O caso dos aminoácidos perdidos…

A motivação desse texto vem de uma reportagem sobre a possibilidade de alguns aminoácidos serem provenientes do espaço, na qual senti necessidade de corrigir alguns escorregões:

  1. “Os aminoácidos são importantíssimos porque ajudam a compor as proteínas, indispensáveis para a existência de todas as formas de vida no nosso
    planeta.”
  2. “Ao estudar os fragmentos de um meteorito… descobriram… aminoácidos do tipo canhoto.” (nunca ouvi aminoácidos D e L serem chamados “destros” e “canhotos”, alguém pode confirmar?)
  3. “Na Terra, todos os seres vivos têm aminoácidos canhotos… Mas isso não quer dizer que a versão destra seja impossível
    por aqui. Cientistas já conseguiram sintetizá-la em laboratório.”

Sabemos que os aminoácidos são moléculas que, interligadas,
formam a cadeia principal de todas as proteínas. Ao contrário do comentado na reportagem, não é uma questão de
“ajudar a compor” e sim de definir. Desse modo, sem os os aminoácidos simplesmente não há proteína.

Aproveitando o tema, existem dois “causos” relacionados aos aminoácidos que me incomodam demais há algum tempo:

  1. Por que quase ninguém fora da área de proteínas reconhece a existência de 2 aminoácidos “extras” além dos 20 clássicos?
  2. O que diabos há com um mundo em que ainda é comum encontrar a frase “os L-aminoácidos são os únicos presentes nas proteínas” e suas variáveis?

O mistério dos aminoácidos proscritos
Os dois aminoácidos nunca citados são a selenocisteína e a pirrolisina. Pode-se imaginar que os dois sejam resultado de alguma modificação pós-traducional, ou seja, a informação para sintetizá-los não estaria no DNA mas seria um produto indireto da expressão genética. No entanto, dados científicos já demonstraram que ambos são codificados como os 20 aminoácidos “clássicos”. Por que continuamos com o padrão “existem 20 aminoácidos codificados pelo nosso genoma”?

Uma explicação óbvia poderia ser: “o conhecimento é muito novo, por isso ainda não foi incorporado aos livros e é desconhecido por gente fora da área”.

Essa justificativa pode ser válida para a pirrolisina, identificada em bactérias do gênero Methanosarcina apenas em 2002, mas no caso da selenocisteína esse conhecimento está disponível desde a década de 1960! Qual é a explicação?

Aminoácidos através do espelho

Quem já estudou Biologia e nunca ouviu a frase “todos os aminoácidos biológicos (com exceção da glicina) são L-aminoácidos”?

quiral.jpgA nomenclatura D ou L vem da comparação estrutural com a molécula quiral do gliceraldeído. Quiral é o nome dado a moléculas que possuem um átomo de carbono ligado a 4 grupos químicos diferentes, de modo que sua estrutura não é sobreponível à sua imagem num espelho. É a distribuição espacial dos grupos químicos em torno desse carbono quiral que denomina, em comparação às formas do gliceraldeído, os aminoácidos L ou D.

Voltando à questão: em biologia sempre teremos L-aminoácidos, certo? Errado!

Em mais um inexplicável caso, desde a década de 1940 são conhecidos D-aminoácidos em organismos vivos. Inicialmente identificados nas paredes celulares de bactérias Gram-positivas, a suspeita da existência biológica desses aminoácios existia desde a década de 1930, quando foi descoberta uma enzima de mamíferos chamada D-aminoácio oxidase EC 1.4.3.310.

A suspeita é lógica: porque haveria uma enzima especializada em D-aminoácidos se os mesmos não participassem no metabolismo desses animais? Como esperado, algum tempo depois foram identificados e quantificados D-aminoácidos nos fluidos corporais de vertebrados. Novamente: porque esse conhecimento não foi atualizado?

O que justifica essa defasagem do ensino? Tomara que as atualizações dos livros de Biologia não demorem muito mais tempo, afinal, a situação já está ficando feia!

Notícias:

Referência:

SILVA, João J. R. Fraústo da  and  SILVA, José
Armando L. da. D-aminoácidos em biologia: mais do que se julga. Quím. Nova [online]. 2009, vol.32, n.2 [cited  2011-01-20], pp. 554-561 (Link para a versão PDF.)

8 comentários em “O caso dos aminoácidos perdidos…”

