A Descoberta do HIV


O prêmio Nobel de medicina e fisiologia deixou de lado um dos descobridores do HIV na premiação. Acompanhe a descoberta e o isolamento do vírus e entenda o que motivou essa decisão.

Fim dos anos 70, começo da década de 80. Após a revolução sexual de 70, o movimento gay estava em pleno crescimento. Muitos gays se relacionavam com mais de 100 parceiros por ano sem camisinha, afinal, não há o risco de gravidez. Também crescia o uso de drogas injetáveis, com seringas sendo compartilhadas por diversos usuários, que evitavam a prisão por porte de um kit para injetar próprio.

Doenças antes restritas a uma parcela pequena da população começaram a se espalhar muito mais facilmente, tanto pelo contato sanguíneo quanto pelo contato sexual. Imagine que em alguns casos, um homem podia ter mais de 500 parceiros em um ano, graças a festas em saunas gays em cidades com São Francisco, Califórnia.

Nos Estados Unidos e na Europa começaram a surgir casos de pacientes homens, com cerca de 30 anos, sofrendo de doenças que até então atacavam apenas idosos e recém-nascidos – imunocomprometidos – como candidíase generalizada, pneumonia causada por Pneumocystis carinii, citomegalovirose, e em alguns casos, uma forma de câncer rara que só acometia idosos – o sarcoma de Kaposi. Ao analizar o sistema imune destes pacientes, uma surpresa, embora boa parte dos glóbulos brancos estivessem bem, havia um misterioso sumiço de linfócitos T – especificamente linfócitos T CD4+. Os linfócitos T são as células que fazem a interação do sistema imune com patógenos, e sem eles o sistema imune dos doentes era incapaz de atacar micróbios inofensivos para a maioria das pessoas. O doente sofria de uma infecção generalizada, morrendo em decorrência de micróbios oportunistas.

Os perfis dos pacientes, a grande maioria homossexual, e os padrões epidemiológicos indicavam que fosse uma doença sexualmente transmitida, que passou a ser chamada de GRID (Gay-Related Immunodeficiency Disease), doença da imunodeficiência relacionada aos gays. Mais tarde se percebeu que a doença poderia afetar também os usuários de drogas injetáveis (UDI). Além dos usuários de drogas, os hemofílicos, que utilizavam frequentemente bolsas de sangue, muitas das quais com sangue de UDIs que doavam sangue pelo dinheiro pago. A transmissão sexual não também não era restrita aos gays, começavam a surgir casos entre heterossexuais, e consequentemente, casos de transmissão vertical, de mãe para filho, nos casos de usuárias de drogas e prostitutas contaminadas. Tais formas de transmissão fizeram com que o CDC (Center of Disease Control and Prevention), órgão americano de saúde pública, mudasse o nome da misteriosa doença para AIDS (Acquired ImmunoDeficiency Syndrome) ou Síndrome da Imunodeficiência Adquirida [1].

Robert Gallo
Robert Gallo

Em 1981, numa palestra do CDC sobre a nova doença, Jim Curran lançou o desafio “onde estão os virologistas?”. Isso chamou a atenção de um ouvinte da platéia, Robert Gallo. Gallo havia isolado em 1979 um vírus que infectava linfócitos T e causava leucemia, que chamou de HTLV-1 (Human T lymphotropic virus type 1) [2]. Ao ouvir de uma doença transmitida sexualmente, verticalmente e por contato sanguíneo – as mesmas formas de transmissão do HTLV-1 – que destruia linfócitos T e aparentemente havia surgido na África, como se estava descobrindo, Gallo pensou tratar-se de uma outra variedade de HTLV e pôs-se a estudar a AIDS.

