Um conto celestial


Foi assim que aconteceu. Em um daqueles momentos realmente irĂŽnicos da vida, Fulano, criacionista de carteirinha  – ou propositor de uma alternativa cientĂ­fica Ă  evolução, como ele gostava de se dizer – morreu por conta de uma infecção. Graças a uma bactĂ©ria resistente em seu intestino, que foi selecionada por antibiĂłticos. Pff, mera microevolução.

Chegando aos céus, ou pelo menos um lugar bem iluminado, acolhedor e familiar, ele encontrou o Criador. Não tinha como se enganar, aquela sensação reforçava isso dentro dele. Por mais que formas não fossem distinguíveis, era possível sentir aquela presença ao seu redor. Ninguém precisava explicar nada, ele sabia onde estava.

– Oi? É vocĂȘ o Criador?

– POIS NÃO.

– Antes de qualquer coisa, gostaria de tirar uma dĂșvida que sempre me atormentou. Foi vocĂȘ quem criou os seres vivos?

– ALGUNS SIM, OUTROS DEIXEI POR CONTA.

– Quer dizer que alguns organismos foram especificamente desenhados por vocĂȘ? HĂĄ um propĂłsito em certas formas de vida? EntĂŁo ele estava certo. Continuou, tremendo de excitação.

– CLARO. CREIO QUE DEIXEI ISTO BEM EVIDENTE.

– Toma essa Dawkins!

– COMO?

– Desculpe, picuinhas da vida terrena. Quer dizer entĂŁo que nĂłs fomos desenhados por VocĂȘ?

– AH, SIM. ACHEI QUE TODOS APRECIARIAM MEU HUMOR AO OBSERVÁ-LOS.

Nesse momento, aquele frio no estĂŽmago apareceu. Como assim fomos feitos para mostrar o humor do Criador?

– Seu humor? O que hĂĄ de tĂŁo engraçado nos humanos?

– NÃO É ENGRAÇADO UM ANIMAL COM AQUELE BICO, AQUELAS PATAS E PELUDO? ACHEI QUE FOSSE…

– Bicos, patas? Ainda nauseado pelo susto, Fulano tentava se recompor.

– SIM, ESTAVA INSPIRADO NO DIA EM QUE DESENHEI SUA ESPÉCIE. QUEM MAIS PENSARIA EM UM MAMÍFERO QUE PÕE OVOS? DIGO, EM TEMPOS MODERNOS.

O chĂŁo voltou aos seus pĂ©s. Menos mal, o Criador havia se enganado, e estava falando sobre animais inferiores. Vamor ver o que Ele tem a dizer sobre os seres humanos, o ĂĄpice da inteligĂȘncia e das formas de vida por Ele criadas.

– NĂŁo, nĂŁo. Estes sĂŁo os ornitorrincos. Me refiro aos seres humanos. Feitos Ă  sua imagem e semelhança, inteligentes o suficiente para apreciar Sua Criação. Dotados de alma e capazes de amar.

– HUMMM… NADA ME VEM À MENTE AINDA. QUE ESPÉCIE É ESSA?

– Humanos. Duas pernas, dois braços, capazes de fazer ferramentas, de criar poesias e toda forma de arte!

– CLARO! VOCÊ FALA DAQUELES PRIMATAS BÍPEDES E BARULHENTOS, SEM PÊLOS. COBERTOS DE ALGODÃO.

NĂŁo era a melhor das descriçÔes, e sem dĂșvida o decepcionou. Mas era esta espĂ©cie mesmo.

– Sim!

– NÃO, VOCÊS SÃO FRUTOS DO ACASO MESMO. BASTANTE CONVENIENTES EU DIRIA. MAS NUNCA ME INTERESSEI MUITO POR MAMÍFEROS, NO MÁXIMO ALGUNS DAQUELA GRANDE ILHA. BESOUROS SÃO MUITO MAIS INTERESSANTES, GASTEI MUITO DO MEU TEMPO OS DESENHANDO. POR QUE ACHA QUE SÃO TÃO DIVERSOS?

