O ciclo da notícia científica


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O PhD Comics acertou em cheio com o quadrinho acima, que peguei traduzido no Blog Brasil Acadêmico (clique para aumentar, se estiver ilegível). O povo dos blogs científicos gostou e reproduziu a imagem. Agora eu tenho a oportunidade de ilustrar com um artigo em que participo, acompanhem como a informação científica se deteriora ao ser propagada:

O artigo

 

grafico

 

Comecemos com o estudo. No artigo que acabamos de publicar na revista científica PLoS One, afirmamos com base no gráfico acima que o subtipo mais recente de Hepatite C no Brasil está associado à pessoas que possuem mais parceiros sexuais. A explicação completa está aqui, mas o gráfico é deixa bem claro. Na esquerda está a distribuição de subtipos (1b, 1a e 3a) dos pacientes que estudamos com 5 ou menos parceiros sexuais a vida toda, e à direita está a distribuição para os que tiveram 50 ou mais parceiros. O subtipo 1a é o segundo mais comum da nossa amostra, mas entre as pessoas com muitos parceiros sexuais ele é o principal.

A hepatite C não é tida como uma doença sexualmente transmissível, e nós não afirmamos isso no artigo. Usamos o número de parceiros para visualizar as interações sociais de nossos pacientes, pois vimos que os subtipos estão concentrados em pessoas de certas idades e queríamos saber se elas tinham comportamentos diferentes. E vimos, tanto que os pacientes com mais de 50 parceiros estão expostos a muitos outros comportamentos de risco, uso de drogas injetáveis, sexo desprotegido, etc, do que os outros, como a segunda metade do gráfico deixa clara – de novo, vejam o post anterior para entender.

O que este gráfico significa é que o subtipo mais recente está circulando em pessoas mais conectadas, praticantes de mais comportamentos de risco e com mais potencial para continuar se espalhando sem controle.

 

O press release

Embora eu mesmo tenha escrito nosso press release com ajuda dos autores principais do artigo – o press release é uma espécie de resumo, com destaque para os pontos altos do artigo, para a imprensa -, ainda comi bola. Tomamos todo o cuidado para afirmar que associamos subtipos mais recentes a redes sociais diferentes, e que não os relacionamos com a transmissão sexual, mas deixamos o dado errado de que os testes em bolsas de sangue foram implantados em 1990. Na verdade, as bolsas de sangue começaram a ser testadas em 1993, como dissemos no artigo.

Ou seja, mesmo sendo escrito pelos autores do artigo, o press release já distorceu um pouco a informação.

 

A imprensa

Com muito orgulho, tivemos o nosso artigo divulgado na Folha de São Paulo e na Agência Fapesp. E lá ocorreram os próximos passos de distorção:

 

Na Folha:

Hepatite C é ligada a jovens que fazem sexo com muitas pessoas

O “relacionamos subtipos mais recentes com pessoas mais novas e com mais parceiros” virou “Hepatite C é ligada a jovens que fazem sexo com muitas pessoas”. Normal, um artigo de jornal tem outro tipo de conotação e é muito mais desenhado para chamar a atenção do público do que um artigo científico. No mais, o texto segue muito bem e deixa claro o tipo de associação que encontramos:

“Não existe confirmação de que a relação heterossexual possa transmitir hepatite C. Mas observamos uma maior incidência de um subtipo do vírus entre pessoas com mais parceiros”, diz Romano.

 

Na Agência Fapesp, foi um pouco mais complicado (grifo meu):

O estudo mostrou que o subtipo 1b do VHC é o mais antigo e avançou mais lentamente que os subtipos 1a e 3a, em múltiplas classes sociais e faixas etárias. Por outro lado, os subtipos 1a e 3a estão associados a pessoas mais jovens, infectadas mais recentemente, com taxas mais altas de transmissão sexual.

Embora o autor do texto tenha vindo ao laboratório e conversado com os autores, acabou ocorrendo o deslize. Normal, é difícil não falar em transmissão sexual com os dados que apresentamos, e minutos após contatarmos o autor o texto já estava reparado.

Mas os minutos antes do reparo foram suficientes para que o exército do Ctrl+C Ctrl+V propagasse o erro por diversas agência de notícia, como o Correio do Brasil e mesmo o Estadão.

