The English Emblem Book Project - 'Both of them do burne'

FLAMESCIT UTERQUE (ambos se queimam), emblema na versão inglesa de Devises Heroïques, de Claude Paradin (1615) [da coleção de Glasgow]

Ao juntar textos e imagens, as coletâneas de emblemas inauguraram uma estética que pode ser considerada o ancestral gráfico do meme

“Se alguém me pergunta: o que são, em verdade, os Emblemata?”, escreveu o holandês Jacob Cats [1577-1660] em sua própria coletânea de emblemas, “eu vou lhe responder: são imagens mudas e ainda assim falantes; matérias insignificantes mas não sem importância; coisas ridículas mas não sem sabedoria”. Caso ainda não tenha entendido, eu explico: os livros de emblemas eram obras que contavam com textos e imagens inter-relacionados, geralmente gravuras (ou xilogravuras) acompanhadas de versos ou pequenas prosas que esclareciam (ou confundiam) as ilustrações alegóricas.

Pictura of Alciato, Andrea: Livret des emblemes (1536): In Silentium. A Silence.

In silentium – “quando se cala o tolo em nada difere do sábio”, dizem os versos que acompanham esta gravura de uma versão francesa do Emblemata (1536) [da coleção de Glasgow]

O nome vem do primeiro livro do gênero, Emblemata, do jurista italiano Andrea Alciato ou Alciati [1492-1550]. Publicado na Alemanha em 1531, este livro continha cerca de cem versos curtos em latim. O que o diferencia, porém, foi o acompanhamento: os versinhos eram publicados lado a lado com xilogravuras — que teriam sido escolhidas meio ao acaso pelo impressor, sem interferência de Alciato.

Pictura of Alciato, Andrea: Livret des emblemes (1536): Unum nihil, duos plurimum posse. Ung nest rien, deux est beaucop.

Unum nihil, duos plurimum posse nos versos desta ilustração, Alciato nos aconselha a unir a força física com a sagacidade mental se não quisermos ficar na miséria. [da coleção de Glasgow]

As ilustrações costumavam oferecer mais de uma interpretação possível, da qual a principal era exposta no texto. Muitas vezes, o autor escrevia sobre temas morais ou tecia elogios a figuras históricas, mitológicas ou religiosas, além de fazer homenagens aos patrocinadores — era comum entre alguns nobres encomendar esse tipo de obra. Algumas obras também tiravam inspiração das fábulas e máximas de autores clássicos. De certa forma, os Emblemata tomaram o lugar dos livros de horas medievais com temas mais seculares e mundanos, ainda que moralizantes. Em pouco tempo, os livros de emblema tornaram-se uma moda na Europa Ocidental (com exceção da Grã-Bretanha, onde foram raros).

Del Sommerso (Do submarino) – algumas obras mais antigas trazem gravuras com inspirações heráldicas, mais parecidas com o que hoje associamos à palavra “emblema”. Este exemplo vem de Rime de gli Academici occvlti (Itália, 1568)

Os textos em latim e as ilustrações — muitas vezes reutilizadas — facilitaram a circulação desse tipo de obra. Às vezes apareciam textos em línguas vernáculas, como italiano, francês ou português — ou até mesmo obra poliglotas, como Amorum Emblemata, publicado na Holanda em 1608 com textos em holandês, francês, inglês, italiano e espanhol. Enquanto alguns emblemata eram curtos e dedicados apenas a temas como o amor, a moral, o comércio ou as façanhas militares, outros eram enciclopédicos, como o italiano Il mondo simbolico (1653), que contava com 1000 páginas.

Virtvti nihil insvperabile (à virtude nada é insuperável) — em alguns casos, os emblemas são tão claros e simples que podem ser compreendidos até sem o texto. É o caso desta ilustração de L’Art des Emblemes (França, 1662)

Essa constante mistura e remixagem de temas, textos e imagens tornam os livros de emblema uma espécie de tatataravô dos memes que constantemente surgem na internet, onde também se valem da reutilização de imagens, do reaproveitamento de temas e das adaptações de textos, sempre curtos.

“Do fogo, o fogo, do mercúrio, o mercúrio e assim sucessivamente” – os temas dos livros de emblemas variavam bastante. Esta página, por exemplo, é do Atalanta Fugiens, obra alemã dos anos 1610 com inspiração alquímica.

Entretanto, outro fator de sucesso era o hermetismo ocasional. As ilustrações alegóricas nem sempre batiam com o texto, o que podia levar o leitor a quebrar a cabeça em busca de uma relação entre as palavras e a imagem. Intencional ou não, esse tipo de comunicação não passou despercebido pelos estudiosos da época. Assim, pioneiros do estudo dos hieróglifos do Egito — como o jesuíta Athanasius Kircher [1602-1680] — chegaram a pensar que aqueles desenhos gravados nos monumentos egípcios seriam como emblemas e deveriam ser interpretados como tal.

Amoris divini et humani antipathia, sive effectus varij, e varijs Sacrae Scripturae locis deprompti, elblematis suis expressi (1629) (14748697104).jpg

Amoris languis (langor do amor) – “curai Amor este mal, de que sois vós o autor”, clama a versão espanhola das rimas que acompanham esta ilustração em Amoris divini et humana antipahia (1629), que também conta com textos em latim, francês e alemão, cada qual com uma tipografia distinta.

Algumas obras foram publicadas e republicadas em dezenas de edições ao longo dos anos. Mas como acontece com qualquer meme, os livros de emblema acabaram perdendo a graça. Em meados do século XVIII, cerca de dois séculos após o surgimento do gênero, eles foram deixando de ser produzidos. Isso não quer dizer que os emblem books caíram completamente no esquecimento. Depois que saíram de moda, passaram a ser estudados por historiadores, linguistas e especialistas em literatura antiga.

Páginas do Templo da Fama, livro de emblemas português publicado em 1665. Como em algumas obras do gênero, aqui se rende homenagem a feitos militares (no caso, de uma guerra entre Portugal e Espanha)

Páginas do Templo da Fama, livro de emblemas português publicado em 1665. Como em algumas obras do gênero, aqui se rende homenagem a feitos militares (no caso, de uma guerra entre Portugal e Espanha)

Como eram frequentes nas bibliotecas particulares de antigos nobres que foram sendo adquiridas ou doadas para museus ou universidades, os livros de emblema não são muito difíceis de encontrar no meio digital. Algumas coleções online desse tipo de obra emblemática são o OpenEmblem Project (da Universidade de Illinois, EUA), o English Emblem Book Project, o site de emblemas da Universidade de Glasgow (que conta com títulos italianos e franceses) e o Literatura Emblemática Hispânica. Na biblioteca de Harvard, guarda-se um raro exemplo de emblemata em português — o Templo da Fama, escrito por Manoel Pinheiro Arnault em 1665. A Wikimedia também conta com uma extensa categoria de ilustrações retiradas de livros de emblemas. Algumas imagens que ilustram este texto provêm de minha modesta coleção de emblemas no Pinterest.