Novamente o chão pareceu fugir de seus pés. Desta vez Ele foi muito claro, estava falando de humanos. Mas era impossível que não fossem desenhados pessoalmente pelo Criador.

– Com todo perdĂŁo, VocĂȘ deve estar se enganando. Como assim, nĂŁo fomos desenhados? Somos a espĂ©cie dominante da Terra!

– CLARAMENTE VOCÊ DESCONHECE AS BACTÉRIAS. ELAS SÃO OS ORGANISMOS DOMINANTES  DA TERRA, DEDIQUEI BASTANTE CRIATIVIDADE ALI, MESMO COM AQUELES BACTERÓFAGOS SEMPRE ENTRANDO EM MEU CAMINHO. ALÉM DISSO, SÃO COMPANHEIRAS DE LONGA DATA NESTE PLANETA

– Mas nĂłs fomos capazes de mudar o clima do mundo!

– SIM, POR ISSO SÃO CONVENIENTES. MAS SE QUER SABER O QUE É MUDAR O CLIMA MUNDIAL, DEVIA VER O QUE AS FOTOSSINTETIZANTES REALIZARAM HÁ TRÊS E MEIO BILHÕES DE ANOS, QUANDO COMEÇARAM A LIBERAR OXIGÊNIO. AQUILO SIM FOI UMA MUDANÇA, EMBORA OS ANAERÓBIOS NÃO TENHAM GOSTADO MUITO DA IDÉIA.

Fulano sentia um gosto amargo em sua boca. Ou pelo menos onde a boca existira até algum tempo atrås. As sensaçÔes ainda persistiam por algum tempo. Ele tinha que resolver este mal-entendido. Afinal, humanos foram desenhados por Ele, é o que Fulano havia tentado provar por muito tempo àqueles cientistas arcaicos que não aceitavam novas idéias.

– Mas o homem foi o primeiro ser vivo a chegar na Lua!

– NA VERDADE, NÃO. HAVIA UMA SÉRIE DE BACTÉRIAS NO EQUIPAMENTO DE VOCÊS, INCLUSIVE DO LADO DE FORA DA NAVE. LOGO, ELAS CHEGARAM PRIMEIRO. ALÉM DISSO, ELAS E AS ARCHEA JÁ ESTÃO PRESENTES NA POEIRA ESPACIAL AO REDOR DO PLANETA HÁ MUITO TEMPO.

Alguma coisa que sĂł humanos fizeram, ele precisava provar seu ponto.

– JĂĄ sei! Fomos os primeiros e Ășnicos a dominar a energia atĂŽmica! NĂŁo que me orgulhe de Hiroshima e Nagasaki, mas nĂłs entendemos a energia nuclear. Como terĂ­amos feito isso sem a inteligĂȘncia que VocĂȘ nos deu? Disse, sem perceber que estava querendo discutir com quem de fato havia criado o mundo. Criacionistas nunca souberam muito bem lidar com fatos.

– ENTENDO SEU PONTO. MAS AINDA ACHO QUE VOCÊ IGNORA MUITAS COISAS. EXISTEM FUNGOS QUE USAM A ENERGIA IONIZANTE. E OLHA QUE NEM PRECISEI METER O BEDELHO ALI. AQUELES SAFADOS CONSEGUEM APROVEITAR QUALQUER FONTE DE ENERGIA. TENHO UM AQUI EMBAIXO DA UNHA DO PÉ QUE VIVE VOLTANDO.

Depois de alguns instantes tentando se desfazer daquela imagem mental, ele se recompĂŽs. Fulano tinha que provar ao Criador que Ele havia Criado os humanos. Convenientes ele havia dito, entĂŁo havia algum propĂłsito. Tinha que haver.