Luc Montagnier
Luc Montagnier

Na mesma época, no Instituto Pasteur de Paris, Luc Montagnier também estudava a AIDS. Em janeiro de 1983, sua aluna Françoise Barré-Sinoussi isolou células do linfonodo do pescoço de um estilista fracês que sofria de linfadenopatia associada à AIDS, chamado Frederic Brugiere, cuja amostra foi chamada de BRU. Barré-Sinoussi conseguiu detectar nessa amostra a atividade da enzima transcriptase reversa. Essa enzima produz DNA a partir de RNA, processo inverso ao que nossas células fazem – daí o nome reversa – e a só era encontrada numa classe especial de vírus, os retrovírus – que recebem esse nome porque possuem RNA como material genético e o transformam em DNA. O cultivo das células de BRU só foi possível com o uso do estimulante de linfócitos interleucina 2 descoberto por Robert Gallo [3] – como o próprio Montagnier reconhece em um artigo de 2002 [4]. Na época, os únicos retrovírus conhecidos eram o HTLV-1 e HTLV-2, descobertos e estudados por Gallo, o que deu início a uma longa e conturbada colaboração entre os laboratórios.

Em maio de 1983, Barré-Sinoussi e Montagnier publicaram um artigo mostrando que o vírus isolado não reagia aos anticorpos anti-HTLV de Gallo, mas reagia aos anticorpos do paciente. Por se tratar de um vírus diferente, chamaram-no de LAV (Lymphadenopathy-Associated Virus ou vírus associado à linfadenopatia) [5] mostrando mais tarde que ele era mais próximo de retrovírus animais, os Lentivírus. Robert Gallo, correndo atrás do prejuízo, conseguiu isolar HTLV-1 de pacientes com AIDS, mas de apenas 2 em 33 casos [6]. Aparentemente o HTLV-1 estava associado mas não causava a doença.

Gallo solicitou amostras a Montagnier e disse que os vírus do francês não cresciam em cultura celular. Em abril de 1984, a então secretária do Departamento americano de Saúde e Serviços Humanos (DHSS), Margaret Heckler, anunciou orgulhosamente que Gallo havia descoberto o causador da AIDS, um retrovírus que ele havia chamado de HTLV-3 numa publicação recente [7] – aparentemente na apresentação foram usadas imagens do LAV de autoria de Montagnier. Segundo o próprio Gallo em um artigo de 2002, ele foi chamado às pressas para o peonunciamento e ela infelizmente não mencionou o trabalho de Luc Montagnier [8]. O grupo do americano desenvolveu um método de cultivo do vírus em células eternizadas que produziam muito mais vírus, a partir do qual foi possível o teste e descarte de bolsas de sangue contaminadas, além de trabalhos que mostraram que o HTLV-3 era o causador da AIDS [9] e [10].

Em 1985, o sequenciamento dos genes de LAV e HTLV-3 mostrou que os vírus eram praticamente idênticos, diferindo em menos de 2%. Já era sabido que esse vírus mutava muito, diferindo mais de 5% dentro de uma mesma pessoa. As duas amostras só podiam ser o mesmo vírus. A princípio, Gallo acusou Montagnier de se apropriar de seu vírus em amostras que teria enviado para o laboratório na França, apesar da publicação anterior do grupo francês, e de não estar clara a origem da amostra de HTLV-3. O CDC acabou nomeando o vírus de HIV (Human Immunodeficiency Virus) ou vírus da imunodeficiência humana em 1986, deixando de lado a disputa pela autoria da descoberta.

Ainda em 1985, Gallo depositou a patente do teste para HIV, e foi processado pelos fraceses, uma vez que o vírus utilizado no teste era o LAV de Montagnier. A disputa só foi resolvida em 1987, com a intervenção do presidente americano, Ronald Reagan, e do primeiro ministro francês, Jacques Chirac. Em 1988 ambos os pesquisadores concordaram em dividir meio-a-meio o direito sobre as patentes.

Em novembro de 1989, John Crewdson escreveu um longo artigo no jornal Chicago Tribune acusando o americano de ter roubado o vírus da equipe francesa, além de ter comprometido a vida de diversos transfundidos ao manter a disputa pela patente do teste para HIV, que segundo Crewdson não era confiável. Posteriormente a acusação foi escrita na forma de um livro, “Science Fictions”, que segue o mesmo tom forte de acusações a Gallo de apropriação de trabalho alheio, inclusive nos trabalhos anteriores com HTLV-1.