Aliás, o UOL dá uma imagem mais clara do que acontece. Assinando a notícia como “Da Redação”, foram capazes de manter o seguinte trecho:

mas nós optamos por uma amostra aleatória”, explicou Zanotto à Agência Fapesp.

No mínimo, quem copiou o texto não leu o que estava escrito. Caso contrário não teriam mantido a assinatura.

Até aqui, quem reproduziu a notícia e leu o artigo foram apenas os jornalistas da Agência Fapesp e da Folha.

 

A crítica

O mesmo problema de tratar do assunto sem ler o artigo em questão aconteceu no site de um grupo de apoio a portadores de Hepatite, o Hepato.com. Um trecho da crítica (grifo meu, novamente):

O artigo já começa desconhecendo o assunto. No primeiro parágrafo da matéria e colocado que a hepatite C e uma doença incurável. Lendo a integra da pesquisa publicada na PloS ONE eles colocam que desde 1990 o
sangue e testado no Brasil
, quando na realidade deveriam ter se informado que o teste nos bancos de sangue aconteceu no final de 1992 e 1993.
Falam ainda que os casos de hepatite C estão aumentando e para tal, erradamente, estão se baseando no diagnostico de casos crônicos. Ora bolas! Para se saber se existem novos infectados, se a doença está se propagando, devem ser analisados casos agudos, pois somente eles podem ser validos para assegurar quem se infectou recentemente. Qualquer profissional de saúde sabe disso.
Fazem ainda uma ilação entre o genótipo 1-a e a transmissão sexual. Ora bolas novamente! O genótipo 1-a e comum em São Paulo. Porque o relacionar com atividade sexual se na mesma pesquisa eles encontram que a maioria utilizou drogas. Tiveram o mínimo cuidado de pesquisar se tais indivíduos utilizaram instrumento de manicure, se foram ao dentista, se tomaram vacinas na infância quando as seringas eram de vidro, etc. etc.?

No artigo, usamos como data para tranfusão de risco quem recebeu sangue antes de 1993, baseamos nosso diagnóstico na diversidade genética viral, independente do caso ser crônico ou não, e não fizemos relação com transmissão sexual. Além disso, todos nossos pacientes tiveram um dente extraído ou alguma pequena cirurgia, e este tipo de risco não foi informativo, como deixamos claro nos métodos. Ou seja, quem escreveu a crítica não leu o artigo também. Mas esperem pela reação popular.

 

O público geral

Graças à notícia da Folha, pude acompanhar a reação das pessoas pelo Twitter buscando tweets com a palavra chave hepatite. Me digam se não é o final do ciclo:

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O que mais chama a atenção é a relação entre Hepatite e quem tem muitos parceiros. Daí a divergências é um pulo.

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Começa a sumir a associação e resta apenas o sexo com muitas pessoas. Sexo com muitas pessoas já virou uma atitude comum entre os infectados, apesar de afirmarmos que a relação depende de certas condições. Mas a melhor pérola eu deixo para o final.

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Pronto, estabelecemos tudo. Artigo afirma que Hepatite é transmitida sexualmente, tudo foi explicado – claro que o uso de camisinha deve ser promovido e previne muita coisa, mas vamos com calma.

Só posso terminar com esta imagem:

 

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19 responses to “O ciclo da notícia científica”

  1. Muito boa essa “revisão” de como fluem as notícias a partir de artigos publicados!
    Por essas coisas, sempre digo pros meus amigos que, após lerem alguma notícia pela qual se interessaram, que busquem a fonte original!
    Parabéns!
    Abraço

  2. Putz, Atila, que horror. É isso que dá querer publicar coisas importantes, hehe! De nada adianta ter cuidado com a interpretação de relações causa-efeito, as pessoas, aparentemente, não se importam.
    Abraço!