– Bom, vocĂȘ disse que Ă©ramos convenientes. Sempre soube que fomos criados para servir um propĂłsito maior. É por isso que somos inteligentes, nĂŁo? VocĂȘ nos fez inteligentes para que pudĂ©ssemos servĂ­-lo.

– SIM E NÃO. COMO JÁ DISSE, EU NÃO OS CRIEI, PELO MENOS NÃO DIRETAMENTE. APENAS FIZ AS REGRAS E VOCÊS FORAM UM RESULTADO FORTUÍTO DA SELEÇÃO NATURAL.

Como assim o Criador era selecionista? Calma, foco. Depois Ele vai perceber que a seleção natural Ă© uma farsa, concentre-se na inteligĂȘncia por enquanto.

– E em quem nossa inteligĂȘncia Ă© conveniente entĂŁo? Para podermos apreciar Sua obra?

– NA VERDADE ELA SÓ OS IMPEDE DE APRECIAR MINHA OBRA. VOCÊS ESTÃO SEMPRE SE PONDO NO CAMINHO, ACHANDO QUE O QUE PENSAM É O QUE EU FAÇO, PONDO PALAVRAS EM MINHA BOCA. SEMPRE ESTIVERAM MUITO OCUPADOS CONSIGO MESMOS PARA ENTENDER O QUE FIZ.

Pronto, era tudo que ele precisava. Mais Alguém para acuså-lo de não ouvir.

– E no que O servimos, entĂŁo?

– BEM, VOCÊS ME DERAM LIBERDADE PARA CRIAR.

– Ainda nĂŁo entendi. Disse, pela primeira vez em sua vida. Ou pĂłs-vida, talvez fosse tarde demais.

– A EVOLUÇÃO É APENAS UMA TEORIA, POR ISSO POSSO CONTRARIÁ-LA. JÁ AS LEIS DA TEMODINÂMICA EU PRECISO OBEDECER. AFINAL, SÃO LEIS. Desta vez era o Criador quem parecia um pouco desapontado. Azar, nĂŁo foi Ele quem se disse onipotente.

– UMA DESTAS LEIS DETERMINA QUE A ENTROPIA SEMPRE AUMENTA. E QUANDO CRIO ESPÉCIES, CRIO ORDEM. ISTO GERA UM DÉBITO DE DESORDEM QUE PRECISA OCORRER EM ALGUM LUGAR.

Quem diria, o Criador contrariava as Leis da Termodinùmica, e não a Evolução, pensou Fulano, ainda confortado pela idéia de ter um propósito.

– E como fazemos parte disso?

– SIMPLES. MEUS DISSIPADORES DE ENERGIA ESTAVAM SE ESGOTANDO. A CROSTRA DA TERRA JÁ ESFRIOU DEMAIS PARA NÃO PERMITIR MAIS GRANDES ERUPÇÕES, E JÁ NÃO HÁ MAIS GRANDES COMETAS PRÓXIMOS O SUFICIENTE PARA UMA COLISÃO CONVENIENTE. EU ESTAVA FICANDO SEM ALTERNATIVAS PARA DISSIPAR GRANDES QUANTIDADES DE ENEGIA.

– AÍ REPAREI EM VOCÊS. EM POUQUÍSSIMO TEMPO, JÁ ESTAVAM DOMINANDO FERRAMENTAS, FORMANDO GRANDES GRUPOS, CRIANDO UMA LINGUAGEM FALADA. VI O POTENCIAL.

– EntĂŁo nossa cultura foi o motivo de Sua predileção.

