opinião, sem nenhum conhecimento, base cientifica, …
    Talvez o que precise de cura seja apenas a falta de discernimento.
    : /

  5. CARLOS disse:

    Realmente, não há e nunca vai haver como curar um gay, assim como não houve cura para Sodoma e Gomorra.

  6. Anonimo disse:

    Acho que ser LGBT nao é uma questao de escolher pq nao é uma doença, nao me sinto doente por estar com uma mulher pois ja vivi muitos outros relacionamentos com Homens fui hetero quase uma vida inteira. Mais deixe-me apaixonar por uma mulher que eu mesma escolhi me apaixonar . Nao foi uma doenca e sim uma escolha… hj vivo muito bem me sinto completa com uma pessoa do mesmo sexo… eu achei q seria impossível eu amar ela quando iniciei mais hj posso dizer que aprendi o que é amar verdadeiramente. Nao me sinto doente e sim completa… e ceu ou inferno? Deus derramou o sangue de seu filho na cruz por nossos pecados e lá ficou o pecado… só ele vai julgar… mais será que ele vendo o amor sera q ele vai punirr um filho por amar?? Minha mae nao me punil ela é obreira ela apenas me abracou e disse que me amaria de todo jeito … será que Deus nao é capaz de amar logo ele que fez o amor e por amor entregou seu filho na cruz?? Nao acho q exista cura para o amor e sim escolhas. Vc escolhe amar quem quiser! Nao escolho a pornografia e sim o amor!!

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