Beijo na boca e a hipótese científica



Ops, me enganei e coloquei a foto da espécie errada.

ResearchBlogging.orgSegundo Colin Hendrie e Gayle Brewer, o beijo na boca surgiu como
proteção: uma forma do homem transmitir para a mulher Citomegalovírus
(um tipo de herpervírus humano, o HHV-5) antes da gravidez. Fetos não
são muito afetados por citomegalovírus se a grávida já teve contato
prévio com ele. Mas se a mãe contrai o vírus durante o período de
gestação, mais de 30% dos fetos morre e os sobreviventes sofrem graves
danos como microcefalia e retardo mental. Assim, o beijo na boca, uma
forma muito comum de transmissão do HHV-5, serviria como exposição prévia
e garante que a mãe não será infectada durante a gravidez.
Boa
idéia!… não tão boa assim.

Costumo apresentar aqui no Rainha resultados já prontos, como se fossem
absolutos. Fulano viu, beltrano descobriu, tal coisa funciona assim. E
nunca mostro o tipo de pensamento que está por trás de um dado desse.
Então resolvi fazer isso hoje. Aproveitando que o artigo foi publicado
no Medical Hypotheses que, como o nome diz, apresenta hipóteses, vou desconstruir um pouco o que os autores propõem e mostrar como tudo gira em torno da evolução.

Antes de tudo, para uma característica seja favorecida pela seleção
natural, é necessária uma pressão sobre ela. A morte de quase um terço
dos fetos infectados por uma doença bem distribuída me parece algo bem
razoável, até aqui ok. Mas para a evolução ocorrer também é necessário
tempo. Então faço a primeira pergunta: Há quanto tempo o
Citomegalovírus circula em humanos?
Eu não achei esta resposta –
confesso que nem procurei muito – e o autor não mencionou nada sobre
isso no artigo. Sim, pois para que haja a seleção sobre o comportamento
de beijo, imagino que sejam necessárias umas boas gerações, e sei de
vírus que nos infectam há muito tempo e outros pouquíssimo. Qual o caso
desse?

[update] de acordo com o artigo que um amigo do laboratório me passou, o Citomegalovírus Humano deve nos acompanhar desde nossa divergência dos chimpanzés. Os herpesvírus são um caso de codivergência espécie-hospedeiro em primatas, e estiveram presentes sim durante nossa evolução. O que considero o passo mais importante para a hipótese do artigo ser plausível, junto com a possibilidade do beijo ser herdável (mesmo que seja culturalmente). E a consequência disso pode ser vistas em povos que não beijam na boca, já que é esperado que eles também tenham HHv-5.

Supondo que o vírus nos infecte há tempo suficiente, vamos para a
segunda pergunta: beijo na boca realmente é protetor? Para que uma
característica selecionada, ela precisa conferir uma vantagem ao
portador. Se for este o caso, ele deveria ser universal. Os autores
mencionam que 90% das culturas humanas estudadas se beijam na boca. E
nas outras 10%, como é a circulação de citomegalovírus?
Se há a
infecção, qual é a letalidade do vírus, é maior? Qual a história
evolutiva do beijo e do vírus, eles coincidem?

“Ah Atila, mas você pode estar deixando de lado outras doenças que
seriam transmitidas pelo beijo além do citomegalovírus, talvez elas
também tenham um papel importante. Podem ser até mais antigas, como
você esperaria.”

Ok, já temos a pressão seletiva sobre o feto e, imaginando que o beijo
realmente confira vantagem, ainda nos falta algo. A característca
precisa ser herdável. Logo, o beijo precisaria ter origem genética.
Antes de sair caçando um gene do beijo, há algumas formas de já ter uma
noção sobre isso: Qual o parentesco das populações que beijam na boca?
Elas são relacionadas, de forma que a característica possa ter surgido
e sido passada adiante? Ou elas não tem relação clara, e o beijo parece
ter surgido de maneira independente em vários locais? Populações que
não beijam podem ser mais informativas, por serem um pouco mais raras.
Qual o caso, nunca desenvolveram o beijo ou desenvolveram e perderam?

Enfim, para a hipótese do artigo fazer sentido, é necessário levar em
conta uma série de fatores importantíssimos. Uma hipótese traz
implícita uma série de premissas, que podem ou não ser possíveis. Para
assumir que o beijo possa ter se desenvolvido como forma de proteção,
precisamos crer também que o vírus está presente tempo suficiente, que
o beijo realmente protege e é selecionado e que ele é herdável. Eu
realmente não acho que seja o caso, e não vi os autores discutirem mais
a fundo no artigo
.

Toxoplasmose também é letal ao feto quando contraída durante a gestação
e serena se contraída antes. E é muito difundida no mundo todo. Será
que as pessoas vão ser selecionadas para gostar de gatos e ter mais
contato com eles antes da gravidez? E beijinho, rola?

Post originado de uma dica do Kentaro.

