Negacionismo

“O sono da razão produz monstros” (el sueño de la razón produce monstruos) é o título que acompanha a obra ao lado, de Francisco Goya, onde um homem adormece e é assombrado por “monstros” da noite. Goya foi um defensor do iluminismo e satirizou a sociedade de sua época na série de gravuras “Los Caprichos“.

A sociedade da época de Goya guarda muita semelhança com a sociedade em que vivemos, ainda impregnada pela superstição, pela religião, pelo misticismo e pela antipatia à razão.

Avançamos muito desde o século XVIII nesse sentido, tempos onde uma mulher seria queimada viva se alguém a denunciasse como bruxa – mesmo que não existissem provas – e um homem poderiar ser torturado até a morte se duvidasse de algum dogma religioso.

Ao longo do século passado houve uma tendência, principalmente nos círculos filosóficos mas na população de um modo geral, de se negar evidências e tentar demonstrar que não havia consenso sobre vários conhecimentos estabelecidos. A crítica que visava invalidar a razão e relativizar tudo ad infinitum ficou conhecida como o negacionismo.

De acordo com a definição do denialism blog, o negacionismo pode ser entendido como o uso de táticas retóricas com o objetivo de dar a aparência de um argumento ou debate legítimo, quando na verdade não há nenhum dos dois no que se fala. Em geral, as pessoas que adotam essa postura usam argumentos falsos quando tem poucos fatos ou nenhum para embasar seu ponto de vista que é contra o consenso científico ou evidências contundentes que invalidam seu ponto de vista.

ResearchBlogging.orgAinda segundo a definição do blog, pessoas com tal postura costumam distrair as pessoas do debate verdadeiramente útil, usando grande apelo emocional, mas fazendo uso de afirmações vazias e ilógicas. O negacionismo também pode ser entendido como a rejeição de conceitos básicos corroborados por muitas  evidências e que fazem parte do consenso científico, em favor de idéias controversas e radicais (Scudellari, 2010).

Existem certos tópicos onde o negacionismo costuma marcar maior presença, como no caso do criacionismo/designer inteligente, a negação do aquecimento global, do holocausto, da AIDS,  do atentado terrorista no World Trade Center, da ida à lua, dos efeitos cancerígenos do tabaco, do benefício dos contraceptivos e das vacinas.

O que é comum a todos estes tópicos é que os que rejeitam as evidências se aproveitam da dificuldade que existe em observar diretamente as evidências de algum tema – porque aconteceram há muitos anos atrás, requerem instrumentos avançados para analisar e visualizar e um entendimento de conceitos específicos – para criar alguma credibilidade ao oferecer teorias conspiratórias mais intuitivas e simplificadas (como que existe uma elite poderosa tentando esconder a verdade do povo a qualquer custo e controlar a vida das pessoas).

Ethan Allen, conforme citado em O Mundo Assombrado Pelos Demônios – A Ciência Vista Como uma Vela no Escuro de Carl Sagan, tem algumas palavras interessantes para quem pretende invalidar a razão:

Aqueles que invalidam a razão devem seriamente considerar se estão argumentando contra a razão com ou sem razão. Se é com razão, eles estabelecem o princípio que se esforçam para derrubar; mas, se argumentam sem razão (o que, para ser coerentes consigo mesmos, deveriam fazer), ficam fora do alcance da convicção racional e não merecem uma argumentação racional.

Bloom e Weisberg (2007) sugerem que os seres humanos possuem alguma resistência universal á idéias científicas contra-intuitivas desde cedo, que muitas vezes permanece durante a vida adulta.  O conflito com a ciência ocorre porque muitas vezes as evidências científicas atentam contra propensões da intuição infantil, como a tendência nas crianças de perceber as coisas em termos de propósito (teleologia promíscua) e de perceber o cérebro como algo fundamentalmente diferente da mente (dualismo). Isso talvez explique porque muitas pessoas tendem a preferir explicações intuitivas mesmo que as evidências apontem para outro caminho.

Existem muitos assuntos sobre os quais os cientistas estão longe de alcançar um consenso, visto que nosso entendimento das coisas ainda é primitivo. Os cientistas podem estar errados sobre muitas coisas que acreditam conhecer hoje a partir da ciência, mas e se não estiverem? Então o risco a que nos expomos negando qualquer evidência por princípio é muito grande e tal postura é irresponsável.

O negacionismo se tornou uma questão de saúde pública, como aconteceu na Nigéria, quando fundamentalistas religiosos promoveram um boicote à vacinação contra  a pólio alegando que essa seria uma conspiração americana visando esterelizar e infectar as mulheres com AIDS. Vejam o trecho a seguir, extraído da pagina HowStuffWorks da Uol:

No período de 2002-2003, a Índia apresentou 1.517 casos, seguida pela Nigéria com 180 casos. A Índia instituiu uma ampla campanha de vacinação com auxílio de voluntários,  reduzindo a 224 casos ao final de 2003, 134 em 2004 e somente 15 em 2005. Entretanto, na Nigéria, vários líderes religiosos acusaram a vacina contra a pólio de causar infertilidade e transmitir o vírus da aids, o que levou a um retrocesso nas campanhas. Isso levou a um grande aumento do número de casos com exportação do vírus para 18 países. Atualmente o número de casos de pólio por vírus importado é superior ao número de casos de países onde a pólio é endêmica.

