“Eu sou a lenda” e o deserto do real

Um motivo inusitado me levou ao cinema esta semana. Não que eu não vá ao cinema regularmente, apenas o motivo desta vez foi diferente.

O filme “Eu Sou a Lenda” com Will Smith é um bom filme de entretenimento. Divertido, ele abusa de uma fantasia recorrente nas pessoas: e se somente eu sobrasse no mundo? Eu prometo não contar o final nem muitos detalhes do filme, apenas algumas coisas que aparecem bem no começo. O que se revela logo no inicio do filme é justamente o meu motivo especial. Uma entrevista com uma cientista falando que usando um vírus modificado foram capazes de curar o câncer. A metáfora usada é até bem feliz: imagine que o seu corpo é uma estrada, e um vírus um carro muito veloz com um motorista muito mau. Agora imagine que substituímos o motorista mau por um policial. Bom, isto não é pura ficção. Aliás, é com isso que eu trabalho no dia-a-dia. Trocando quem está por trás da direção do vírus.

O que nós fazemos é trocar alguns pedaços do DNA do vírus por outros que podem matar as células de câncer. É isso que chamamos de Terapia Gênica. Usamos genes, que são trechos de informação de DNA, ao invés de remédios comuns. As vantagens? Ao invés de tomar um remédio, que pode se espalhar pelo corpo todo, um vírus pode carregar o “gene-remédio” para apenas algumas células específicas, como as de câncer por exemplo. Claro que a história não é assim tão simples. Podemos usar vários vírus, e manipulá-los de diversas maneiras. E os focos sempre são dois: eficácia no tratamento e segurança. A principal preocupação é evitar que o vírus que usamos, que pode ser derivado da gripe, por exemplo, cause uma infecção de gripe. O que fazemos é tirar todo o DNA possível do vírus original.

Esses vírus são tão seguros que até mesmo vírus derivados do HIV são usados, pois eles não possuem a informação que o permite infectar as células a sua maneira. Mesmo alguns vírus já sendo tão seguros ainda não são usados amplamente na medicina. Simplesmente por se tratar de um organismo estranho ao corpo humano, os cuidados são redobrados, e as agências reguladoras das pesquisas são muito conservadoras, e com razão, nesse tipo de assunto. Muitos estudos em humanos estão sendo feitos, e estes pacientes devem ser observados por muito tempo para nos assegurarmos de que é seguro.

Até aqui só falamos da primeira cena do filme e o seu paralelo na realidade. Agora vem a segunda cena: a cidade de Nova Iorque totalmente abandonada, varrida por uma epidemia deste vírus apenas três anos após a fictícia entrevista da cientista. Não se explica o que aconteceu de maneira clara. Parece que o vírus sofreu uma alteração aleatória que o transformou em um matador transmitido pelo ar.

Isso me faz perguntar se as pessoas que assistem a este tipo de filme se impressionam com as informações “científicas” a ponto de a usarem como base para seus julgamentos. Gente falando, por exemplo, “aquele filme mostra como a ciência pode ser destrutiva.” Como o espectador pode saber até que ponto a informação do filme tem base no real (terapia gênica é real) ou é imaginação pura (o vírus usado na terapia não pode ser mais perigoso que o vírus que o originou). Este filme faz um serviço de divulgação científica ou um desserviço ao dar uma perspectiva catastrófica?

Não quero ser o chato a censurar a arte pelo rigor científico. O que me preocupa é a falta de conhecimento básico sobre ciência na população. Não que todos precisem de conhecimentos em biologia molecular, mas o pensamento crítico, tão característico da ciência, seria de grande ajuda para qualquer um poder interpretar a arte e a vida real de maneira mais profunda e proveitosa.

11 comentários em ““Eu sou a lenda” e o deserto do real”

  1. Fafá, muito bom! Vi o filme ontem e confesso que fiquei levemente preocupada até pensar um pouco mais... hahaha. Bom, não é de hoje que Hollywood faz alarde com falácias científicas (lembremos dos típicos "cientistas malucos"). De qq forma, o seu esclarecimento foi importante. Queria aproveitar e te perguntar uma coisa, a mullher (brasileira, aliás) fala para o Will Smith que um pessoal foi para as montanhas para escapar do vírus. Como assim? Vírus não resiste a baixa temperatura? Procurei no google e por incrível q pareça não achei...

