No post sobre evolução anterior, fui obrigado a admitir que a biologia está cheia de complexidade irredutível. Hoje terei de admitir que também não temos exemplo de macroevolução.

 

esgana_gato

Peixe esgana-gato do laboratório de David Kingsley.

 

Recentemente participei de uma reportagem da Isis sobre evolução que recebeu um comentário bastante interessante:

 

Quanto à resistência a antibióticos, mencionada por Iamarino, Enézio questiona: “É esse um exemplo do fato, Fato, FATO da evolução? Que evolução? Microevolução ou macroevolução? As bactérias continuaram bactérias. Não houve processo macroevolutivo que é o que a teoria geral se propõe explicar: um Australopithecus afarensis se transformar em antropólogo amazonense.” [Enézio é amazonense.]

 

Trata-se de um argumento muito usado pelos criacionistas, a macroevolução. Segundo eles, eventos de evolução em microescala, como bactérias resistentes a antibióticos, são admissíveis e reconhecidos, mas o surgimento de novas espécies, um evento macroevolutivo, nunca foi mostrado. É o equivalente argumentativo de “só a cabecinha”, algo como admitir que placas tectônicas se movem e terremotos acontecem, mas ninguém nunca viu uma montanha aparecer ou um continente sair nadando.

O problema aqui é o Princípio da Incerteza de Enézimo, ou nÉzimo. Ele acontece na seguinte situação:

Quando tentamos explicar a um criacionista por que ele está errado, e mesmo depois de N argumentos ele continua ignorando qualquer evidência, não podemos saber ao certo se isso acontece porque ele é ignorante ou por desonestidade.

Da mesma forma, quando criacionistas dão exemplos grotescos e completamente toscos, como ignorar que a origem do flagelo bacteriano pode ser explicada, para validar o argumento do DI, não podemos saber ao certo o quão desonestos e/ou ignorantes a ponto de não entender o que falam eles estão sendo.

Dessa forma, podemos determinar apenas uma das duas coisas, o quão desonestos ou quão ignorantes estão sendo, nunca os dois ao mesmo tempo. – este evento deu origem à idéia de que se trancássemos o gato do Shrödinger e um criacionista numa caixa, o gato entenderia antes o que é a evolução, mesmo estando meio morto.

 

Michael Behe, o pesquisador em bioquímca que escreveu o Caixa Preta de Darwin, por exemplo, estava sendo completamente desonesto. E quem aponta isso não sou eu, é o juiz do caso Kitzmiller v. Dover Area School District, quando estavam discutindo se o criacionismo deveria ser ensinado como alternartiva à teoria da evolução na região de Dover, Pensilvânia.Veja um trecho da declaração de Behe que podem ser encontrados na transcrição de seu depoimento no 12° dia:

Acusação: E, de fato, não há artigos revisados por pares de ninguém defendento o design inteligente suportado por experimentos ou cálculos peritnentes, que provém relatos detalhados e rigorosos de como o design inteligente de qualquer sistema biológico ocorreu, certo?

Michael Behe: Sim, está correto.

 

Mais adiante, Behe adimite que não há dado ou pesquisa originais em seu livro, e que nunca publicou um artigo sobre o assunto. Embora já tenha publicado diversos artigos científicos em outros temas, todos com dados experimentais. – conheço um certo pesquisador criacionista que se encaixa aqui – Ou seja, ele sabe a diferença entre ciência e crença, e é desonesto quando diz que o design inteligente é uma alternativa válida. Tanto que reconheceu que o conceito de teoria que ele aplica está mais próximo do conceito de hipótese científica, e também poderia abrigar a astrologia.

Como não estamos em um julgamento onde o criacionista pode ser prensado até se explicar, eu não consigo determinar se estão sendo desonestos. E longe de mim chamar os criacionistas de desonestos, vou partir dio princípio que eles são simplesmente ignorantes.

 

Não temos macro-evolução

O motivo de não termos macro-evolução é bem simples. Temos evolução. Macro e micro-evolução são termos que descrevem pontos diferentes da Teoria da Evolução. Nas palavras de Mark Ridley, autor do livro Evolução (página 572), que depois discute mecanismos comuns e diferentes de ambas escalas:

“A microevolução e a macroevolução podem ser concebidas como termos vagos, assim como ‘pequeno’ e ‘grande’, e como extremos contínuos de evolução, da menor escala à escala máxima.”

 

Mas os criacionistas distorcem estes conceitos, tratando macroevolução como algo completamente separado da evolução, e ignorando (voluntariamente?) que ela trata de eventos grandes, que levam milhares ou milhões de anos para acontecer. Traduzindo o argumento criacionista de “micro pode, macro nunca vi” para nossa escala de tempo, é como dizer que embora vejamos o ano passar, nunca presenciamos um milênio.

Nós não temos a macroevolução na biologia, temos apenas evolução. Macroevolução é o nome que damos para este evento em certos casos. E mesmo assim, os fósseis são testemunha de que a macroevolução acontece, dado um longo período de tempo, e a biologia molecular mostra esta relação dos organismos. Por mais que os criacionistas argumentem que não há formas intermediárias, a relação entre os organismos revelada pelas moléculas mostra linhagens contínuas, que variam ao longo do tempo, ao invés de eventos únicos de criação.

Eventos estes que podem inclusive serem recriados, como a manipulação de mutações do peixe engasga-gato lá de cima, que foram capazes de reverter a morfologia de uma espécie de água doce sem espinhos (abaixo) para seu ancestral marinho, com espinhos. E a mutação que condicionou isto está no promotor do gene, que regula o local e tempo em que ele é expresso (pdf do artigo aqui). Pequenas mudanças em um gene regulador que proporcionaram uma grande mudança na espécie.

Mais uma vez, criacionistas distorcem conceitos e ignoram fatos, aproveitando áreas do conhecimento que a biologia ainda começa a entender. Anos atr
ás, este tipo de experimento seria impensável, pois envolve desde conhecimento sobre o desenvolvimento e genes regulatórios à manipulação genética. Conforme aprimoramos nossos métodos, explicamos melhor o mundo natural e diminuímos as sombras onde o DI ainda persiste.

 

Quanto ao “Australopithecus afarensis se transformar em antropólogo amazonense”, tenho uma má notícia.Se algum criador moldou o surgimento do ser humano, uma das preocupações que ele teve foi a de aumentar a massa encefálica das espécies que desenhou, e não imagino que ele vá contrariar isso agora. Além disso, primatas tem coisas mais importantes e desafiadoras a pensar, como direção e força com que vão lançar seus argumentos em visitantes no zoológico, do que o DI.

Skip to content