Em 1990, o NIH iniciou através da Roche um processo de investigação para traçar a origem do vírus LAV/HTLV-3. Em um artigo de 1993 na revista Nature [11], saiu o duro veredito, as amostras eram do laboratório francês. Uma amostra de um paciente gay com saroma de Kaposi (LAI) continha um vírus extremamente agressivo que havia contaminado a amostra BRU de Montagnier, a mesma amostra que foi enviada para Gallo. Na melhor das hipóteses, a amostra LAI também teria contaminado as culturas de HIV do laboratório americano. Na pior, um aluno de Gallo que passou pelo laboratório francês teria roubado o vírus, e a análise das sequências dos vírus pegou-os no flagra.

Em 1995, Gallo descobriu que o HIV precisa de um receptor (CD4) e um correceptor para entrar nas células, no caso o CCR5 [12]. Com as descobertas de Robert Gallo e Luc Montagnier, foi possível em 1987 o desenvolvimento da primeira droga anti-HIV, o AZT, e em 1995 a introdução da terapia com três drogas, o HAART, que até hoje possibilita uma qualidade de vida muito maior para os portadores de HIV.

O isolamento do vírus HIV é digna do prêmio Nobel, e isso já era sabido desde a década de 90. Porém, o prêmio dificilmente é concedido para descobertas onde há controvérsia ou disputa envolvidas. A disputa de autoria entre Gallo e Montagnier foi resolvida apenas 25 anos depois, com a atribuição do prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia para Françoaise Barré-Sinoussi e Luc Montagnier em 6 de outubro de 2008. O prêmio também foi dado a Harald zur Hausen pela descoberta de que o HPV causa câncer de colo de útero – prometo discutir mais tarde isso. Depois de ter recebido diversos prêmios pela descoberta do HIV, muitos dos quais não citaram Montagnier, Robert Gallo sequer foi mencionado e disse estar desapontado por não participar do Nobel, mas entende que só 3 pessoas podem ser premiadas em uma categoria no mesmo ano. Já Luc Montagnier, disse elegantemente que Gallo “…mereceu tanto quanto nós.”.

[update] Para quem acha que hoje em dia o HIV não é mais problema para os mais informados, vale uma lida na descrição da Ester sobre o barebacking (algo como montar sem cela), a prática de festas sem camisinha onde há soropositivos para apimentar o clima com medo.

Fonte:

[1] Para uma ótima descrição do contexto em que surgiu o HIV, além de um registro completíssimo sobre divesas doenças, recomendo “A próxima peste”, de Laurie Garret.

[2] Poiesz, Bernard J., Francis W. Ruscetti, Marvin S. Reitz, V. S. Kalyanaraman, and Robert C. Gallo. “Isolation of a new type C retrovirus (HTLV) in primary uncultured cells of a patient with Sezary T-cell leukaemia.” Nature 294, no. 5838 (November 19, 1981): 268-271. doi:10.1038/294268a0

[3] Morgan, DA, FW Ruscetti, and R Gallo. “Selective in vitro growth of T lymphocytes from normal human bone marrows.” Science 193, no. 4257 (September 10, 1976): 1007-1008. doi:10.1126/science.181845.

[4] Montagnier, Luc. “HISTORICAL ESSAY: A History of HIV Discovery.” Science 298, no. 5599 (November 29, 2002): 1727-1728. doi:10.1126/science.1079027.

[5] Barre-Sinoussi, F, JC Chermann, F Rey, MT Nugeyre, S Chamaret, J Gruest, et al. “Isolation of a T-lymphotropic retrovirus from a patient at risk for acquired immune deficiency syndrome (AIDS).” Science 220, no. 4599 (May 20, 1983): 868-871. doi:10.1126/science.6189183.

[6] Gallo, RC, PS Sarin, EP Gelmann, M Robert-Guroff, E Richardson, VS Kalyanaraman, et al. “Isolation of human T-cell leukemia virus in acquired immune deficiency syndrome (AIDS).” Science 220, no. 4599 (May 20, 1983): 865-867. doi:10.1126/science.6601823.

[7] Popovic, M, MG Sarngadharan, E Read, and RC Gallo. “Detection, isolation, and continuous production of cytopathic retroviruses (HTLV-III) from patients with AIDS and pre-AIDS.” Science 224, no. 4648 (May 4, 1984): 497-500. doi:10.1126/science.6200935.