  3. Assim diz André: Jornalista falando sobre Ciência é o mesmo que tartaruga tentando costurar. O governo fez bem em acabar com a necessidade do “diproma”, já que 99% dos jornalistas não dizem a que veio, possuem uma escrita péssima e não possuem a menor ideia ou preocupação com o que estão escrevendo. O Globo tem um monte de “ixcritores” escrevendo besteiras em suas notícias do site. Isso quando não pegam uma notícia estrangeira, tascam no Google Translator e bola pra frente. O G1, também da Globo, é outro antro de sandices, como podem ver aqui: http://oxenti.com/www/2010/04/26/a-volta-dos-mortos-vivos-gene-roddenberry-leiloa-itens-usados-em-star-trek/
    .
    O mundo ficará melhor quando jornalistas pararem de escrever sobre ciência (convenhamos, Ed Yong e Carl Zimmer fazem parte de uma RARÍSSIMA exceção. E aqui no Brasil nem isso temos), assim como pedagogos pararem de ensinar no Fundamental coisas que eles nunca viram antes (uma vez, uma acéfala falou pras crianças que “é muito bom beber suco de clorofila, que ela se sentia mais alimentada”, juro!!).

  4. @Célio Moura Neto
    .
    Fontes originais? Nem todos podem (ou necessitam) pagar pelo acesso ao conteúdo total da Nature ou Science. Mesmo que tenham acesso ao conteúdo total, como no caso da PloS One, o público de uma maneira geral não terá condições de entender a fraseologia científica, que ( aceitemos os fatos) é muito complicada, às vezes até desnecessariamente. A brasileiro médio mal sabe escrever corretamente, e mesmo graduados estão cometendo verdadeiros acicates à língua portuguesa. Ademais, ainda tem a barreira do idioma. Dessa forma, os blogs científicos são a melhor escolha, mas também já vi muitos erros em blogs que aspiram ser científicos. Alguns bons caem no mesmo erro de fazer de seu blog uma espécie de Nature, usando termos herméticos, sem explicar nada nem traduzir para linguagem corrente o significado de tudo que está ali escrito.
    .
    Como fica então? (se bem a maioria dos brasileiros sequer estão interessados em algo diferente de futebol novela e Big Brother).

  5. André,
    eu acho que o Célio referia-se a pessoas que trabalham com ciências, de alunos da faculdade a profissionais. E, sendo esse o caso, eu concordo com ele: mesmo que a maioria das revistas não libere o artigo completo, todas liberam o abstract. E o abstract, se bem escrito, é suficiente para a grande maioria dos casos.
    Lembro-me de em 2004 ou 2005 (uma busca na web pode esclarecer) um colega professor, num colégio onde eu trabalhava, ter dito “você viu ontem, no jornal nacional? eles fizeram um rato por partenogênese!”, no que eu retruquei “não ocorre partenogênse em mamíferos” (com desenvolvimento normal), e ele disse “mas saiu no jornal nacional!”, e eu repeti “não ocorre partenogênse em mamíferos”.
    chegando em casa, vi no site da globo que eles se referiam a um artigo da Nature. fui olhar o artigo, e o abstract me bastou: eles fizeram um zigoto diplóide pela fusão de dois óvulos de ratas, o que não tem rigorosamente nada a ver com partenogênese.
    um aluno do ensino médio até poderia (mas não deveria…) não se interessar pela fonte. mas um professor? penso que não…
    abraço a todos.

  6. Realmente nisto tudo, em vez de esclarecer,pontuou a Transmissão Sexual como a grande fonte de transmissão, o que não é verdade.Agora teremos que realmente Elaborar uma Campanha Educativa à população,pontual sobre Hepatite C- a tal da silenciosa, mas na realidade a que não é detectada precocemente na prática clinica, já que poucos profissionais de saúde na atenção Básica, sabem sobre a mesma, ficando o conhecimento centralizado no setor de Epidemiologia.Quando uma doença se sabe pouco sobre usa transmissão , o que precisa ser feito é anamnese clinicas mais direcionadas, historias de hemorragias, caimbras, passado transfusional,em especial nas mulheres( hemorragias nas gestações, nos pós-parto antes de 1991, mulheres que fazem abortos clandestinos em clinicas desqualificadas. etc.).Sou Enfermeira Sanitarista, tenho 65 anos, há 37 anos me contaminei(?) hoje diagnosticado Hepatite C, após transfusões sanguíneas em 1973 e 1974, trabalhadora de Saúde nos Programas de AIDS, Hepatites, emergencias Obstetricas, etc.Sem fator de risco sexual , nunca fiz tatuagens, piercing, ou usei seringas em rodas de drogadição… É preciso estudos inclusive sobre Durabilidade do virus fora da corrente sanguínea como na AIDS. VIRUS COM ESTRUTURA COMPLETAMENTE DIFERENTE DO VIRUS DA AIDS E DA HEPATITE B ALTA TRANSMISSÃO VIA SEXUAL)Doença ainda com poucos trabalhos científicos que garantam modo de transmissão além do sanguíneo.Devemos ter cuidado ,POIS A COMPREENSÃO DO ESTUDO GEROU COMPREENSÕES LIMITADaS A SEXUALIDADE.Agora como paciente, mas continuando com a formação profissional em Epidemiologia estou envolvida nas ações Eduucativas sobre a doença. Sõnia

