Desafiando dogmas da Biologia!

ResearchBlogging.org

Vocês estão prestes a ler em primeira mão (no Brasil) uma notícia que acabou de ser divulgada.

Um grupo de pesquisadores canadenses que desenvolve pesquisas em Biologia Vascular encontrou indícios de que uma das concepções mais tradicionais em Biologia Molecular pode não estar de acordo com a realidade, como publicado na edição de Julho do periódico Human Mutation.

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Uma pegadinha comum para estudantes iniciantes em Biologia é perguntar: “uma célula muscular e um neurônio de um mesmo indivíduo são geneticamente iguais?”

Normalmente, metade responde “SIM”, e a outra metade “NÃO”.

Quer saber a resposta correta e ver qual dogma foi desafiado? Clique no link abaixo e leia o restante do post!

A resposta correta até hoje era “SIM”. Acreditava-se que todas as células de um mesmo indivíduo tivessem a mesma constituição genética, ou seja, a mesma sequência de DNA.

“Ué, mas como temos grupos celulares tão diferentes?!”

A resposta estava no padrão de expressão gênica característico a cada tipo celular. Trocando em miúdos, tipos celulares diferentes expressam conjuntos de genes diferentes. Essa variação acontece tanto em relação a QUAIS genes encontram-se expressos, como também EM QUE NÍVEL esses mesmos genes encontram-se expressos.

617px-Crick's_1958_central_dogma.svg.pngEsse padrão deve ser entendido como “quais genes são transcritos em moléculas de RNA mensageiro (olha o auto-jabá), e quais dessas moléculas serão traduzidas em proteínas?”

O dogma central da biologia molecular está calçado nesta linha de raciocínio, como podemos ver na figura ao lado.

Os resultados do grupo de Montreal podem ser acessados nesse link (somente para assinantes, em Inglês). Segundo os resultados observados vários estudos genéticos que buscavam isolar as causas de muitas doenças podem estar em cheque.

Essa afirmação vem do fato de, exceção feita a casos de câncer, dificilmente se consegue amostras de “tecido doente” para estudos, de modo que a grande maioria das amostras para estes estudos genéticos é obtida através de sangue.

O problema? Se o estudo canadense estiver completamente correto, não há correspondência entre o material genético que compõe as células sanguíneas e o material genético dos demais tecidos.

Os pesquisadores se depararam com esse fato estudando as causas genéticas de uma doença chamada Aneurisma de Aorta Abdominal, dando enfoque específico ao gene BAK, que controla o processo de morte celular (apoptose). Eles encontraram diversos tipos de SNPs, sigla em Inglês para “polimorfismo de nucleotídeo único”, ou seja, há alteração de um único nucleotídeo entre o material genético do tecido afetado pela doença e o material genético obtido de uma fonte saudável.

Transcrevo aqui um trecho do artigo que explica um pouco mais detalhadamente o achado:

“Encontramos alelos contendo SNPs específicas para BAK1 tanto nas
amostras de aneurisma de aorta (31 casos) como em tecido cardíaco
saudável (5 amostras), sem que houvesse correspondência nas respectivas
amostras de sangue. Essas mesmas SNPs de BAK1 foram relatadas, apesar
de raras (frequência média inferior a 0,06%), em sequências de
referência. Baseados nesses achados e em observações similares,
propomos uma nova hipótese postulando que múltiplas variantes de genes
possam pré-existir em formas “minoritárias” entre tecidos saudáveis, sendo selecionadas quando condições intra ou
extracelulares são alteradas.”

Como a AAA é uma das raras doenças vasculares em que amostras de tecido aórtico são removidas como parte da terapia do paciente, foi possível realizar a comparação entre o gene BAK presente nas células do tecido do vaso sanguíneo com o gene BAK presente nas células sanguíneas dos pacientes.

Ao fazerem isso, observaram grandes diferenças entre os genes provenientes das duas fontes citadas, com a suspeita de que o “gatilho” para a doença estivesse localizado somente no material genético obtido das amostras de tecido. Essas diferenças também foram observadas quando a mesma comparação foi realizada com amostras de pacientes saudáveis.

Segundo Bruce Gottlieb (primeiro autor do estudo), em doenças multi-fatoriais (exceção feita a câncer) usualmente se usa o sangue para analisar os fatores genéticos de risco, assumindo a possibilidade de se extrapolar esses dados para os tecidos. Nas palavras dele: “Tradicionalmente, quando observamos os fatores de risco genéticos para, digamos, doenças do coração, assumimos que o sangue nos dirá o que está ocorrendo no tecido. Agora, parece que não é simples assim.”

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Estudos de expressão gênica

Ele ainda evidencia o fato da importância dessa observação, analisando-se o caso por uma perspectiva genética: “… fora as implicações terapêuticas, a observação de que nem todas as células de um organismo são iguais é extremamente importante. Esse é o ponto principal.”

