Dos pepinos espanhóis ao genoma nos blogs: E. coli patogênica na Alemanha


Como bactérias saltando entre intestinos e genes saltando entre bactérias vão para sua salada.

 
E_coli
Escherichia coli Fonte: Wiki
 

Desde a segunda metade de maio, a Alemanha vem sofrendo de casos de síndrome hemolítico-urêmica (HUS) infecciosa. Os sintomas são diarréia sanguinolenta, dores abdominais, vômitos e presença de sangue na urina, em mais de 600 casos envolvendo até dia 05 de maio (hoje) 15 mortes. O agente causador foi confirmado como a variante enterohemorrágica de Escherichia coli O104:H4 (EAggEC VTEC), que além da síndrome hemolítico-urêmica causou outros 1536 casos de infecção que incluem 6 mortes.

A princípio, a contaminação foi ligada a pepinos espanhóis, fonte que foi descartada posteriormente em um embaraço internacional que gerou a foto da ministra espanhola abaixo. A fonte mais provável até o momento parece ser brotos de feijão produzidos na própria Alemanha, mas de qualquer forma não é recomendado o consumo de vegetais produzidos no país como um todo.

Mas, para entender melhor o que está se passando, quem é esta E. coli e como ela (não) foi parar no pepino, precisamos ir um pouco mais a fundo…

pepino

(Foto: Francisco Bonilla / Reuters)

Da fralda de bebês ao O104:H4

Isolada em 1885 pelo pediatra alemão-austríaco Theodor Escherich das fezes de crianças alimentadas apenas com leite materno, a Escherichia coli foi nomeada por seu descobridor Bacterium coli-communis, ou bactéria comum do intestino. Ela só recebeu seu nome moderno como homenagem a Theodor em 1918, e desde então é o ser vivo mais estudado e conhecido pela ciência [1].

Sua classificação e nomenclatura foi baseada no reconhecimento de suas moléculas por anticorpos, técnica bastante comum em microrganismos antes das tecnologias mais recentes de sequenciamento de DNA, mesmo princípio que serve para nomear variantes do influenza. As variantes de seu flagelo, proteína que a bactéria usa para se locomover no meio líquido, são chamadas de H, do alemão Hauch, no sentido de nuvem, por causa do movimento das bactérias. Quando tratadas com álcool, elas perdiam os flagelos, ficando sem movimento, Ohne Hauch, expondo seus antígenos O. Hoje sabemos que os antígenos O são lipídios da membrana externa desta bactéria. Atualmente, são conhecidos mais de 170 antígenos O e 56 antígenos H [2]. Assim, esta linhagem recebe seu nome por conter a variante 104 de O e 4 de H.

Conforme o sequenciamento relâmpago feito pelo BGI (Beijing Genomics Institute), um centro de pesquisa chinês, trata-se de uma variante inédita de O104 – que segundo o Mike, the Mad Biologist não é tão nova assim, e talvez circule desde 2001. Esta linhagem compartilha mais de 90% de seu genoma com a linhagem EHEC 55989 conhecida por causar diarréia grave isolada da República Centro-Africana.

De inofensiva ao EAggEC VTEC

Quando falamos E. coli, nos referimos a uma espécie de bactéria que possui muito mais faces do que o nome revela. Se organismos complexos como animais possuem linhagens distintas por genes compartilhados e com algumas diferenças entre si, uma mesma espécie bacteriana pode apresentar uma variedade de genes únicos de algumas linhagens. Bactérias trocam genes em uma quantidade absurda.

Graças a esta troca toda de material genético, a E. coli é capaz de adquirir diversos estilos de vida diferentes, de acordo com o que carrega. A linhagem EHEC 55989 por exemplo, possui proteínas que permitem que ela se prenda na superfície do intestino, sendo muito mais persistente que a variante mais comum em nossos intestinos e causando diarréias graves por conta da inflamação que desencadeia. Esta capacidade de se ligar à células intestinais, inclusive células epiteliais em cultura, foi o que deu seu nome, E. coli EnteroAgregativa, EAggEC [3].

Outro gene que a linhagem O104 adquiriu e é a fonte da síndrome hemolítico-urêmica que causa é a verotoxina. Seu nome vem da capacidade de destruir células Vero em cultura. Esta toxina é formada por duas subunidades A e B. A subunidade B reconhece proteínas que ficam na superfície das células epiteliais de vasos sanguíneos e lança a subunidade A para dentro delas. Uma vez dentro da célula, a subunidade A impede o funcionamento dos ribossomos e bloqueia a produção de proteínas celulares, matando-a.

A destruição das células epiteliais dos capilares sanguíneos pela VeroToxina da E. coli, ou VTEC, faz com que estes vasos se rompam e ocorra sangramento. O sangramento nos intestinos causa a diarréia hemolítica, e a destruição dos vasos dos néfrons, unidades filtradoras de sangue nos rins, causa os problemas urêmicos.

Do intestino de outros animais ao nosso

Existem diversas linhagens EnteroHemorrágicas de E. coli, as EHECs, muitas das quais habitam o intestino de animas de criação. Como a verotoxina e outras similares precisam reconhecer proteínas de superfície da célula, e animais como o gado e os porcos muitas vezes não possuem tais receptores, eles podem ser hospedeiros assintomáticos destas bactérias.

Quando a água utilizada na irrigação dos vegetais está contaminada, ou o adubo animal no caso dos alimentos orgânicos, a E. coli patogênica pode sobreviver dias. E a contaminação também pode ocorrer durante o transporte e no processamento dos alimentos, algo que não pode ser descartado neste surto alemão. Outros casos de EHECs já foram ligados a carne contaminada, inclusive hambúrgueres.