– LÁ VEM VOCÊ ATRIBUINDO A MIM COISAS QUE NÃO FIZ. VIU, ESTA INTELIGÊNCIA DÁ MUITO TRABALHO. MAS ME FOI ÚTIL. EM INSTANTES, VOCÊS HAVIAM SE ESPALHADO PELO PLANETA. LOGO SE TORNARAM OS MAIORES GASTADORES DE ENERGIA QUE JÁ VI. USANDO RECURSOS EM UMA ESCALA IMPRESSIONANTE, CONSEGUIRAM ATÉ ESPALHAR A ENTROPIA QUE ACUMULEI COM OS DINOSSAUROS E VARRI PARA BAIXO DO TAPETE. ALIÁS, DEVO RECONHECER QUE AS GUERRAS QUE VOCÊS FIZERAM PELO CONTROLE DO PETRÓLEO E OUTROS RECURSOS SÃO A FORMA MAIS EFICIENTE DE GASTAR ENERGIA SEM PROPÓSITO.

Fulano nĂŁo podia acreditar nos seus ouvidos. Ou no que o que quer que eles fossem agora o comunicavam.

– IMPRESSIONANTE COMO VOCÊS NÃO CONSEGUEM FAZER NADA SEM GERAR UMA QUANTIDADE ABSURDA DE ENTROPIA. E O MELHOR, A INTELIGÊNCIA NÃO SÓ OS DÁ AS FERRAMENTAS PARA FAZER ISSO, COMO OS IMPEDE DE ENXERGAR O QUE FAZEM. E QUANDO ENXERGAM, AINDA SE ENGANAM. ACHAM QUE BASTA APAGAR UMA LUZ DA SALA POR UMA HORA E PRONTO. DELICIOSO, NEM EU HAVIA PENSADO NISSO. UM MECANISMO QUE GASTA TODA ENERGIA QUE PRECISO E AINDA TEM UM PRAZO PARA SE AUTO-DESTRUIR. E O TIPO DE IGNORÂNCIA QUE VOCÊ AJUDOU A ESPALHAR SÓ AUMENTA ESTE GASTO. PENSAR QUE FORAM ESPECIALMENTE FEITOS POR MIM SÓ OS DEU MAIS MOTIVOS PARA SE COMPORTAR ASSIM. COMO DISSE, MUITO CONVENIENTES.

Novamente aquele gosto amargo em sua boca voltava a crescer…


12 responses to “Um conto celestial”

  1. Moral da histĂłria: Nem Deus pra convencer um criacionista da validade da Teoria da Evolução… [2]
    Sou seu fĂŁ!

  2. O que mais gostei do texto (alĂ©m da crĂ­tica aos criacionistas fundamentalistas e “cegos” ao tĂŁo visĂ­vel) foi a clara nĂŁo-negação de Deus (mesmo sendo irĂŽnico, realmente isso aconteceu). Apesar da Evolução ser uma Teoria-fato, clarĂ­ssima para nĂłs biĂłlogos e pra todos que quiserem ver, a origem nĂŁo pode, nĂŁo Ă© e nĂŁo serĂĄ jamais assim tĂŁo clara, talvez nunca haverĂĄ uma explicação plausĂ­vel (cientĂ­fica)para tal. Ainda fico com a possibilidade improvĂĄvel de um Deus (como o texto sugere) que deu inĂ­cio Ă s coisas e deixou q a evolução agisse, mas que, se Ă© mesmo o criador, ainda, de alguma forma, exerce influĂȘncia naquilo que lhe aprouver.
    Destaco tambĂ©m a ferrenha crĂ­tica ecolĂłgica (Ăłtima!) e acrescento os tantos anti-criaciocistas que hoje sejam talvez os maiores gastadores dessa energia necessĂĄria para uma produção com fim inĂștil (apesar de nos meandros terem gerados coisas Ășteis) que sĂŁo os GRANDIOSOS do CERN e coisas semelhantes. O q jĂĄ se gastou com o Acelerador Linear de PartĂ­culas poderia ter sido usado para fins muito mais nobres e Ășteis.
    Enfim…
    BenĂ© – Evolucionista TeĂ­sta convicto (atĂ© q se prove o contrĂĄrio, jĂĄ q sou cientista).

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