Em 1854 o bairro de Soho em Londres sofreu o mais sério surto de cólera da cidade na história. John Snow, médico inglês pioneiro em técnicas de anestesia com éter e colofórmio, reuniu meticulosamente dados sobre os casos em seu bairro, mapeando as casas atingidas e relacionando os casos com pessoas que haviam bebido água da fonte de Broad Street. Pela primeira vez alguém utilizava dados e mapas para entender e impedir uma infecção.
John Snow basicamente fundou a epidemiologia moderna, indo contra o pensamento corrente na época de que a cólera seria transmitida pelo mau cheiro (teoria do miasma), ao propor que alguma coisa contida nas fezes dos doentes transmitiria a doença quando ingerida junto da água. Isso, claro, antes da idéia de que germes seriam os causadores de doenças infecciosas. Entre ele propor sua teoria em 1849, demonstrá-la diretamente ao fechar a bomba em 1854, e as autoridades londrinas aceitarem sua teoria e impedirem outro surto em 1866, foram quase 20 anos para que suas idéias fossem aceitas.
De certa forma, é mais uma história que ilustra como a ciência leva tempo para aceitar novas idéias, e como teorias correntes dificultam este processo. Um pioneiro propondo algo importantíssimo que não foi levado a sério, e depois de aceito acabou revolucionando a maneira como compreendemos uma questão.
Este é um dos argumentos mais usados por quem propõe “ciência alternativa” como homeopatia ou auto-hemoterapia: cientistas estão ocupados demais com suas teorias correntes para aceitar algo inovador. O que não se menciona é que Snow precisou de muito embasamento para sua teoria. Precisou utilizar dados estatísticos sobre o número e local de doentes e mortos, precisou da ajuda do reverendo Henry Whitehead para traçar as condições e hábitos dos moradores locais e precisou mostrar como o poço havia sido contaminado para mostrar que a água podia transmitir cólera. Ele chegou ao ponto de mapear a distância a pé das casas à bomba para explicar locais aparentemente próximos que haviam se salvado, e locais distantes condenados.
Acima de tudo, John Snow teve de mostrar que sua teoria funcionava, e aplicá-la. Criacionismo, homeopatia e outras idéias furadas não são novas teorias que a ciência não aceita. São teorias antigas que não aceitaram o avanço da ciência. Ainda acreditam na mágica do mau-cheiro. Não foram capazes e juntar dados para mostrar o que propõe, muito menos propor maneiras de testar o que se afirma de maneira que sejam refutadas ou não.
Deixando de lado o miasma, acompanhem a palestra do TED (legendas em PT clicando em view subtitles) de Steven Johnson, autor do livro The Ghost Map: The Story of London’s Most Terrifying Epidemic–and How It Changed Science, Cities, and the Modern World onde faz uma ótima descrição de como Snow mudou a maneira de se pensar sobre doenças, e das consequências que vemos até hoje. Recomendo bastante o livro, que não foi lançado aqui.
[atualização] conforme o ze informou nos comentários (obrigado), o livro foi lançado aqui e está disponível.
4 responses to “John Snow e a transmissão da cólera”
o mapa fantasma foi lançado em portugues sim:
http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/produto.dll/detalhe?pro_id=2217234&ID=C915C6917D9011B0B27151168&pac_id=20940&gclid=CJmGn_Pd76cCFcZe2god5XHdbg
[…] há registros de um mapeamento do surto de cólera, que ocorreu em 1854, no bairro do Soho, em Londres, feitos pelo médico inglês John Snow. Este […]
[…] exemplos dos primeiros infográficos que se tem conhecimento, foi mostrado o mapa da cólera (de 1854) para exemplificar a importância da visualização de dados. Também como exemplo foi […]
[…] A infografia nasce a partir da necessidade de coleta de dados e informar estes dados para um público geral, que foi o que aconteceu em Londres no século XIX, quando John Snow precisou do recurso da infografia para que a sua hipótese quanto a transmissão da cólera fosse aceita (saiba mais aqui.) […]