Um dos maiores problemas desta fonte é que muitas vezes criadores dão antibióticos aos seus animais, para aumentar o ganho de peso ou mesmo conservar a carne depois de processada. A consequência direta é que muitas linhagens patogênicas possuem genes de resistência a antibióticos que dificultam em muito seu tratamento. Esta linhagem de O104 possui genes de resistência a pelo menos três classes de antibióticos, que incluem drogas de uso comum como Amoxicilina, Tetraciclina e Ampicilina, segundo o sequenciamento feito pelo BGI e o relatório do Instituto Robert Koch.

Do sequenciamento aos blogs

Como uma boa epidemia moderna, todo tipo de dado já está disponível sobre este surto. A exemplo da epidemia de H1N1 de 2009,  BGI já disponibilizou o genoma da O104 no NCBI, e vem atualizando seu Twitter constantemente com informação mais recente. Um GitHub também já foi criado para a análise de dados colaborativa.

Aliás, algo que me deixou positivamente surpreso é quantidade de análise que está sendo publicada em blogs. Sim, antes de qualquer grande artigo na Nature, Lacet ou Science, blogs escritos por pesquisadores estão publicando as primeiras análises do genoma sequenciado. Se quiser acompanhar, aqui vão os primeiros posts:

EdgeBio – First Look Analysis of Deadly E. Coli in Germany

EdgeBio – Digging Deeper on TY2482 and Intro of Second Sequenced Bug – German E. coli Outbreak Strains

Pathogens: Genes and Genomes – EHEC Genome Assembly

bacpathgenomics – EAEC / STEC genomes

bacpathgenomics – EHEC genomes

Fontes:

[1] Zimmer, C. (2008). Microcosm: E. Coli and the New Science of Life (p. 256). Knopf Doubleday Publishing Group.

[2] Schaechter, M., & Lederberg, J. (2004). The desk encyclopedia of microbiology (p. 417). Academic Press.
[3] Wiedmann, M. (2011). Genomics of Foodborne Bacterial Pathogens (p. 133). Springer.

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9 responses to “Dos pepinos espanhóis ao genoma nos blogs: E. coli patogênica na Alemanha”

  1. Mais um vez obrigada, Atila!
    Texto fluido, gostoso de ler e uam serie de links interessantes.
    So um detalhe que me deixou em duvida:
    AO final do 2o paragrafo na secao “Da fralda de bebes ao O104:H4” voce escreveu: ‘Atualmente, são conhecidos mais de 170 antígenos O e 56 antígenos H [2]. Assim, esta linhagem recebe seu nome por conter a variante 104 de H e 4 de O.’
    Voce nao teria digitado errado e trocado o ‘O’ e o ‘H’ na frase?

  2. Átila,
    a sua constatação é bastante relevante, esta de que:
    “Aliás, algo que me deixou positivamente surpreso é quantidade de análise que está sendo publicada em blogs. Sim, antes de qualquer grande artigo na Nature, Lacet ou Science, blogs escritos por pesquisadores estão publicando as primeiras análises do genoma sequenciado.”
    .
    E não só em termos de informações sobre sequenciamento, mas sobre os mais diversos temas.
    .
    Qual o caminho que a divulgação de informação científica está tomando, neste novo universo em que a comunicação ganha novas ferramentas?
    .

  3. Flávio,
    Venho notando essa ‘migração’ da publicação científica das revistas para os blogs.
    Na área em que pesquiso (mundos virtuais) tem muita informação relevante em blogs e fórums. Mas, depois, fica complicado citar porque a academia ainda não entende que esses são os canais mais ágeis para uma informação que se desatualiza com muita velocidade.

  4. @Flávio e demais,
    Acredito que blogs têm bem mais flexibilidade e capacidade pra discutir notícias científicas, sem prazos e escrito por especialistas. Os jornais tão cortando editorias de ciência, misturando com saúde e demitindo jornalistas, o que retringe muito a profundidade que podem dar aos assuntos. Pesquisas que não saem em Nature ou Science, a não ser em casos exepcionais, não serão discutidas em jornais.
    Por um lado, isso valoriza os blogs e traz importância, mas restringe muito o alcance deste tipo de conteúdo, principalmente pq internet dá os resultados que você busca. No jornal, acho muito mais fácil a pessoa acabar lendo o conteúdo de ciência, mesmo se ela não estava planejando. Enquanto em blogs, você precisa clicar naquele conteúdo para ver.

  5. Tempo que não comento aqui–séculos!
    Acho que um dos problemas do arxiv/nature preceedings/etc estão justamente nas diretrizes das revistas. Muitas (fico com o exemplo da Journal of Microbiology) consideram que qualquer parte do trabalho publicada previamente (como colocar num arxiv da vida) já coloca o artigo a ser submetido numa posição difícil..
    Já outras (vejam o bom exemplo da PLoS) não vêem dificuldades nisso, o que é louvável, afinal, especialmente num caso de surto como esse, quanto mais rápidas forem as análises melhor será o controle da doença. E uma das análises interessantes que vi num desses blogs que Átila postou foi justamente uma maneira de identificar a cepa causadora desse surto. Ou seja, não podemos esperar terminar todo o processo de peer-reviewing até termos as informações–até lá, ou o surto já foi controlado ou estaremos todos mortos.
    Abs!

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