Antes de tudo, vamos desmentir o boato de que a Fundação Rockefeller teria patentes do Zika vírus desde 1947. Em seguida, porque a maneira como damos aula atualmente continua contribuindo para que esse tipo de boato circule.
Passo 1 – Acesse o site da LGC e descubra que o que está sendo anunciado não é uma patente. Mas sim amostras de Zika vírus isolado do sangue de um macaco reso, mantidas em cultivo desde 1947.
Passo 2 – Leia o que é a ATCC e descubra que é a American Type Culture Collection, uma organização sem fins lucrativos que mantém desde 1925 culturas celulares, organismos e reagentes para laboratórios ao redor do mundo. O que inclui até células do útero de uma mulher que morreu em 1951.
Passo 3 – Saiba que é praxe para cientistas comprarem organismos e células para ensaios de laboratório. Como preparar um teste para detecção rápida de Zika, desenvolvimento de vacinas ou mesmo comparar o vírus que entrou no Brasil em 2015 com o primeiro isolado africano, para saber se houve alguma mudança que explica o surto atual – organismos mais perigosos têm circulação controlada e muitas vezes dependem de autorização especial ou não são vendidos.
Passo 4 – Faça uma busca pela referência dada no site do vendedor: “Dick GW. Trans. R. Soc. Trop. Med. Hyg. 46: 509, 1952.” e encontre o artigo original, que mostra o envolvimento da Fundação Rockefeller e do misterioso J. Casals:
Pronto, agora você já sabe que o vírus foi coletado e isolado por pesquisadores da Fundação Rockefeller, lá na floresta de Zika, em Uganda em 1947. Justamente porque era a fundação que mantinha esse tipo de linha de pesquisa. Aliás, isolaram e doaram o vírus para quem mais quisesse estudá-lo. O custo de €599 vem do gasto para manter o vírus em cultura e congelado em estoque, não do valor de patente ou qualquer coisa do tipo. Sem contar que organismos isolados da natureza não podem ser patenteados.
Essa é a diferença entre saber uma informação, “o zika foi patenteado pela Rockefeller Illuminati”, e entender uma informação, “o zika está disponível para cientistas fazerem sua pesquisa”.
A diferença entre ter acesso à informação e aprender
É normal esperar que surjam boatos sobre uma doença até então pouco conhecida e contra a qual não temos vacinas ou terapia. Eu já aprendi a minha lição com a gripe suína de 2009 – que por sinal também passou por conspirações ligadas à Fundação Bill e Melinda Gates. Por isso mesmo, quando estava ministrando o curso de Internet no Ensino de Ciências e Biologia com a professora Sônia Lopes, mudamos a atividade cobrada na disciplina. A turma de licenciatura em biologia precisou produzir material de apoio para que professores ensinem seus alunos a usar a internet para desmentir os boatos sobre Zika. Ensinar a desmentir, não desmentir diretamente.
A turma de licenciatura foi extremamente motivada, produziram páginas e mais páginas de material de apoio disponível abertamente na Wikipedia. E, de quebra, ainda tiraram do ar uma postagem mentirosa sobre microcefalia ser causada por vacinas vencidas. Acabaram terminando a atividade antes do que esperávamos. Experiência que o Pirula documentou no vídeo abaixo:
[youtube_sc url=”https://www.youtube.com/watch?v=TpxhXQcVYOg”]
Como já venho dizendo, por muito tempo o professor foi tido como o detentor do conhecimento. A única pessoa em sala que teve acesso ao conteúdo e sabe o que os alunos precisam aprender. Hoje a informação está disponível a dois cliques ou uma rolada na timeline do Facebook. Mas continuamos assumindo a postura de que a informação válida é só aquela que vem do professor, na sala de aula. Não ensinamos os alunos a fazer uma leitura crítica da informação que encontram fora da sala de aula, muito menos como se informar melhor.
A consequência direta são boatos como esse do Zika. A informação está disponível, mas para quem não tem a base para entender, continua inacessível. E alguém com vários fatos mas sem entendimento deles é um conspiracionista. Quem encontrou a página de reagentes com o Zika deve ter ficado tão horrorizado quanto quem invadiu o Instituto Royale e encontrou um beagle com uma placa de metal no céu da boca. Quando na verdade a placa era para manter a qualidade de vida de um animal idoso, mantido no centro por bem mais tempo do que seria necessário para testes.
Ao invés de continuarmos recitando conteúdo para os alunos decorarem, para depois reclamar que eles estão desinteressados, deveríamos estar ensinando a buscar, avaliar e entender informação. Porque ao contrário da sala com lousa e professor, esse será um ambiente que eles continuarão a frequentar para o resto da vida.