  2. Então Isa, a temperatura pode sim alterar a ação dos vírus. O vírus da gripe comum, o influenza, não tem sua ação diminuída, mas sim sua transmissão fica dificultada. citando um artigo do jornalista Marcelo Leite: "Variando a temperatura e a umidade relativa do ar, Palese descobriu que o vírus se espalhava mais rápida e longamente a 5°C e umidade relativa baixa, de 20%. Segundo o estudo, porque o vírus da influenza se espalha pelo ar, dentro de gotículas expelidas pela boca (os famigerados perdigotos - não confundir com filhotes de perdiz); quando o ar está mais quente e úmido, os perdigotos agregam moléculas de água, crescem e acabam caindo ao chão sob o próprio peso, como gotas de chuva. No inverno, flutuam mais tempo no ar, aumentando a chance de alcançar algum passante.Em outras palavras: não é no ônibus, no metrô, na classe ou no cinema que você pega gripe, em dias frios, mas no caminho para esses lugares."

  3. Acho que temos que conviver com essa "desconfiança" de Hollywood, sempre mostrando o quão cruéis e perigosas podem ser a natureza e a ciência... mas acho que ás vezes podem levantar discussões construtivas. Quanto ao vírus da gripe, além do ar condicionado criar o ambiente perfeito pra ele (levemente frio e sem umidade), já li que é mais fácil pegar gripe dando a mçao do que com um beijo na bochecha, já que usamos a mão tanto para cobrir a boca no espirro quato para coçar o olho e pôr o vírus em contato com a mucosa...

  4. Puxa, você estava inspirado ao escrever esse texto. Muito bom. Vai ver que quando falam do trabalho da gente fica mais fácil escrever. hehehe. Mas o texto está belíssimo, de verdade.Só queria opinar que eu acho bem provavel alguma pessoa acreditar que a ciência pode produzir um virus dessa natureza. Não acho que filmes como esses devem ser censurados e nem acredito que eles prestam um "desserviço", mas sim que ajudam a divulgar a ciência. Quem for cientista terá o filtro para ver o que é absurdo. Quem for leigo, irá procurar opiniões.

  5. Fafa.. zumbies e virus mortais estão mesmo em cena ultimamente, heheh. Mas me diga uma coisa, qual seria a alternativa biológica para explicar os zumbies?? pq vc persebe que o próprio cinema tem mudado a perspectiva, antes era uma maldição, macumba ou o demonio q tornava as pessoas mortas vivas agora este castigo ganhou uma roupagem "científica". Oque vc acha disso?abraço...e parabens muito explicativo seu texto.

  6. Realmente Renato, hoje em dia estamos apelando muito menos ao sobrenatural para explicar ou justificar os nossos "zumbis" do dia-a-dia. Claro que muita gente ainda acha que é possível unir sobrenatural e ciência, como o anônimo que comentou sobre design inteligente no comentário acima. As duas nunca vão e nunca podem se sobrepor. Talvez o filme, com a história da borboleta, esteja mostrando uma possível convivência, sem sobreposições, entre fé e ciência.

  7. olá rafael... achei esse texto que vc escreveu sobre o filme muito bom. Concordo que Holliwood viaja muito, mas seus tem lá seus creditos; depende do ponto de vista. E é justamente nesse ponto que estou trabalhando. Estou fazendo uma pesquisa sobre o que é real ou não nesse filme (da terapia genica aos zumbis), e qual papel ele pode ter no espírito critico científico de quem o vê!porem não sou cientista, e o teu texto me deu algo em que pensar...

  8. Adorei o filme, realemte é um enredo que nos coloca a refletir o quanto somos vulnerável e se realmente será possivel algum tempo o proprio homem criar mutantes tão selvagens, mas gostaria de entender que tipo de celula causa a alteração genetica, pq da busca pela cura do cancer e a função do tratamento?

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