Diploma Ctrl+C Ctrl+V de Jornalismo


Copiar e colar um texto, no máximo usando um tradutor. É realmente necessário um diploma para isso?

HIV-budding-Color.jpg

HIV, o pivô da vergonha alheia de hoje, colorido em verde ao brotar da célula infectada.

O jornalismo está passando por profundas mudanças, uma grave crise das mídias impressas, ainda mais frente ao menor custo de blogs para produzir um conteúdo de qualidade. E uma das primeiras áreas a sofrer cortes nos jornais é a ciência. Some a isso os blogs de ciência, geralmente escritos por cientistas e a recente queda da obrigatoriedade do diploma de jornalismo e temos o cenário a seguir.

Compartilho da idéia do Carl Zimmer de que os jornalistas são indispensáveis para reportagens científicas, principalmente as investigativas. Demandam tempo e dedicação, e um poder de síntese e discursividade geralmente só obtidos depois de um curso de comunicação. Um livro como A próxima peste, em que Laurie Garret foi até a África e reviu passo-a-passo os eventos do surto de Ebola, entre outras investigações, ilustra bem isso. Mas infelizmente este é o tipo de jornalismo que está sendo inibido com a crise e, desde antes dela, são pouquíssimos os jornalistas capazes de absorver e sintetizar informação científica com fluência.

Quero dar um exemplo do tipo de jornalismo científico mais comum, que dispensa diploma. Na verdade, onde o diploma atrapalha:



Dia 05 de agosto, saiu um artigo sobre HIV na Nature daqueles que mudam a perspectiva de uma área – tanto que devo escrever sobre ele em breve. Desvendaram, em parte, a topologia do genoma do HIV, como ressaltou Brandon Keim (jornalista dos bons) nesta ótima reportagem da Wired.

Isso é importante pois, a sequência do material genético do HIV, RNA, já é muito conhecida. Bancos de dados como o PubMed e Los Alamos
possuem milhares de sequências do vírus, do mundo todo e de vírus
próximos, como os vários tipos de SIVs (vírus da imunodeficiência
símia): de chimpanzé, gorila, macaco verde e outros. As primeiras
sequências são do começo da década de 80, quando o vírus foi isolado e identificado como causador da AIDS. A novidade do artigo foi entender o formato que esse genoma tem.

O
genoma do HIV é formado por duas cópias (não necessariamente idênticas)
de uma fita simples de RNA de mais de 9000 bases. Diferente do DNA de
fita dupla, que quase sempre tem a estrutura fixa de uma dupla hélice,
o RNA pode adotar diferentes formas, com regiões complementares se
ligando em uma fita dupla, regiões diferentes se afastando e pontos de
contato com outras moléculas. Mais detalhes no texto futuro.

No dia seguinte, vejo a seguinte reportagem na agência Fapesp: #fail1

Sequenciado o genoma do HIV

A estrutura de um genoma completo do HIV-1, o vírus causador da
Aids, foi sequenciada pela primeira vez por pesquisadores da
Universidade da Carolina do Norte (UNC) em Chapel Hill, nos Estados
Unidos. […]

Claramente
o autor se confundiu e disse que o genoma foi sequenciado, algo já
feito há mais de 20 anos. Mandei um e-mail falando sobre o engano e,
numa postura completamente diferente da arrogância da Veja, a reportagem foi corrigida em minutos (o original com o erro ainda pode ser visto aqui):

Genoma do HIV tem estrutura desvendada

Agência FAPESP
– A estrutura de um genoma completo do vírus HIV-1, causador da Aids,
foi desvendada pela primeira vez por pesquisadores da Universidade da
Carolina do Norte (UNC) em Chapel Hill, nos Estados Unidos.

Até aqui, tudo bem, enganos acontecem, e este foi corrigido
prontamente, com direito a e-mail agradecendo o aviso. Eis que, minutos
depois, me mandam a seguinte reportagem da Veja: #fail2

HIV tem genoma decodificado

Cientistas americanos afirmam ter decodificado o genoma completo do
vírus HIV-1, causador da Aids. O anúncio foi feito na quarta-feira, em
estudo publicado na revista científica Nature, e abre caminho para o desenvolvimento de novos tratamentos contra a doença.

