Prevenindo a infecção feminina por HIV


Anote aí, temos uma pequena virada de jogo contra o HIV.

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Adaptado de Unicef.

Embora o HIV seja um dos vírus mais estudados e entendidos, ainda estamos longe de nos livrarmos da ameaça da AIDS. As mulheres são muito mais suscetíveis ao vírus do que os homens, pois
possuem uma área de contágio muito maior – a vagina e o útero, enquanto a
parte mais exposta do homem é a glande – e o tempo de contato com o
vírus é mais prolongado – enquanto o esperma estiver dentro dela.
A predominância de HIV em homens no Brasil acontece porque o vírus começou infectando gays, mas a diferença entre os sexos tem diminuído.

Poucas foram as formas de combate desenvolvidas até hoje, e nenhuma delas é definitiva. As drogas anti-retrovirais são eficazes até certo ponto, de modo que o paciente com o vírus precisa tomar várias ao mesmo tempo (daí o coquetel), afim de se evitar o surgimento de vírus resistentes.
Como o HIV é um vírus com uma taxa de mutação altíssima, consegue escapar tanto da droga quanto do sistema imune –  uma consequência ruim dela (ruim para o vírus) é que muitos vírions (nome que se dá para uma partícula viral) produzidos todos os dias são inviáveis pois possuem mutações que mais atrapalham do que ajudam.

Quanto mais se ignora as características do HIV e se tenta aplicar métodos tradicionais, que funcionam para outros vírus, menor o sucesso. Apesar de muito estudo e pesquisa, ainda não temos uma forma de prevenir a infecção por HIV além da camisinha. Anti-microbianos e vacinas já foram muito testados, mas nenhum se mostrou eficaz até hoje. Na verdade, uma das vacinas que estava sendo desenvolvida aparentemente aumentou as chances de contaminação por HIV, mas isso fica para outro texto.

Mas isso esta prestes a mudar. Conheça a descoberta que pode prevenir a infecção feminina. (E olha que não costumo acreditar em terapias anti-HIV) Clique no read on

Trabalhando com o SIV/rhesus (simian immunodeficiency virus), um parente próximo do HIV que infecta macacos reso, um grupo da University of Minnesota já havia demonstrado que uma pequena população do vírus na vagina das fêmeas era suficiente para transmissão do vírus. O macaco serve de modelo para o desenvolvimento de terapias que bloqueiam a infecção pois a imunologia e fisiologia do trato vaginal é parecida com a humana.

O desafio do trabalho foi entender o que se passa entre o contato vaginal com o vírus e a infecção sistêmica. As células alvo do HIV são as células do sistema imune, principalmente os linfócitos T que expressam as proteínas CD4, os linfócitos T CD4+, de maneira que quando o vírus consegue atingir tecidos linfáticos (TL), onde estão os linfócitos, é um ponto sem volta. Quando o vírus entra no corpo através da corrente sanguínea, como em usuários de drogas injetáveis, ele rapidamente se estabelece em tecido linfático. Já quando o contato é via sexual, há uma demora na detecção do vírus em TL, o que indica uma defesa do organismo no trato genital.

Eles inocularam a vagina de fêmeas de macaco reso com grandes quantidades de vírus, mas ao medir o número de células infectadas, viram que poucos vírus haviam obtido sucesso. Isso mostra o papel importante da barreira mucosa vaginal na proteção contra agentes infecciosos. – Vale também lembrar que há aquela diferença entre o número total de partículas virais e o número de partículas viáveis.

Disso se conclui que uma pequena população do vírus que consegue se estabelecer na vagina é responsável por toda a infecção. A carga viral do tecido genital continuava baixa durante os primeiros 4 dias após a inoculação.

Este momento é crucial no combate ao HIV, uma vez que com poucas células infectadas as chances de eliminá-lo são maiores. Os primeiros dias após o contato vaginal com o vírus são um momento de vulnerabilidade do vírus, e qualquer medida que reduza ainda mais o número de vírions que consegue infectar as células pode impedir a sua transmissão. [1]

A próxima pergunta foi: como o vírus consegue se estabelecer e infectar tecidos linfáticos, apesar da grande redução numérica ao atravessar a mucosa? O que muda no período de 5 a 6 dias após a infecção, quando o vírus começa a se replicar de fato? Será que esse espalhamento é difuso e inevitável, ou será que se dá em etapas que podem ser usadas contra o vírus?