  7. Olá Atila,
    Como pode-se afirmar qualquer hipotese de infecção em doentes crônicos?
    Sinto muito, mas não precisamos falar mais nada para derrubar suas teses publicadas no estudo. Só essa pergunta já leva seu estudo por água abaixo.
    E sugiro que vc procure se informar mais sobre a população infectada, pois caso tivessem feito, saberiam que 80% são mulheres que não estiveram em grupos de risco e com poucos parceiros sexuais.
    Grupo MegLon

  8. @André,
    Acho que jornalistas são fundamentais para a divulgação científica, cientistas e jornalistas não são multuamente exclusivos. Já conheci vários cientistas que escreveriam muita bobeira na área em que atuam, quem dirá se tivessem que cobrir muitos temas juntos, e dependendo da interação com outros.
    O tipo de jornalismo científico que o G1 faz, com uma pessoa tocando Saúde e Ciência ao mesmo tempo, torna um lixo o que for escrito por qualquer profissional.

  9. @Gerardo e André,
    Junto com o press release, as agência de notícia recebem os artigos na íntegra. E a idéia do embargo é dar tempo para que os jornalistas possam entrevistar autores e especialistas da área.

  10. @Sonia,
    Entendemos que o perfil dos primeiros infectados é de transfundidos, mas estamos falando dos casos mais novos. E, de nvo, em nenhum momento falamos que o vírus é transmitido sexualmente, ainda mais quando apontamos o tipo de comportamento de risco das pessoas com muitos contatos.

  11. @Telma,
    Afirmamos nossas hipóteses com base em um questionário detalhadíssimo feito por médicos com mais de 1000 pacientes com HCV no Estado, e com base na variabilidade genética dos vírus coletados destes pacientes.
    Nos nossos dados, 60% dos pacientes são homens, e independente disso, a afirmação que fazemos sobre um subtipo estar relacionado com pessoas que têm mais parceiros é baseada nos 30 indivíduos que tiveram mais de 50 parceiros a vida toda, 29 dos quais são homens. Estamos falando de um grupo dentro da nossa amostra, e não de todos os infectados.

  12. @Atila,
    Confesso ter visto o anúncio da matéria no portal da Uol, mas pelo título desisti de ler, logo vi que a informação devia estar muito deturpada. Mas achei genial a comparação entre as matérias. O que me preocupa é que muita informação errada tem se difundido e tudo isso poderia ser evitado se os autores das matérias se dessem ao trabalho de ler o artigo…
    Mas sabe o que é pior? Tomando a vovó lá de cima, não importa se vc for especialista no assunto, o cara da TV tem mais credibilidade que vc! :o[

  13. Isso é o que acontece quando jornalistas leigos querem escrever sobre algo que não entendem. É igual ao qualquer avanço na genética, que sempre é traduzido como “Cientista brinca de Deus”.
    Nunca é verdade, mas vende bem mais jornal.

  14. Com raríssimas excessões, o cruzamento entre informação em papers e em jornais são terrivelmente discrepantes. Apesar de concordar que, no geral, a maior parte das pessoas não necessita conhecer “as fontes originais”, pelo menos o jornalista deveria.
    Abraços.

  15. Pois é, o jornalista, suponho, deveria fazer a ponte entre os papers e os jornais para que o público leigo possa entender aquilo para o qual não tem conhecimento técnico. Tudo bem que o jornalista muitas vezes também não tem, mas tem meios para suprir esta falta e, portanto, evitar discrepâncias. Talvez lhes falte tempo pra aprofundar o entendimento ou ler o paper na íntegra… a demanda pede notícia rápida.
    Gostaria de escutar a versão de algum jornalista a respeito. O que acontece entre o paper e as redações dos jornais?

  16. gostaria de enviar um assunto caso seja interessante gostaria se possível
    a importância de um gestor de rh e sua diferença da profissão de contador

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