Caramba, o mesmo erro da Agência Fapesp, horas depois da notícia sair
lá? Resolvi fuçar o Google para saber a fonte disso. Eis que:

No Terra: #fail3

Nova técnica fornece “visão geral” do genoma do HIV
– Uma nova técnica permitiu pela primeira vez a decodificação de todo o
mapa genético do vírus da Aids… O DNA depende de “tijolos” chamados
nucleotídeos, que transmitem a informação sobre duas tiras. Essas
unidades básicas são conhecidas pelas siglas A, C, T e G. Já o RNA tem
apenas uma tira e depende não só dos nucleotídeos, mas também de um
complexo padrão de dobraduras para transmitir a informação. [aqui
claramente deram uma desviada no assunto, por não saberem comparar o
DNA ao RNA]

Há outros erros mais grosseiros, como o título da reportagem do DCI:

Cientistas americanos decodificam DNA do vírus da AIDS

O Correio Braziliense ainda tentou inovar, entrevistou um dos autores do artigo por e-mail, mas a lambança não foi menor: #fail4

“[…]Descobrimos que o genoma do HIV-1 é amplo e contém duas tranças de RNA com 10 mil nucleotídeos em cada

E eu que já sabia disso desde 2004, não entro no artigo por quê?

Mas o buraco é muito mais embaixo. Procurando um pouco mais, achei o press release da notícia.
A coisa funciona assim, quando um pesquisador de uma instituição X vai
publicar um artigo, ele avisa a acessoria assessoria (valeu, zandormaz!) de imprensa da instituição
que transforma a pesquisa do artigo em algo inteligível para quem não é
da área. Neste caso, Kevin Weeks, professor de química da University of
North Carolina
School of Medicine, mandou o artigo para Kim Spurr fazer a “tradução”,
que conta inclusive com fotos do grupo de pesquisa.

Veja o texto original do press release, grifos meus:
 
UNC researchers decode structure of an entire HIV genome

CHAPEL HILL – The structure of an entire HIV genome has been decoded for the first time by researchers
at the University of North Carolina at Chapel Hill. The results have
widespread implications for understanding the strategies that viruses,
like the one that causes AIDS, use to infect humans.

The study, the cover story in the Aug. 6, 2009, issue of the journal Nature, also opens the door for further research which could accelerate the development of antiviral drugs.

HIV,
like the viruses that cause influenza, hepatitis C and polio, carries
its genetic information as single-stranded RNA rather than
double-stranded DNA. The information encoded in DNA is almost entirely
in the sequence of its building blocks, which are called nucleotides.
But the information encoded in RNA is more complex; RNA is able to fold
into intricate patterns and structures.
These structures are created when the ribbon-like RNA genome folds back on itself to make three-dimensional objects.

Kevin
Weeks, Ph.D., a professor of chemistry in UNC’s College of Arts and
Sciences who led the study, said prior to this new work researchers had
modeled only small regions of the HIV RNA genome. The HIV RNA genome is
very large, composed of two strands of nearly 10,000 nucleotides each.

[…]

“There
is so much structure in the HIV RNA genome that it almost certainly
plays a previously unappreciated role in the expression of the genetic
code,” Weeks said.

Swanstrom and Weeks note that the study is
the key to unlocking additional roles of RNA genomes that are important
to the lifecycle of these viruses in future investigations.

[…]

Weeks added: “We are also beginning to understand tricks the genome uses to help the virus escape detection by the human host.

Agora
vou fazer uso do grande diploma Ctrl+C e Ctrl+V, com especialização em
Google Translate. Não corrigi nenhum erro de tradução, para vocês verem
como fica:

A estrutura de um genoma inteiro HIV foi decodificado [é aqui que trocam estrutura por sequência]
pela primeira vez por pesquisadores da Universidade da Carolina do
Norte em Chapel Hill. Os resultados têm implicações para a compreensão
generalizada das estratégias que os vírus, como o que causa a SIDA, uso
de infectar seres humanos.

 O estudo, o artigo de capa no Ago.
6, 2009, edição da revista Nature, também abre as portas para futuras
pesquisas que possam acelerar o desenvolvimento de medicamentos
antivirais.