  1. Oi Gabriel,
    Muito pertinente tua postagem.
    Vi a notícia da Folha e, confesso, ri durante um bom tempo, além de meus colegas do IQSC também. Afinal, eu também nunca tinha lido a expressão "aminoácido canhoto" ou "aminoácido destro". Sugiro algumas correções no seu texto:
    "moléculas químicas" (5o parágrafo de cima para baixo): todas as moléculas são químicas, certo?
    São reconhecidos atualmente cerca de 60 aminoácidos. Porém, destes cerca de 25 são considerados essenciais. O interessante é que a ornitina, por exemplo, tem uma ocorrência mais restrita do que a lisina. E por isso é considerada essencial por alguns autores mas não por outros.
    Cianobactérias, por exemplo, acho que são a principal fonte de aminoácidos "exóticos". Porque será? Minha hipótese é que, sendo seres muito antigos, não são reflexo da "seleção natural bioquímica" que outros organismos vivos (a maioria) parecem ser.
    Todos os organismos vivos têm alguma porcentagem de aminoácidos D (na verdade, R, segundo a nomenclatura IUPAC correta). Só que na maioria dos organismos esta porcentagem é muito pequena. Mas nos seres "mais antigos" esta porcentagem aumenta (esponjas marinhas, bactérias, cianobactérias).
    Um detalhe interessante sobre a nomenclatura L-aminoácido e D-aminoácido (cabe asssinalar: L e D devem ser escritos de "caixa alta") é que as siglas L e D vêm de levógiro e dextrógiro, respectivamente. Isso porque, tal como os açúcares (dos quais o gliceraldeído é um dos precursores bioquímicos), os aminoácidos foram algumas das primeiras substâncias que tiveram suas propriedades quirópticas investigadas (por Emil Fischer): a propriedade de desviar a luz plano polarizada para a direita ou esquerda. Daí o nome.
    Porém, o que se verificou mais tarde é que não necessariamente as substâncias com átomos de carbono quiral R (que vem do latim, rectum) desviam a luz plano polarizada para a direita e são dextrógiras (D). O mesmo vale para as substâncias com átomo de quiral S (sinistro) e o desvio da luz plano polarizada pela esquerda, que seriam no caso levógiras (L). Por isso, se abandonou a nomenclatura D- e L-, ficando apenas para os aminoácidos e os açúcares, por razões históricas. Atualmente a designação R e S (chamada de nomenclatura de Cahn-Ingold-Prelog) é a correta para se designar a estereoquímica absoluta de átomos de carbomo quirais que compõe os aminoácidos, açúcares e uma infinidade de outras substâncias.
    Outro dado interessante é que a enorme maioria das proteínas são formadas por aminoácidos L-, mas muitos (quase todos) peptídeos não-ribossomais apresentam pelo menos 1 aminoácido D-. Definitivamente, com o advento das técnicas modernas de biologia molecular na década de 90 muita coisa mudou em bioquímica. Está na hora dos livros-texto se atualizarem.
    Eu comentei a postagem original que você menciona (com o título em inglês): http://quiprona.wordpress.com/2011/01/10/a-origem-extra-terrestre-de-moleculas-quirais/
    grande abraço,
    Roberto

  2. Olá Roberto!
    Já corrigi o texto e quero agradecer pelo ótimo comentário. Como sabe, minha noção de Química vai até a página 2, e sempre achei o conceito de "desvio de luz polarizada" meio maluquice.
    Dito isso, fico feliz de saber que essa revolta com a desatualização dos livros não é só minha. Qual é o problema com os autores? Não querem se destacar do establishment e de repente perder a indicação como material didático?
    Grande abraço!

  3. olá. adoro esse blog (:
    eu gostaria que vocês fizessem um post falando sobre uma coisa que lí na galileu, que dizia que atualmente foi inventado um relógio com precisão nunca antes vista e que com ele foi possivel provar uma teoria de einstein de que o tempo passa mais rápido em grandes altitudes. só que na revista eles não explicam a teoria nem nada, porque é só um drops.
    se você puder falar sobre isso, eu agradeço.

  4. Oi Cecília, tudo bem?
    Primeiro, muito obrigado pelo elogio ao blog! Já sobre a sua pergunta, acho um pouco difícil explicar por termos formação principalmente em Biologia, mas fui atrás da sua dúvida e tenho algumas sugestões de leitura que espero que ajudem!
    O problema em questão chama-se "dilatação do tempo", leia mais nos links abaixo:
    1. http://revistagalileu.globo.com/EditoraGlobo/componentes/article/edg_article_print/1,3916,868676-1706-1,00.html
    2. http://www.comciencia.br/reportagens/2005/03/04.shtml
    3. http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,relogios-superprecisos-medem-dilatacao-do-tempo-em-laboratorio,614222,0.htm
    4. http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u344720.shtml
    Boa leitura e abraços!

  5. Embora a origem das letras L e D dos isômeros de aminoácidos possam vir da polarização da luz, é bom lembrar que a melhor explicação para a nomenclatura dos aminoácidos é a comparação feita com a estrutura do gliceraldeído. Isso porque nem todos os L-aminoácidos desviam a luz polarizada para a esquerda e nem todos os D-aminoácidos a desviam para a direita. Bom, pelo menos foi o que aprendi nos livros de bioquímica.

  6. olá, gabriel. muito obrigada pelos links, agora eu consegui entender. nossa, acho tão fascinante essas teorias físicas, que vão totalmente contra o senso comum. eu não sabia à quem perguntar, pq não sabia o nome da teoria e talz. sou bem leiga em ciências, mal me lembro da matéria do ensino médio, na época eu não me interessava; agora trabalho com tecnologia e quanto mais eu souber sobre ciência melhor. leio o scienceblogs para tentar saber mais, leio há alguns meses já, mas geralmente eu não comento. D:
    enfim, obrigada gabriel, pela sua atenção. continue fazendo um excelente trabalho divulgando a ciência.
    obrigada mesmo, prometo comentar mais (:

  7. Ouvi dizer que os melhores livros didáticos nunca são escolhidos pelo governo pra serem usados nas escolas.
    Quem acaba sendo escolhido são os medianos, com informações mais ou menos.
    Idiotice... talvez nos livros didáticos top as informações sejam realmente atualizadas, mas elas nunca serão usadas pro ensino de massa.
    Infelizmente, mais uma vez vence o medíocre.

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