Fonte:

Hendrie CA, & Brewer G (2009). Kissing as an evolutionary adaptation to protect against Human Cytomegalovirus-like teratogenesis. Medical hypotheses PMID: 19828260

, ,

11 responses to “Beijo na boca e a hipótese científica”

  1. Atila, excelente texto, não pelo tema, mas por todo o processo inquisitivo que você expôs durante o desenvolvimento do mesmo, ao modo científico de ver as coisas.
    Demais!

  2. Adorei a discussão das premissas (não consegui parar de ler o texto antes de chegar ao fim!).
    Infelizmente mesmo muitos de nossos colegas de graduação e academia não tem noção da existência de premissas e não pensam nelas ao lerem uma hipótese.

  3. Atila,
    Talvez seja um caso de coevolução memes-genes. O beijo na boca seria um meme que confere vantagem evolutiva. Alguns genes apenas ajudariam a manutenção e propagação do comportamento cultural.
    Por que se você não concorda com a hipotese que o ato de beijar tem uma componente biologica (apenas uma componente, lembre-se!), entao voce está defendendo que é um ato puramente cultural. Quais são as evidências a favor de uma origem puramente cultural para o beijo na boca?
    Não estou discutindo a hipotese dos caras relacionada com o virus, mas a ideia de uma base genetica para o beijo na boca. Vejamos:
    Que tipo de genes poderiam ter coevoluido com o comportamento de beijar na boca? Sugiro os seguintes:
    1. Genes que associam beijar na boca com prazer sexual: isso seria possivel, por uma expressão genica maior no sistema dopaminergico durante o ato sexual.
    2. Genes que aumentam a densidade de terminais nervosos nos labios. Originalmente tais genes tem a ver com o aumento de sensibilidade ao sabor e tato (bebe no bico da mãe?), mas poderia ter havido uma exadaptação para aumentar o prazer mesmo no adulto.
    3. Genes que aumentam o volume e cor dos lábios das mulheres. Por que as mulheres em geral tem lábios maiores que os homens? Os labios (bucais) são um orgão de atração sexual?
    Basta ter um pouco de imaginaçao. Se o ato de beijar na boca facilita o inicio de uma relação sexual (e acho que todo namoradinho acredita nisso), então beijar na boca vai ser selecionado. Se, além disso, ele também ajuda a proteger de virus e outras doenças, vai ser selecionado mais ainda. Mas a seleção não é sobre um “gene do beijo”, mas sim sobre os genes já existentes que, exadaptados, facilitam o prazer durante o beijo, os genes que eu citei por exemplo.
    OK, eu sei que tem os 10% que não beijam na boca. Tem também os 10% que morrem virgem, e dai? Os mortos-virgem provam que o ato sexual não tem base genética, que não exstem instintos humanos e que é tudo de origem cultural? Watson estava certo e o Behaviorismo é a palavra final da psicologia?
    Os biólogos tem dificuldade com a idéia de que “as excessões confirmam a regra” em vez de serem “evidencias avassaladoras contra a regra!”.
    O problema dos biólogos é o cavalo marinho. Sim, o cavalo marinho é uma excessão, mas e daí? Explique primeiro a regra, o padrão estatístico não trivial, e deixe que os colecionadores de selos expliquem as exceções!

  4. @Osame,
    Muito pelo contrário, sou a favor da exceção que prova a regra. Por isso proponho estudar as culturas em que não há beijo. São culturas inteiras, e não pessoas isoladas dentro de povos que beijam.
    Vendo a prevalência e mortalidade causada pelo HHV5 ou qualquer outra infecção oral que possa fazer o mesmo nestas populações pode mostrar o valor adaptativo dessa característica na nossa, que beija.
    Quanto ao caráter cultural ou genético ou os dois do beijo, só estou afirmando que não sabemos.
    Ah, e o cavalo marinho tb serve pra muita coisa como exceção. A dedicação da fêmea em conseguir um macho, a escolha de parceiras que ele faz e uma série de outros comportamentos mostra o papel biológico que quem cria os filhotes assume, independente do sexo.

  5. Karl e Atila,
    Para um comportamento ser selecionado e haver coevolução gene-cultura, basta que ele aumente a probabilidade de que os pais tenham filhos ferteis. Não precisa ser determinista. Logo, o fato de haver culturas inteiras que não beijam na boca não constitui evidencia alguma de que beijar na boca não aumenta a probabilidade de defesa contra virus.
    Mas o Atila está certo em um ponto. Se nessas culturas isoladas for observado que o HHV5 não existe, isto seria evidencia a favor da hipotese dos caras.
    Ou seja, sempre estamos trabalhando com evidencias a favor ouo contra, como num tribunal. Não existem evidencias decisivas, nunca. Bom, pelo menos em Física não existe, não sei se na metodologia da Biologia isso existe…

  6. @osame,
    Não ter HHV5 em culturas que não beijam não é evidência, não ter só nos que não beijam talvez seja. Eu acredito que tenha, uma vez que o vírus está conosco desde antes de nos separarmos do chimpanzé.
    E se tiver, pode-se comparar a porcentagem de fetos mortos por HHV5 em locais onde há e onde não há o beijo. Isso sim seria evidência para mim.

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