Segredo (ou sacanagem) dos bastidores da ciência: o auto-engano

Vou contar mais um segredo de como a ciência funciona nos bastidores.
Exemplo resumido de uma pesquisa:
Você quer descobrir como as células respondem a um tratamento. E para isso cultiva as células com a droga de teste. Para saber se está funcionando podemos fixar as células testadas (como a gente vê com orgãos no formol) e usar marcações que brilham se o tratamento funciona, e assim ver no microscópio.
Daí tiramos fotos. Quanto mais brilho, maior marcação, e melhor para confirmar a eficácia do tratamento. Então contamos as células positivas e comparamos com células que não foram tratadas (o que chamamos de “controle”). O controle não pode brilhar, entende? Ou se brilhar deve ser menor que as células tratadas. E se brilhar igual? Sinto muito mas isto significa que sua hipótese não funciona. Tem que dar diferente do controle!
Claro que no laboratório nada é preto no branco. Nunca TODAS as céluas estão lindas e brilhantes. Por mais que a técnica usada esteja corretíssima, nunca sai perfeito. E outra, umas aparecem muito brilhantes e outras pouco. Por isso usamos estatística. Sempre é preciso fazer um experimento várias vezes pra ter certeza de que aquele aumento na média é um aumento mesmo. Se só 5% das vezes as células brilham, na média, o tratamento não funciona, certo?
O viés maldito do maldito cientista
Se até quem não é cientista entende, como é que um baita pesquisador já conhecido no seu meio, com publicações científicas boas e alunos sobre sua orientação, pode querer pegar justo uma foto dos 5% que funcionam para ilustrar o tratamento?!
E ainda acha bonito: “Olha que foto bonita, vamos usar esta.” E o pobre aluno orientado, que fez o experimento, suou e sangrou para fazer todas as repetições, vendo a sacanagem se formar não tem nem o poder de gritar “MARMELADA”.
É vergonhoso mas acontece. E MUITO!
Muita gente põe a culpa na pressão em ter resultados, e resultados bons para publicar numa revista científica melhor; as publicações trazem mais alunos e mais dinheiro para o pesquisador continuar pesquisando mais.
Mas pra quê pesquisar se já mostrou que não está nem aí? Porque burlar o método científico desse jeito é mostrar que não está nem aí para ciência. Então pra que continuar? Ou parte do tesão é enganar o mundo e a si mesmo?
Eu fico imaginando o que se passa na cabeça de um pesquisador deste que, do alto de seu cabedal científico, ainda se regozija com um resultado que intimamente sabe ser exagerado ou falso mesmo.
Acho que esta é só mais uma amostra da maior e mais forte das capacidades humanas: O AUTO-ENGANO.

10 comentários em “Segredo (ou sacanagem) dos bastidores da ciência: o auto-engano”

  1. Oi Rafael,
    Veja como você começou sua postagem:
    "Vou contar mais um segredo de como a ciência funciona nos bastidores."
    Tua generalização é extremamente perigosa. Eu conheço um monte, mas um monte mesmo, de cientistas que não trabalham assim.
    cordialmente,
    Roberto

  2. Que ótima reflexão, Rafael!
    Descrição perfeita, impressionante!!!
    Eu tenho cá comigo que uma das fontes pra esse problema é que muitos acadêmicos tratam a ciência como emprego. Emprego mesmo, sabe aquela coisa de "firma", de mostrar serviço pro chefe... Claro que isso não é com todos, generalizações são sempre complicadas. Mas tem muita gente nas universidades públicas (que é onde acontece a maior parte da pesquisa no nosso país e, talvez, não por acaso) que tá mais é preocupado em como será seu desempenho na fogueira de vaidades e a tal objetividade científica que se dane.
    Well, em favor deles podemos dizer que os cientitas são, antes de tudo, seres humanos. Contra não precisa, vc já deixou mais que claro o suficiente!
    Ótimo texto, parabéns!
    Abração

  3. Roberto
    Não vejo generalização na frase citada. Mesmo que fosse em muito menor numero os cientistas maliciosos, só por existirem os coloca no sistema de funcionamento da ciência, não invalidando a frase. Essas coisas acontecem nos bastidores sim.
    E como eu disse, acontece MUITO. Não paro de me espantar com o número. Mas claro que isto depende de experiência pessoal. Veremos o que os outros leitores relatam.
    Valeu

  4. Rafael, acho que isso mostra a diferença entre um pesquisador senior e um aluno. Se a probabilidade de que o experimento de errado por outros motivos (incompetencia do aluno, por exemplo) for de 95%, então as experiencias que não deram certo são falsos negativos, enquanto que as que deram certo foram verdadeiros positivos. Você considerou essa possibilidade?
    Se um alquimista pudesse produzir ouro em apenas 5% de suas tentativas, acho que mesmo assim ele ficaria rico.
    Escolher os dados é uma maneira de filtrar o ruido. Ou voce acha que os dados não tem ruido e o estudante é perfeito?

  5. Calma lá Osame,
    por isso falei de N suficiente. Agora, se for desconfiar sempre do aluno e nunca da sua hipótese, aí é querer achar pêlo em ovo. E justamente pela tecnica nao dar sempre resultados perfeitos q se exige tanta repetição.
    Realmente dependendo da pesquisa vc só queira provar q algo pode acontecer, é o seu caso dos alquimistas. Mas no tipo de pesquisa do meu exemplo, que envolve um tratamento clinico, por exemplo, há um limite de significância mínima, que deve ser respeitado (note q usei as porcentagens arbitrariamente, mas para quem é da área é o famoso p

  6. Concordo plenamente com vc Fafa.
    Pode parecer frustante, mas é aquela velha história: resultado negativo também é resultado.
    O Osame falou da possibilidade de erro do aluno. Concordo só se no "rol" de erros entrar a escolha do orientador! hahahah
    Olha só... isso não existe. Até acho mesmo que possa haver um erro desse tipo, no entanto, que máquina fantástica haveria no cérebro do orientador para calcular a exata probabilidade do erro ser do seu pobre orientado? MESMO SE FOSSE um erro humano com certeza... não é com chutes e "achismos" que chegamos a conclusões fundamentadas. Errado é errado e ponto final.
    O mínimo esperado seria, pelo menos, alguma alteração no procedimento experimental (outras condições = OUTRO experimento), buscando melhores resultados.
    Imaginem o sufoco de um estudante qqer ao redor do mundo, quando for tentar repetir esse experimento "publicado". Esse sim estará sujeito à maquiagem de seus dados CASO seu orientador tenha "aquela" certeza que seu aluno fez tudo errado...
    Bjokas
    =)

  7. ... isso acaba sendo resultado da ciência invertida que estamos enfrentando... é cada vez mais comum se deparar com situações onde não existe uma hipótese real (a hipótese nula x a hipótese teste). não é raro ouvir situações em que o resultado não agradou e pediu-se uma repetição porque o erro só pode ter sido cometido pelo experimentador.
    outra situação comum, quando o resultado não é mascarado, é usar a enxurrada dos dados das repetições e colocá-la sob a tortura dos métodos estatísticos (se eles se aplicam ao contexto, tanto faz). torturados, tais dados uma hora confessam!
    enfim, sigamos com o prazer de nos perguntar: "pq isso nao funciona?!" - excluí propositalmente da frase palavrões e invocações a deus e correlatos.
    gostaria ainda de destacar: auto-engano, cabedal e regozija.
    abraços

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