Experimento mofado


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Muita coisa em ciência acontece por acaso. Quando há um misto de sorte e talento, muitas descobertas importantes são feitas. Mas não se engane, muito do que se descobre e se propõe em ciência não é único, e poderia ter sido ou foi feito por mais de uma pessoa. Darwin divide com Alfred Russel Wallace a Teoria da Seleção Natural, Hugo de Vries e Carl Correns chegaram às mesmas conclusões que Mendel, só para descobrir em 1900 que um monge já tinha feito isso 35 anos antes. Gosto da descoberta da penicilina por isso, além de ser um dos medicamentos que mais salvou vidas, sua descoberta envolveu altos e baixos, além de muita “sorte”.

John Tyndall, um famoso médico inglês, estudava em 1875 a distribuição de bactérias na atmosfera expondo tubos de ensaio com caldo de carne. Em alguns tubos cresceu um simpático fungo, o Penicillium, e Tyndall notou que onde o fungo crescia, as bactérias morriam. Ele deu sorte, os fungos cresceram por acaso em seu experimento, mas naquela época ainda não se sabia que bactérias poderiam causar doenças, de maneira que o fato foi tomado como uma curiosidade e deixado de lado.

Mais dois relatórios, um de 1896 e outro de 1925 descreveriam a relação entre Penicillium e a morte de bactérias, mas ainda não seria o caso da descoberta da penicilina…

Alexander Fleming, sujeito sortudo.
Alexander Fleming, sujeito sortudo.

Escocês nascido em 1881, Alexander Fleming não era nenhum grande gênio. Bom estudante, formou-se em medicina e trabalhou a sua vida inteira no mesmo hospital. Por ser bom em tiro e para não causar um desfalque no time da universidade, entrou no cargo de assistente bacteriologista de Almroth Wright no St Mary’s Hospital, permanecendo no time.

Trabalhando com estafilococos em 1928, ao preperar placas para o crescimento desta bactéria, contaminou sua amostra com esporos de um fungo. Deixou suas amostras na bancada e partiu para duas semanas de férias. Quando voltou para o laboratório, notou que algumas placas haviam fungado, e ao redor do fungo não cresciam estafilococos. Ao invés de jogar fora a placa, resolveu estudar as propriedades daquele fungo. Desde 1920 estudava as propriedades bactericidas da lisozima, uma enzima que liberamos no muco, que tem propriedades bactericidas, de maneira que sua linha de pensamento já estava voltada para o combate a microorganismos, mostrando que sorte apenas não basta.

Penicillium notatum inibindo o crescimento de bactérias.
Penicillium notatum inibindo o crescimento de bactérias.

Vamos à uma breve amostra do tamanho da sorte envolvida. 1- Normalmente a contaminação por fungos seria mais difícil, mas coincidentemente no andar inferior do mesmo prédio estavam trabalhando com o fundo Penicillium notatum e enchendo o prédio todo de esporos. 2- Conforme se descobriu depois, nem todos os Penicillium sp. produzem penicilina, e na espécie Penicillium notatum isso também não é tão comum, trata-se de uma característica da linhagem que contaminou as amostras de Fleming. 3- Se os esporos tivessem caído depois do crescimento da colônia de estafilococos, não teriam se desenvolvido, uma vez que estafilococos são capazes de inibir o crescimento de fungos. 4- Em qualquer outro dia de trabalho, Fleming teria colocado suas placas para crescer na incubadora, a 38°C, temperatura na qual os estafilococos crescem em um dia e na qual o Penincillium é incapaz de crescer. As amostras só cresceram em temperatura ambiente porque Fleming ia ficar fora por duas semanas, e podia esperar o crescimento mais lento. Poucos dias antes e nem isso seria suficiente, pois Londres passava por uma onda de calor, que terminou pouco antes de suas férias. 5- Dependendo do tipo de bactéria que estivesse sendo cultivada, a penicilina poderia ser ineficaz.

Intrigado com a substância que chamou de penicilina, Alexander Fleming fez vários testes, descobrindo que ela matava diversos tipos de bactérias. Misteriosamente, não a testou contra a espiroqueta causadora da sífilis, que o fez famoso e rico como médico, utilizando o tratamento com Salvarsan – o tratamento com Salvarsan envolvia injeções semanais durante um período de 1 ano e meio, enquanto a penicilina cura sífilis em poucas semanas. Sabe aquela piada do médico que não pode curar o doente para não perder a clientela?

Desmotivado pelo curto perído de duração do princípio ativo da penicilina, e pensando apenas no uso tópico, sem conceber a ingestão e tratamento generalizado que a substância poderia provir, Fleming publicou em 1929 um artigo descrevendo as propriedades bactericidas da penicilina e depois se desinteressou do estudo, mantendo consigo a linhagem do Penicillium notatum que posteriormente forneceu a diversos pesquisadores.

Outros pesquisadores leram o trabalho de Fleming e deram continuidade à pesquisa, parando em seguida. Em 1939, Ernst Boris Chain, aluno de Howard Florey, se interessou pelo trabalho de Alexander Fleming e acabou conhecendo a pesquisadora Campbell-Renton no corredor da Universidade de Oxford. Ela estava levando um frasco do mofo de Alexander Fleming, que havia pedido anos antes para estudar e já não usava mais.

Chain, Floreye e seu laboratório começaram a trabalhar com o mofo, testaram métodos diferentes de cultivo, processos de purificação e estocagem de penicilina, concentrações diferentes, além da atividade contra várias bactérias em ratos, coelhos e posteriormente em pessoas. Acabaram desenvolvendo o método de fabricação que permitiu a distribuição de penicilina durante a Segunda Guerra Mundial, o que salvou muitas vidas do maior mal da guerra, os ferimentos. Se envolveram numa colaboraçãocom americanos, que se tornou disputa pela patente da droga, mais um dos vários elementos que dificilmente ficam de fora na história de um Nobel.

Em 1945, o prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia foi dado para Alexander Fleming, Ernst Boris Chain e Howard Florey. Fleming chegou a reconhecer que seu papel no prêmio foi o de descobrir a droga, mas desfrutou bastante da fama e dos falsos créditos que recebeu, chegando a colecionar histórias erradas a seu respeito em um álbum.

Hoje em dia, diversas outras drogas foram isoladas de microorganismos, como a estreptomicina, e outras foram sintetizadas. Mas a disputa contra as bactérias está muito longe de ser vencida. Após um período de efetivo combate, grande parte das bactérias já são resistentes a algum tipo de antibiótico, e outras, como algumas linhagens de Mycobacterium tuberculosis são virtualmente resistentes a todos antibióticos disponíveis, e continuam matando milhões de pessoas todos anos.


3 responses to “Experimento mofado”

  1. Tinha pensando em escrever sobre isso, mas não seria o lablogueiro mais apropriado.
    Muito bom artigo, desde o título!

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