O negacionismo normalmente se baseia na relativização e rejeição das evidências que possuímos sobre algum tópico. A justificativa para negar o conhecimento estabelecido sobre um tópico costuma girar em torno da idéia de que “os cientistas ainda não tem certeza abosluta disso e nunca terão, logo isto não é um conhecimento válido e nada deveria ser feito baseado nele”.

A reflexão que o relativismo pode nos proporcionar é muito importante e necessária para uma série de situações em que precisamos entender que não temos o único ponto de vista que é certo, como quando conseguimos perceber que as pessoas de outra cultura (ou da nossa mesma cultura) têm  pontos de vista e comportamentos diferentes dos nossos, sendo que nenhum dos dois está necessariamente certo ou errado (porque tomar 3 banhos por dia seria mais certo do que tomar 1?).

O problema está em pensar que a relativização é um princípio infinitamente suficiente para qualquer situação. A relativização radical pode nos levar a posturas extremamente inconclusivas, desumanizadoras e permissivas das mais diversas atrocidades e injustiças.

Se relativizamos radicalmente o estupro, por exemplo, podemos chegar à conclusão de que ele não é necessariamente errado, é praticado em várias culturas, foi comum durante a maior parte da história humana e é presente na própia natureza, portanto seria o rumo natural das coisas.

Este é um exemplo simplificado de como um argumento pode ser montado para soar razoável e embasado, quando ele é, na verdade, imbuido de desonestidade intelectual. Se um erro é praticado em várias culturas ou por muito tempo durante a história humana, isso não torna este erro mais aceitável do que ele deveria ser. Uma prática injusta continua sendo injusta com o passar do tempo.

Também não vivemos na selva, mas numa sociedade onde existem direitos e deveres estabelecidos. As mulheres que vivem nesta sociedade tem o direito à liberdade, que neste exemplo pode ser traduzido como direito a ter relações sexuais com quem quiser e quando quiser. O estupro é uma forma de violência que priva a mulher desta liberdade, além de comumente vir acompanhado de outras formas de violências como a física, a verbal e a própia morte, sendo a combinação destas bastante comum.

Relativizar o efeito estufa é ainda mais controverso, pois pode acarretar custos para todas as formas de vida na Terra. Os argumentos conspiratórios mais comuns defendem que a terra está vivenciando um processo natural de mudança climática. Isto talvez seja verdade em parte, mas existem poucas evidências em favor desta hipótese, ao passo que existem várias evidências corroborando a hipótese de que o ritmo que o aquecimento global está tomando não é natural e está sendo agravado pela ação humana.

É interessante observar que estas mesmas pessoas que negam a ciência por princípio usam carro, ônibus, metrô, geladeira, computador, internet, celular, ar-condicionado, microondas, sem falar nas redes elétricas e de abastecimento de água.

Estas mesmas pessoas talvez tivessem paralisias no seu corpo ou não atingissem a vida adulta se não fossem pelas gotinhas contra poleomelite que tomaram (mesmo que o nível mais grave da doença seja mais raro), visto que essa vacina foi responsável pelo grande avanço na erradicação desta doença que matou muitas crianças, assim como se não tivessem tomado a BCG que imuniza contra tuberculose e a tetravalente, que imuniza contra a meningite, a difteria, o tétano e a coqueluche.

É estranho que tanto desprezo pela ciência desapareça nesses momentos de lazer, conforto, segurança e saúde, pois apesar de alguns discursos inflamados e convictos, todos adoram desfrutar dos benefícios advindos do método científico e da constante inovação tecnológica subsidiada pelo conhecimento produzido por cientistas.

Michael Specter é um jornalista americano que recentemente publicou o livro Denialism: How Irrational Thinking Hinders Scientific Progress, Harms the Planet, and Threatens Our Lives. No vídeo abaixo, Specter ilustra como o medo da ciência e da razão vem crescendo nos últimos anos devido aos avanços científicos sem precedentes históricos que estamos vivenciando e como este medo pode evitar que milhões de pessoas tenham vidas melhores.

Referências:

Bloom, P., & Weisberg, D. (2007). Childhood Origins of Adult Resistance to Science Science, 316 (5827), 996-997 DOI: 10.1126/science.1133398

Scudellari M (2010). State of denial. Nature medicine, 16 (3) PMID: 20208495

Specter, M. (2009).Denialism: How Irrational Thinking Hinders Scientific Progress, Harms the Planet, and Threatens Our Lives. London: The Penguin Press.

Discussão - 5 comentários

  1. Alexandra disse:

    Ficou bom isso, hein? Ainda mais citando Goya (um dos meus pintores favoritos).
    Parabéns!

  2. André Rabelo disse:

    @Alexandra
    Obrigado Alexandra!!
    O Goya foi um influente pintor, admiro ele desde as minhas aulas de artes visuais no ensino médio =)

    um abraço,
    André

  3. [...] (nem sempre tão honestas ou qualificadas) para ocupar o seu lugar na mídia. Complementando a discussão feita no texto anterior sobre o negacionismo, é possível assistir este documentário da BBC no vídeo abaixo (com áudio em inglês e sem [...]

  4. [...] como possíveis origens da resistência à ciência. Talvez estas tendências nos ajudem à entender o negacionismo do conhecimento científico relatado porPaul Nurse no documentário Science Under Attack, divulgado anteriormente aqui no [...]

  5. [...] http://cienciaumavelanoescuro.haaan.com/2011/02/negacionismo/ [...]

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