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Recentemente li a notícia de que pretendem diminuir as vagas da USP Leste, onde um dos comentários é que isso aumentaria a nota de corte e a qualidade dos alunos. Imediatamente me lembrei de uma discussão que tivemos na disciplina de Ensaios Pedagógicos do meu departamento. A questão é, os alunos que (entre outras coisas) que dão a boa fama da USP tiveram uma boa formação ou simplesmente foram filtrados pelo vestibular? Eu acredito mais na segunda alternativa. Acho que a Universidade de São Paulo é muito favorecida pelos alunos autodidatas que passam no vestibular.

Durante a graduação, tive várias disciplinas que contavam com o método de ensino conhecido como “ferra na prova”. O docente não tem tempo de preparar a aula? Cobra a matéria na prova, dá o nome do livro texto e os alunos que se virem. Quem deu aula foi o monitor? Cobra a matéria na prova, dá o nome do livro texto e os alunos que se virem. O docente não quer dar aula? Passa uma lista de exercícios, cobra a matéria na prova, dá o nome do livro texto e os alunos que se virem. 
Claro, existem matérias onde a lista de exercício é planejada e bolada para que os alunos pensem sobre problemas que o façam compreender conceitos importantes, que muitas vezes seriam esquecidos ou deixados de lado se fossem apenas ouvidos. Microbiologia e Bioquímica foram duas disciplinas onde os exercícios me foram fundamentais para entender os pontos mais importantes. Mas também tive disciplinas em que o professor apareceu na primeira aula, apresentou os monitores “dúvidas vocês tiram com eles”, passou a lista de exercício e só apareceu de novo no dia da prova. 
E sei de vários casos nas exatas onde isso é muito mais extremo. Disciplinas inteiras que se resumem a dar a lista de livros a serem lidos e cobrar o conteúdo na prova. Agora, isso é ensinar? Isso é escolher. Jogue o tema, e aqueles que forem autodidatas o suficiente vão aprender por conta, ou em muitos casos decorar e escrever na prova. Simples assim. Não vejo outra forma de explicar como cursos como matemática (licenciatura e bacharelado), física e outros acabam formando menos de 10 alunos por turma em alguns anos. 
As provas são outro exemplo de como o método funciona. Lembro da disciplina de Fisiologia (acho que Fisio2) em que o Zé Gui deu uma prova fantástica. A prova consistia em uma história com problemas hipotéticos que podíamos levar para casa para responder, dependiam de um entendimento completo da matéria. Não se tinha de onde copiar as respostas (já que eram perguntas hipotéticas), e depois se respondia mais algumas questões na sala. Descobri o pdf com toda a saga maldita [pdf] das rãs hipopótamo, uma história de ficção que foi contada ao longo de vários anos da disciplina, exemplar. Mas é a exceção da exceção. Muitas das provas que fiz tinham as tradicionais perguntas e correção comparativa, cada questão tem o seu máximo ditado por quem escreveu a resposta mais completa. Sabe o que correção comparativa quer dizer para mim? “A matéria que passei não estava completa, não confio em quem simplesmente entendeu os princípios do que ensinei. Vou recompensar quem conseguiu decorar a maior quantidade da matéria de ontem para hoje e vomitar na resposta, e com certeza vai esquecer até amanhã.” O que a correção comparativa avalia? O aluno ou o entendimento da matéria?
E assim segue a graduação, muita matéria jogada em aulas que quem pode não assiste, e depois corre para estudar <na madrugada anterior dias antes, com base em um bom livro ou na cópia do caderno de um ou dois que sentam na primeira fileira e fizeram curso de escrita corrida. Ganha quem conseguir absorver o máximo por conta própria e escrever mais na prova. Poucos são os professores que se preocupam em dar a matéria de maneira que ela seja mais compreensiva. E isso é esperado, afinal, o docente que está dando a matéria passou pelo mesmo processo quando fez graduação, e isso funcionou para ele. Na própria disciplina de Ensaios Pedagógicos, alguns alunos falaram “Ah, esse sistema é bom, eu me dei bem com ele!”. Claro, são os alunos que já foram selecionados previamente para funcionar nesse sistema.
Não vou entrar na discussão do que é o vestibular da Fuvest, e como ele deveria ser. Sei que foram feitas várias mudanças para diminuir a quantidade de conteúdo decorado e aumentar a quantidade de raciocínio lógico cobrada nos últimos anos. Mas é triste saber que muitas escolas pautam o conteúdo exclusivamente no vestibular, e focam em ensinar os alunos a decorar aquela matéria. Vários colégios reproduzem no Ensino Médio o que os Cursinhos Pré-vestibular fazem, condicionam o aluno a decorar listas de nomes, musiquinhas para guardar os mais complicados e pronto. Marque a alternativa com os nomes certos e acabou. O resultado é que muitos dos alunos do primeiro ano que passaram na Fuvest para os quais dei monitoria esquecem conceitos básicos que tiveram no colégio ou não sabem fazer as ligações mais básicas entre um conteúdo e outro. Em bioquímica, quando se vê o reflexo de propriedades químicas de moléculas como açúcares e lipídios em seres vivos, muita gente fica perdida. Os alunos decoraram química orgânica, decoraram biologia celular, e juntar A com B vira um sacrifício. O próprio Richard Feynman apontou isso em 1951!
Fiz o curso de Ciências Biológicas na USP, e achei um curso muito completo. Tive muito conteúdo, e percebo a falta que um bom curso faz na pós-graduação, quando estudantes que fizeram cursos mais fracos tem visivelmente mais dificuldade. Mas tenho sérias dúvidas sobre se essa impressão não se deve mais pela minha facilidade de decorar o conteúdo e responder, como fiz no vestibular, do que pelo ensino que recebi na graduação. O conteúdo foi bom, mas e o método? Isso tendo ouvido de vários alunos, do meu curso e de outros, que a Biologia ainda tinha muitas aulas boas. Cursos de humanas e exatas tinham histórias pavorosas. 
O que me faz pensar em quantos ótimos alunos a USP não está perdendo pelo formato com que escolhe quem entra ou não. Afinal, bom aluno é aquele que decora bem?
p.s.1: Também não acho que diminuir vagas para aumentar nota de corte seja garantia de melhores alunos, independentemente de escolher quem consegue decorar mais. No primeiro ano, todos recém aprovados e com o ego inflado por isso, muitos colegas ficavam apontando “olha, fulano ali foi o primeiro colocado” “beltrano passou só na quarta chamada”. No quarto ano, fulano e beltrano tiravam a mesma nota, quando um dos dois não estava de ressaca.
p.s.2: Se, como apontaram nos comentários no GReader que acompanho, o objetivo da USP não é ensino, e sim pesquisa, a coisa muda bem de figura. Afinal, se pesquisador bom precisa ser autodidata, é o que estão escolhendo. E, realmente, não me lembro de ouvir uma vez na minha graduação “no mercado de trabalho vocês vão precisar disso” ou qualquer coisa do tipo. Em compensação “quando você for docente”, “na sua pesquisa” e “no seu laboratório” eram diários.
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