O acaso e a vida


Biologia é uma ciência na fronteira do exato. Predizer freqüências de alelos em uma população parece fácil – lembra do cruzamento AaxAa? – mas na prática tudo muda. Seres vivos não são simples, e são governados por reações químicas. As reações químicas costumam ser catalizadas por enzimas, moléculas capazes de acelerar uma reação.

O que nem sempre pensamos é como essa reação acontece. Pense numa enzima bem simples, a catalase. Ela acelera a formação de 2H2O e 02 a partir de 2 H2O2, ou seja, transforma água oxigenada em água normal e oxigênio gasoso. Mas como ela faz isso? Aproximando as moléculas de água oxigenada na posição que mais favorece a reação. Mas isso tudo depende do acaso, um processo chamado estocástico.

As reações químicas são processos estocásticos, dependem de a molécula certa colidir com o local certo na hora certa. Por isso quando aquecemos uma mistura aceleramos reações, estamos agitando mais as moléculas e aumentando o número de colisões, com isso aumentamos a freqüência das colisões certas. Como processos estocásticos, as mesmas reações podem variar em tempos completamente diferentes.

Movimento da Caenorhabditis elegans.
Movimento da Caenorhabditis elegans.


Veja o caso do verme C. elegans: Modelo biológico bem conhecido, foi utilizado num experimento para o estudo aa variação de longevidade. Uma linhagem isogênica, ou seja, geneticamente idêntica, foi criada com a proteína fluorescente GFP – mais um dos vários experimentos que usam GFP, motivo do Nobel de Química de 2008. A GFP foi inserida logo antes de uma proteína chamada HSP-16.2. As HSPs ou heat shock proteins são proteínas produzidas em resposta ao calor que ajudam as células a manter o funcionamento normal sob estresse por calor. Dessa forma, quando a temperatura é elevada de 20°C para 35°C (bem desconfortável para o C. elegans) o verme passa a expressar a HSP-16.2 e brilhar na cor verde. Embora os vermes sejam geneticamente idênticos, o brilho emitido varia bastante. Vermes que brilharam pouco, viveram em média 16 dias sob estresse por calor, enquanto os que mais brilharam viveram em média 24 dias, uma sobrevida de 50%. Ou seja, por acaso, pela sorte, por processos estocásticos, alguns vermes foram capazes de viver bem mais do que seus companheiros idênticos, pela simples flutuação na expressão de uma proteína [1].

Por causa de tais flutuações, conseguir modificar um organismo e obter uma resposta uniforme é algo bem difícil. Na bilogia sintética, ciência que trabalha com a construção de organismos com características desejadas, a variação e complexidade dos seres vivos é um grande empecilho. Agora acompanhe o vídeo abaixo:

São células de E. coli, bactéria mais do que comum em experimentos moleculares, que tiveram um fragmento circular de DNA chamado plasmídeo inserido dentro delas. Esse plasmídeo contém uma série de genes ativados por um açúcar chamado arabinose, entre eles o gene da proteína GFP (mais uma vez). Quando em contato com o açúcar, os genes são ativados para digerir o açúcar e a bactéria brilha cada vez mais. Quanto mais expresso o gene, mais ele reprime a expressão de novas cópias, num processo de feedback negativo, até o ponto em que os genes do plasmídeo deixam de ser expressos e a bactéria para de brilhar. O ciclo de ativação e inibição dos genes do plasmídeo na presença de arabinose promovem a oscilação na expressão de GFP e por conseqüência, no brilho.

Além da surpresa do mecanismo em si funcionar – o que já vimos que não é nada simples quando tratamos de seres vivos – alguns resultados foram inesperados. Aumentar a concentração de açúcar no meio não aumentou a freqüência do ciclo, pelo contrário, diminuiu. Também é estranho o fato do ciclo ser estável em diferentes temperaturas e se manter independentemente do número de divisões que as bactérias estivessem fazendo. Experiências anteriores davam a entender que o ciclo de brilho deveria ser interrompido por variações externas facilmente.
Para explicar um ciclo tão robusto, foi necessário levar em consideração diversos fatores como taxa de degradação de DNA, RNA e proteínas. Fica o aviso para a biologia sintética, estamos caminhando, é possível produzir ciclos biológicos, mas não se pode fazer toda a simplificação que era esperada[2].

Biologia é uma ciência na fronteira do exato.

Fontes:

The Loom

[1] Shane L Rea et al., “A stress-sensitive reporter predicts longevity in isogenic populations of Caenorhabditis elegans,” Nat Genet 37, no. 8 (2005): 894-898, doi:10.1038/ng1608.

[2] Jesse Stricker et al., “A fast, robust and tunable synthetic gene oscillator,” Nature (October 29, 2008), doi:10.1038/nature07389.


3 responses to “O acaso e a vida”

  1. Olá Atila
    Sou estudante de Biologia e sou apaixonada por ciência também. Bom… vou direto à pergunta, gostaria de saber como ocorre um processo estocástico. Gostaria também que me desse algum exemplo disto!
    Obrigada pela atenção.

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