 HIV, como o vírus que causa a gripe, a hepatite C
e a poliomielite, carrega sua informação genética como single-stranded
RNA ao invés de double-stranded DNA [basta usar ou pouco melhor a ferramenta para trocar por fitas simples e duplas].
A informação codificada no DNA é quase inteiramente na seqüência dos
seus alicerces, que são chamados nucleotídeos. Mas as informações
codificadas em RNA é mais complexa; RNA é capaz de dobrar em
intrincados padrões e estruturas [rapaz, uma busca no Google por essa frase entrega tudo].
Estas estruturas são criadas quando o genoma RNA fita-como pregas volta
sobre si próprio para tornar objectos tridimensionais.

 Kevin
Weeks, Ph.D., um professor de química em UNC da Faculdade de Artes e
Ciências, que conduziu o estudo, disse que antes deste novo trabalho
investigadores haviam modelado apenas pequenas regiões do genoma RNA
VIH. O RNA VIH genoma é muito grande, composto por duas vertentes de
quase 10.000 nucleotídeos cada.

 […]

 “Há tanta
estrutura do RNA do HIV no genoma que quase certamente desempenha um
papel não reconhecido anteriormente na expressão do código genético”,
disse Weeks.

 Swanstrom Semanas e nota que o estudo é a chave
para desbloquear adicionais papéis genoma de RNA, que são importantes
para a vida útil desses vírus em futuras investigações.

 […]

 Semanas [aqui ele traduziu Weeks]
acrescentou: “Nós também estamos começando a compreender o genoma usa
truques para ajudar o vírus escapar detecção pelo hospedeiro humano.”

Pronto, reportagem feita. Sério. Olhe qualquer notícia em português sobre a descoberta e você vai ver este mesmo texto.
A mesma estrutura, as mesmas frases, aquela citação ali embaixo e tudo
o mais. A frase sobre vírus de RNA, como gripe, hepatite C e
poliomielite, e o “intrincados padrões e estruturas tridimensionais” já
se tornaram um clássico.

Minto. Alguns ficaram com a tradução da Reuters. Mas
não encontrei nenhuma notícia em português que de fato explicasse o que
foi feito de uma maneira diferente das traduções. Duvido que alguém,
tenha sequer olhado para o artigo original.

Na reportagem da
Wired, dá para perceber que o autor leu o trabalho, leu um outro artigo
da própria Nature sobre a descoberta, e aí sim escreveu. Tanto que ele
realmente captou a inovação do trabalho e explicou muito bem, a começar
pelo título:

Mapping HIV Genome’s Shape, Not Just Sequence

Sei
que a pressão por notícias rápidas é enorme e que, quase nunca (torço
do fundo do meu coração), é o jornalista quem opta por simplesmente
copiar e colar um press release. Mas no caso deste artigo do
HIV, quem fez isso simplesmente não conseguia entender o assunto da
reportagem, tanto que copiaram errado e contribuiram com tantos #fail. Agora
me diga, como alguém que não entende o assunto que está copiando pode
informar outros? E qual a necessidade desse tipo de jornalismo quando o
press release é de reprodução livre, e o Google Translate está aí? Qual o papel do caderno (quem dera fosse um caderno) ciência de um jornal?

Por
isso, acho cada vez mais importante que cientistas e entendidos
dediquem parte do seu tempo e conhecimento para explicar ciência (de
preferência no ScienceBlogs Brasil, claro). E cada vez tenho mais
respeito pelos poucos jornalistas que entendem do que estão falando e dão utilidade ao diploma que conquistaram. Este nunca cairá em desuso.

[update] Nem nisso o Kibe é original
[update2] o que falei aqui vale para a maioria das notícias de ciência, por se tratar de HIV fui mais além nessa
[update3] minha ferramenta de busca de plágio já acusou mais de 20 casos, por causa do trecho do press release que colei.

,

21 responses to “Diploma Ctrl+C Ctrl+V de Jornalismo”

  1. Mais um motivo para se estar por aki, informação é coisa séria!
    Acompanho via twitter que fico sabendo na hora quando há novidades no blog.
    Parabéns, ótimo como sempre.