Ele continua… “Estudos associando varredura genômica foram introduzidos com muito ânimo algums anos atrás, e as pessoas esperavam grandes descobertas. Eles iriam retirar o sangue de centenas de milhares de indivíduos, e encontrar os genes responsáveis pelas doenças. Infelizmente, a realidade desses estudos tem sido bastante desapontadora, e nossa descoberta pode explicar uma das razões deste fato.”

Se as mutações descobertas no tecido realmente fornecerem uma pré-disposição ao desenvolvimento de AAA, serão alvos ideais para novas terapias. Segundo Morris Schweitzer, outro autor do estudo, essa descoberta provavelmente terá repercussão no estudo das doenças vasculares em geral. Ele se diz otimista sobre seu estudo levar a novos tratamentos para essas doenças num futuro próximo.

Resta esperar novos estudos desse tipo, para, quem sabe, revermos mais alguns dos conceitos clássicos de biologia molecular…

Conceitos revistos ou não, a graça da Ciência é justamente essa: NADA é imutável, e todas as teorias, por melhor embasamento que tenham, estão sujeitas a revisitações periódicas de modo a se confirmar sua validade.

* Via ScienceDaily

Gottlieb, B., Chalifour, L., Mitmaker, B., Sheiner, N., Obrand, D., Abraham, C., Meilleur, M., Sugahara, T., Bkaily, G., & Schweitzer, M. (2009). BAK1 gene variation and abdominal aortic aneurysms Human Mutation, 30 (7), 1043-1047 DOI: 10.1002/humu.21046

16 comentários em “Desafiando dogmas da Biologia!”

  1. Não entendi nada.
    Ok, parece que geneticamente o DNA de uma célula do coração é diferente do DNA de uma célula sangüínea. Até aí, ok. Mas quão diferente? 0,01%? 0,1%? 1%? 10%? Em SNPs nas seqüências ou em indels? Se são mais diferentes do que isso, de onde vêm o DNA "diferente" que não seja das células germinativas? Ou um dos dois (sangue ou coração) sofre um processo especial de mutação intensa? E se sofre esse processo, por que não acaba degradando em um filamento de DNA degradado e sem funcionalidade?
    Desculpa, mas essa matéria poderia ter melhores explicações!
    Vou tentar ler o artigo pra ver se consigo algumas dessas respostas... [3 minutos depois] Ok, acabo de ler o resumo e já vi que é alguma coisa relacionada a SNPs, mas resta saber ainda de onde eles vêm.

  2. OBS.: Fui ver o link e o artigo está disponível de graça pra baixar. Não é somente para assinantes, boa notícia (e acontecimento raro, vindo da #*&$*# Wiley - ciência fechada não funciona!)!

  3. Olá Patola!
    Antes de mais nada, obrigado por apontar que o artigo estava disponível... Como acessei o abstract através do proxy da UNIFESP (onde trabalho), nem tentei obter o PDF justamente pelo que você falou, era da Wiley (nunca consigo nada deles).
    O post está sendo atualizado, e concordo que o post está curto, e bastante resumido. Mas a idéia é essa mesmo, por isso, para o caso de alguém sentir falta de informações, sempre deixo os links para os artigos que comento.
    Imagina eu começar a escrever SNP e indel quando quero atingir também o público leigo que se interesse por Ciência... seria um post gigante só prá dar o embasamento genético mínimo prá se entender o conteúdo. Procurei simplificar ao máximo, apontando para as implicações da descoberta em si, mais do que para qual exatamente foi a descoberta (coloquei em termos genéricos).
    Transcrevo aqui um pedaço do artigo em que as informações que você pediu são mencionadas:
    "Nós encontramos alelos contendo SNPs específicas para BAK1 tanto nas amostras de aneurisma de aorta (31 casos) como em tecido cardíaco saudável (5 amostras), sem que houvesse correspondência nas respectivas amostras de sangue. Essas mesmas SNPs de BAK1 foram relatadas, apesar de raras (frequência média inferior a 0,06%), em sequências de referência. Baseados nesses achados e em observações similares, propomos uma nova hipótese postulando que múltiplas variantes de genes possam pré-existir em formas "minoritárias" entre tecidos saudáveis, sendo selecionadas quando condições intra ou extracelulares são alteradas."
    Caso haja novas dúvidas, não exite em escrever! Os comentários são sempre parte importante de todos os nossos posts!
    E, claro, obrigado por acompanhar o |RNAm|, esperamos que todos estejam gostando dos conteúdos discutidos!

  4. Post atualizado, agora coloquei algumas informações sobre a característica da descoberta, mas continua bem resumido, senão sai da idéia principal do blog, que é transmitir Ciência para todos os interessados, independente de os mesmos terem alguma formação na área.
    Obrigado pelas críticas!