Aqui entra a técnica simples mas bem bolada do segundo artigo. Eis o que acontece quando se entende o vírus e se utiliza os mecanismos dele a nosso favor:

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Localização do SIV no útero, clique para ampliar ©Nature [2]

Para entender o espalhamento do vírus, desta vez os pesquisadores infectaram as fêmeas e detectaram o vírus diretamente nos tecidos vaginais e uterinos. O que eles encontraram foram pequenos focos de vírus no canal cervical, a entrada do útero, que foram aumentando ao longo dos dias após a infecção.

Ou seja, é um processo gradual e localizado! Próximo passo: como o vírus consegue se espalhar lá pelo sexto dia?

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Cortes do útero após 1 (b) e 4 (c) dias de infecção. ©Nature [2]

Comparando os cortes de tecido uterino dias após a inoculação, os pesquisadores perceberam a chegada de um número crescente de células do sistema imune, típico de uma infecção. Adivinhe qual o tipo de célula que apareceu por lá.

Ele mesmo, o linfócito CD4+. A inflamação local e a sinalização feita pelas células nas redondezas do foco do SIV atraem linfócitos CD4+, que são justamente as vítimas do vírus. Repare na figura acima como aumenta o número de linfócitos (corados em marrom) no local da infecção.

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Vem cá! Vem cá! Te dá uma balinha! Vem cá!

Pois é, o vírus infecta um grupo de células que gera uma resposta que atrai mais vítimas para o local. Graças aos linfócitos CD4+ recém chegados, ele consegue se espalhar e fazer a infecção sistêmica.

Agora o gran finale. Que tal utilizar uma molécula que iniba a resposta imune, de forma que os linfócitos não serão chamados para o perigo? Melhor ainda se for uma molécula bem conhecida, utilizada em alimentos, e presente inclusive no leite humano. Esta molécula é o monolaurato de glicerol (GML), utilizado até em sorvetes.

Ao aplicar o GML misturado ao lubrificante K-Y nas fêmeas, repetidas inoculações com SIV não foram bem sucedidas, o monolaurato de glicerol impediu as macacas de serem contaminadas. Mesmo entre macacas que foram expostas 4 vezes, com grandes doses de vírus, nenhuma contraiu a infecção. Enquanto as macacas tratadas apenas com o K-Y, sem GML, contraíram. Detalhe, cada dose de GML custou menos de 1 centavo de dólar.[2]

Com isso, se abre uma nova forma de combater o HIV, prevenir a infecção feminina. Através do uso de anti-inflamatórios que inclusive podem ser incorporados nos lubrificantes íntimos, e com um baixo custo. Nada como conhecer o inimigo.


Resta ainda saber a consequência da exposição prolongada da cavidade vaginal à anti-inflamatórios, bem como o possível efeito disso em outras doenças
.

Fontes:

[1] Miller, Christopher J., Qingsheng Li, Kristina Abel, Eun-Young Kim, Zhong-Min Ma, Stephen Wietgrefe, Lisa La Franco-Scheuch, et al. “Propagation and Dissemination of Infection after Vaginal Transmission of Simian Immunodeficiency Virus.” J. Virol. 79, no. 14 (July 15, 2005): 9217-9227

[2] Li, Qingsheng, Jacob D. Estes, Patrick M. Schlievert, Lijie Duan, Amanda J. Brosnahan, Peter J. Southern, Cavan S. Reilly, et al. “Glycerol monolaurate prevents mucosal SIV transmission.” Nature 458, no. 7241 (April 23, 2009): 1034-1038. doi: /10.1038/nature07831.

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One response to “Prevenindo a infecção feminina por HIV”

  1. O mais legal disso é que a mulher passa a poder se armar contra o vírus, visto que nessas regiões onde o vírus se faz mais presente não é escolha dela o uso do preservativo.
    Uma coisa muito certa você disse. O HIV revolucionou a forma como enxergamos as infecções virais. Desde o uso das técnicas mais modernas de biologia molecular pro seu estudo (o que levou a todo o conhecimento que temos em 20 anos) até remédios “sob-medida” para alvos específicos no vírus. Conhecimento que até está sendo usado pra outras infecções virais.

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