[8] Gallo, Robert C. “HISTORICAL ESSAY: The Early Years of HIV/AIDS.” Science 298, no. 5599 (November 29, 2002): 1728-1730. doi:10.1126/science.1078050.

[9] Schupbach, J, M Popovic, RV Gilden, MA Gonda, MG Sarngadharan, and RC Gallo. “Serological analysis of a subgroup of human T-lymphotropic retroviruses (HTLV-III) associated with AIDS.” Science 224, no. 4648 (May 4, 1984): 503-505. doi:10.1126/science.6200937.

[10] Gallo, RC, SZ Salahuddin, M Popovic, GM Shearer, M Kaplan, BF Haynes, et al. “Frequent detection and isolation of cytopathic retroviruses (HTLV-III) from patients with AIDS and at risk for AIDS.” Science 224, no. 4648 (May 4, 1984): 500-503. doi:10.1126/science.6200936.

[11] Chang SP, Bowman, BH, Weiss, JB, Garcia, ER, TJ White et al. “The origin of HIV-1 isolate HTLV-IIIB.” Nature 363, 466 – 469 (03 June 1993); doi:10.1038/363466a0.

[12] Cocchi, Fiorenza, Anthony L. DeVico, Alfredo Garzino-Demo, Suresh K. Arya, Robert C. Gallo, and Paolo Lusso. “Identification of RANTES, MIP-1alpha, and MIP-1beta as the Major HIV-Suppressive Factors Produced by CD8+ T Cells.” Science 270, no. 5243 (December 15, 1995): 1811-1815. doi:10.1126/science.270.5243.1811.


15 responses to “A Descoberta do HIV”

  1. bela revisão da história, obrigada! vim aqui sabendo que encontraria uma análise interessante, mas você contou uma história ainda mais bem contada do que eu esperava.
    você já leu o “Minha terra”, do abraham verghese?

  2. Obrigado Maria! Só posso dizer que deu trabalho 🙂 Nunca li, mas fiquei curioso. Adoro relatos sobre o surgiumento de epidemias.

  3. Sensacional história! Eu não tinha entendido bem porque o Gallo tinha ficado de fora. Só depois do texto do Igor na Folha (que eu li pelo Jornal da Ciência) e esse texto que tudo ficou mais claro.

  4. é um livro sensacional, mas a última vez que procurei estava esgotado. talvez em sebos, se não tiverem feito uma leva nova. o verghese era médico no interior dos eua quando começaram a surgir casos daquela coisa que ninguém sabia o que era. logo se especializou no assunto. o relato é lindo e riquíssimo tanto em termos médicos como humanos.

  5. Não foi esse o único Nobel desse ano com controvérsias: alguns alegam que esqueceram um italiano na Física… Bem, de qualquer modo, parabéns pelo texto, mas cuidado com escorregadinhas (verifique num dicionário a palavra “descrissão”).
    Um abraço!

  6. Este caso da disputa da “patente” do vírus é, para mim, só mais um dos exemplos de que o mundo está perdido. Não deveria haver um copyleft básico para estas coisas? Céus!

  7. Documentario maravilhoso. Pena que não se anuncia os cuidados, e a galera continua caindo no mesmo passo que os outros.Na hora do pega pra capá, ninguem consegue dizer não ou vou colocar a camisinha, o pior de tudo que mesmo sabendo, mesmo sendo informados, a juventude se arrisca a confiar no seu parceiro. Isso é uma realidade que está bem perto de todos( o errar sabendo das consequencias)infelizmente ta acontecendo!!!.

  8. Enquanto as opiniões se dividem, podemos ver os que crêem e os que não. Sim, existem os que não crêem na existência do HIV, atribuindo à tal concepção a explicação da ganância das indústrias farmacêuticas e acadêmicas, descobridoras do que nunca existiu. Enquanto isso, muitos outros, crêem cegamente, não questionando, apenas correndo atrás de dados atualizados sobre o assunto. Certamente que o discurso seria outro quando escrito por alguém que foi diagnosticado HIV+ e que somente gostaria de ver a erradicação disso tudo.

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