Como o Design Inteligente racionaliza o câncer?


Crédito: National Institutes of Health, EUA.
Crédito: National Institutes of Health, EUA.

Juro que é uma curiosidade legítima. Eu entendo o apelo do criacionismo. A evolução muitas vezes encontra soluções tão elegantes e surpreendentes que realmente ficamos maravilhados. Daí a creditar essa sensação a algo ou alguém é um salto mental bem fácil de fazer. Mesmo que não faça sentido.
O problema com esse pulo e com o criacionismo em geral, especialmente na versão pseudo-científica do Design Inteligente (DI), é que invalida qualquer mérito científico da ideia. Se toda evolução complexa e irredutível vier de um criador (ou designer), o que isso informa sobre descobertas futuras? Qual a hipótese que isso gera?
Se descobrimos uma nova bactéria ou um fóssil, a evolução gera hipóteses muito poderosas sobre o que poderemos encontrar. Poderosas porque descrevem toda a relação que todos os seres vivos (ou fósseis) devem manter para que continue fazendo sentido. Por isso são hipóteses muito fáceis de serem testadas e se provarem erradas, como a ancestralidade comum, o tipo de moléculas orgânicas que vão usar, como até expliquei neste vídeo. Já o design inteligente não ajuda em nada. Mesmo se estivesse certo, o que me informa sobre uma espécie assumir que alguém a desenhou? Se não souber explicar como algo funciona tenho a quem culpar?
E é nesse tipo de encruzilhada que entra a pergunta que está girando na minha cabeça. Como o Design Inteligente explica o câncer? E não me refiro ao fato de sermos imperfeitos e sofrermos com câncer. Afinal, o DI aceita que mutações podem acontecer. Me refiro à tudo que a medicina descobriu sobre a evolução de tumores nas últimas décadas. Sim, para um grupo de células se tornar um tumor, precisam passar por várias rodadas de seleção natural e evolução. Afinal, nosso corpo tem uma série de mecanismos que checam o estado das nossas células e impedem um tumor de crescer. Nosso sistema imune reconhece e mata células com comportamento estranho (porque estão falhando ou infectadas por vírus e bactérias). Nossas células têm um controle que limita o número de vezes que podem se dividir. Entre outros. E tumores precisam superar todos esses controles para se tornarem malignos e causarem o câncer.
Em 2000,  Douglas Hanahan e Robert Weinberg publicaram um trabalho que agregou tão bem seis características que fazem um tumor maligno e permitem que ele supere essas barreiras, que se tornou um dos artigos mais citados na área [1]. Que em 2011 atualizaram com mais quatro passos descobertos nos anos seguintes [2]. A lista atualizada: (i) precisam estimular o próprio crescimento; (ii) precisam ignorar sinais para pararem de se dividir; (iii) precisam ignorar sinais para se destruírem; (iv) precisam conseguir se multiplicar indefinidamente; (v) precisam recrutar a formação de vasos sanguíneos para ganharem nutrientes; (vi) conseguem invadir o tecido local onde surgem e se espalhar para novos locais (metástase); (vii) conseguem produzir energia por vias incomuns (como fermentação); (viii) escapam do sistema imune; (ix) têm um genoma instável e; (x) causam, evitam ou aproveitam inflamação.
Todos esses passos dependem de seleção natural e evolução para acontecer. O resultado final pode ser células tumorais com o genoma completamente reorganizado e capazes de viver indefinidamente. Um design bastante competente. Afinal, as 10 características da lista precisam estar todas presentes para que o tumor maligno se estabeleça no corpo. Isso sem contar quando não é selecionado novamente e desenvolve resistência à quimioterapia. Dentro do paradigma científico, a evolução tem uma resposta clara para isso. Evolução é evolução, cega aos efeitos do que é selecionado. Vários grupos de células começaram a formar tumores ao longo de toda nossa vida, mas foram destruídas pelo corpo. Só aquelas que sofreram por acaso mutações que dão as características listadas é que se tornaram um tumor maligno. O que pode levar décadas para acontecer ou mesmo nunca acontecer com alguém. Por isso alguns agentes como o cigarro e a exposição exagerada ao sol podem aumentar as chances de câncer. Causam mais mutações que dão mais rodadas na roleta do azar evolutivo.
Agora, como um criacionista explica a complexidade irredutível de um tumor? Um designer inteligente e com intenção bolou um mieloma feito para matar? Ou um tumor não é complexo o suficiente para se qualificar como irredutível? E se posso assumir que um tumor é só o resultado de uma rodada infeliz do acaso, porque não posso aplicar o mesmo para o meu corpo todo? Qual a linha que separa uma criação benevolente de uma doença terminal?
Fontes:
[1] Hanahan, Douglas, and Robert A. Weinberg. “The hallmarks of cancer.” Cell 100, no. 1 (2000): 57-70. DOI: 10.1016/S0092-8674(00)81683-9
[2] Hanahan, Douglas, and Robert A. Weinberg. “Hallmarks of cancer: the next generation.” cell 144, no. 5 (2011): 646-674. DOI: 10.1016/j.cell.2011.02.013


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