  5. Parabéns pela postagem! Muito curiosa a descoberta. Gostaria de saber como faço para acessar o artigo completo, pois não consegui acessar pelo link disponibilizado. Seria possível enviar no meu email?
    Obrigado,
    Abraço

  6. Olá André!
    Muito obrigado pelo elogio! Quanto à disponibilidade do artigo, aconteceu algo que não sei com explicar. Quando escrevi o post, o artigo não estava disponível para não-assinantes, como estava escrito no post... Logo que publiquei, o Patola (no comentário acima) disse que o artigo tinha sido liberado, e, quando eu confirmei, mudei o texto.
    Hoje o artigo encontra-se novamente fechado... Sinceramente, eu desisti de entender essa Wiley... Vou te enviar o artigo por e-mail, certo?
    Abraço, e continue acessando e comentando nosso conteúdo!

  7. Eu tinha visto essa notícia antes...
    Parei pra pensar e percebi que não é assim, TÃO absurdo.
    Imagine uma bactéria. Ninguém ficaria chocado ao saber que após esta célula ter se multiplicado e gerado ~10 trilhões de células, mutações ocorreram.
    Só porque somos humanos com sistemas moleculares um pouco diferentes, não seria razoavel pensar que este processo de mutações também ocorrem com nós? Tanto não é absurdo que todo mundo aceita as teorias de mutação do cancer, apartir de fatores exogenos.
    Somos um mosaico. Qualquer pessoa que tenha sido infectada pelos virus do HIV ou herpes, por exemplo, tem SIM células em seu corpo com mateial genético diferenciado, já esses virus integram-de ao nosso genoma. Existiriam virus não sintomaticos que nos infectam assim, sem que percebamos? Nosso genoma esta repleto deles...
    Bjoks!
    =)
    Não li o artigo completo,

  8. Concordo com as suas observações sobre sermos um mosaico, mas nesse caso estão associando SNPs tecido-específicas a uma patologia, isso, além de ser sim novidade, abre o leque para considerarmos o que os autores do estudo disseram: talvez vários estudos de screening genotípico estejam "errando o alvo".

  9. Primeiramente Parabéns pelo excelente blog de vcs!
    Obviamente (e infelizmente) não possuo os conhecimentos que permitam fazer comentarios muito inteligentes sobre esse assunto, porém mesmo sendo leigo percebo a importancia e repercussão que uma descoberta dessa pode trazer ao mundo da ciencia e principalmente o avanço que isso pode trazer na medicina. Uma pena que esse tipo de informação não seja amplamente divulgada...
    Mas enfim, obrigado por manterem esse blog sempre tão bem atualizado!

  10. Netto, longe de nós aceitarmos qualquer tipo de desculpa como a que você deu em seu comentário!
    Nós temos como objetivo justamente levar a Ciência mais próxima àqueles que não a têm em seu cotidiano, seja por falta de informação, formação, ou simplesmente por ter se dedicado a outras ocupações.
    O |RNAm| é escrito com o intuito de que a informação seja absorvida por todos que se interessarem em ler os posts, por isso, se você gostou do post e entendeu as repercussões que a pesquisa discutida podem ter, considero que a meta mais importante do blog já tenha sido alcançada!
    Mais uma coisa: estamos todos aqui para APRENDER! Não se desculpe por não saber tudo... ninguém sabe, não concorda?
    Abraço, obrigado pelos elogios, e continue acompanhando e comentando o blog!

  11. Parabéns pelo artigo, pela postagem, interessante e inteligente.
    É essa a ciência que buscamos repassar para nossos professores e nossos alunos. Teorias, hipóteses e leis podem ser revogadas, adaptadas e assim reformuladas.
    abração
    Visite-nos!

  12. Parabens pelo artigo!
    Tema interessante e bem desenvolvido...
    é a prova, mais uma vez que, na ciência nada é imutável.
    Daí a importância de se pesquisar cada vez mais...afinal o que sabemos é só "uma gotinha no oceano do conhecimento".

  13. Muito legal o seu blog, apenas uma correção. Carga Genética é o conjunto total de alelos deletérios de um genoma individual e não sequencia de DNA.

  14. Ops... desculpe Bruno, esse post foi escrito meio às pressas, e isso passou batido quando o revisei. Correção feita!
    Obrigado por acessar o blog!

  15. Não sei bem se é uma mudança drástica no atual paradigma da Biologia Molecular. Os SNPs existem acho que podemos explicar sua origem com estudos de embriologia e processos da divisão celular. Mas essa correlação com doenças é algo fascinante e pode mudar abordagens terapêuticas. Belo texto! Abrass!

  16. Muito interessante...
    Esta semana fiz post sobre o Prêmio Nobel de Medicina de 1987 dado a Susumo Tonegawa por sua teoria de funcionamento dos genes na elaboração de anticorpos. Nesse artigo ele também respaldou a teoria de que a mutação é um importante diversificador somático dos anticorpos.
    Portanto este conceito já não é tão recente, mas na época em que foi proposto soava bastante revolucionário.
    Esses dados empíricos que divulgaste contribuem para respaldar empiricamente a hipótese de Tonegawa.
    O link da minha postagem é http://www.blogpaedia.com.br/2009/07/de-anticorpos-um-nobel-de-medicina.html

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