  2. Pior que aconteceu uma coisa engraçada.
    Eu trabalho com um virologista especialista em HIV, semana passada (logo depois da publicação) uma pessoa, se dizendo jornalista da Veja, nos ligou pedindo pra falar com nosso chefe (isso às 19:00, hahaha), após saber que ele estava viajando perguntou se a doutoranda que atendeu não podia falar sobre o assunto, ela ainda não havia lido o paper e declinou, mas indicou outras pessoas para quem ele poderia ligar e que ele poderia obter o contato dessas pessoas na página do sistema Lattes. O cara disse que tinha que fechar a matéria com urgência.
    Pelo visto ele não tentou entrar em contato com os outros…

  3. @ Claudia,
    Pode deixar que explico direitinho no próximo post 😉
    @ Zé,
    Pois é, e não foram os únicos, nem de longe.

  4. Átila, execelente artigo. Estou conhecendo seus artigos agora e realmente são muito bons.
    Como sei que os comentários são moderados me permita uma pequena contribuição: em “avisa a acessoria de imprensa da instituição” não seria ‘assessoria’ de imprensa?
    Valeu
    Abraço

  5. Pelo que eu entendi do seu argumento, ele só justifica a necessidade de jornalistas profissionais, não de jornalistas por formação.
    Eu sou da área de Engenharia. A impressão que eu tenho é de que embora os jornalistas entendam muito sobre como comunicar, eles normalmente não entende os temas sobre os quais comunicam. Por causa disso, artigos científicos são frequentemente mal interpretados e entrevistas distorcidas de acordo com a própria interpretação de uma pessoa que não está qualificada para entender o tema tratado.
    Existem algumas exceções, obviamente. O Jorge Vidor, da Globo, tratou de fazer faculdade de Economia (além da de comunicação) quando achou ali a área em que gostava de trabalhar. É possível notar que entrevistas conduzidas por ele com economistas trazem mais perguntas pertinentes aos temas tratados no lugar dos lugares-comuns repetidos por outros entrevistadores.
    Talvez o caminho seja esse: menos teoria da comunicação, mais estudo sobre temas de interesse do futuro jornalista.

  6. Perfeito Átila..
    As vezes me pergunto realmente a utilidade de um diploma de Jornalismo.. apesar de conhecer ótimos comunicadores que fazem valer seu diploma..

  7. @ Leandro e Davi,
    É como disse, acho que em muitos casos, o diploma em comunicação capacita o profissional a fazer reportagens que cientistas não têm tanta facilidade. Em compensação, cientistas têm uma base muito maior para entender e explicar um trabalho científico.
    Acho que, com competência e capacitação, ambos conseguem desempenhar bem a divulgação científica. Mas, aqui no Brasil pelo menos, parece que não há um interesse geral em conciliar isso. A Folha é um dos poucos exemplos que conheço.

  8. Vou ser um tanto preciosista: o que o artigo mostra é a *arquitetura* do genoma do HIV e a *estrutura secundária* do ARN. *Estrutura do genoma* ou *estrutura genômica* tem um sentido um tanto distinto. Certo?
    []s,
    Roberto Takata

  9. (comentando de novo)
    Concordo Átila, mas não custa nada pra um jornalista (jornal) sério porcurar alguma assessoria antes de publicar algo sobre algum assunto que não domina.
    E outra realemente o diploma de Jornalismo não é obrigatório.. mas também não é descartável..qualquer um que se proponha a trabalhar em uma área com seriedade e compromisso deve procurar um curso de qualidade…

  10. Conheci o blog em uma lista de e-mails da minha faculdade (Ciências Biológicas) e achei fantástico. Vai pra minha página inicial.
    Agora saindo da puxação de saco, ótima reportagem. Você consegue transmitir a informação de forma clara e simples, sem perder a ciência toda do texto.
    E neste post, você ainda deu uma pitada de humor a um texto sério.
    De todos os artigos e livros (científicos) que eu li, você é dos poucos autores que escrevem dessa forma. Parabéns.

  11. Depois que eu vi a veja públicar uma pegadinha de 1 de abril da science, não acredito que essa seja uma fonte de revista seria. Vou indicar essa sua postagem a muitos amigos que eu sei que viram a matéria nesses sites e não foram atrás do artigo.
    PS: o artigo ta na minha fila de leitura, também já trabalhei com HIV. Mas envolvendo bioinformática

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