Estréia do Periódico Bule: O que é a Ciência?

Fonte: Bule Voador

Autor: André Rabelo

Sejam todos bem-vindos ao Periódico Bule!

Esse será um espaço do Bule Voador reservado especialmente para a divulgação da ciência. Como vocês poderão ver, a página inicial do Bule Voador apresenta um novo menu com o nome “Periódico Bule” (se não estiverem encontrando, apertem F5 que deve resolver o problema). Lá vocês encontrarão informações sobre o que é esse projeto e como participar ativamente dele. Recomendamos que leiam a página para saberem o que esperar dos nossos artigos!

Esperamos contar com a colaboração de todos que compartilham conosco dessa paixão pela ciência e que gostariam de ajudar a divulgá-la. Não fiquem tímidos, participem, enviem artigos! Outra forma de participar é enviando sugestões nos comentários dos textos publicados de temas que gostariam de ver sendo discutidos no Periódico Bule. Fiquem a seguir com o texto de abertura falando sobre  a complicada pergunta do que é a ciência.

Pedro Almeida e André Rabelo

(editores-chefe)

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Definir a ciência não é uma tarefa trivial e já causou dor de cabeça em grandes pensadores no passado. Apenas definir o seu método, por exemplo, se mostrou uma tarefa inacabável e de duvidosa generalização para todas as suas áreas. De fato, mesmo dentro de uma mesma área como a biologia, diferentes métodos (não completamente diferentes) são usados por cientistas investigando diferentes aspectos dos fenômenos.

Apesar da bagunça que é a ciência, isso não implica que ela seja menos racional do que a matemática ou a lógica [1]. Não significa, portanto, que devemos jogar fora o bebê junto com a água suja da banheira [2]. Alguns exemplos podem nos ajudar a perceber isso.

Quando queremos nos guiar durante uma viagem, por exemplo, podemos usar um mapa. Como uma guia, ele provavelmente não será capaz de esgotar os detalhes acerca daquilo que foi feito para esclarecer. Ele dará informações mais claras para alguns lugares e menos claras para outros. Mas, para fins práticos, o mapa será útil àqueles que o usarem. De forma similar, a ciência será útil para os que buscam a compreensão do universo.

Outra forma de avaliarmos o alarme falso dessa questão é pensando no código de ética das profissões. Apesar de possuir a função de regulamentar as condutas dos profissionais de uma área, nenhum código de ética foi bem sucedido em demarcar e pontuar todas as condutas que descrevem uma conduta ética ideal ou estabelecer prescrições éticas universais que pudessem ser aplicadas à qualquer profissão, independente de qualquer particularidade que possa existir na sua aplicação prática em um determinado campo. Os códigos não conseguem definir precisamente todos os aspectos da conduta ética porque existe uma enorme complexidade de situações vividas em grande parte das profissões que dificulta imensamente a generalização de um número restrito e rígido de prescrições.

Os códigos, assim como os mapas, nos são muito úteis para alcançar alguns objetivos práticos, mesmo que sempre de forma falha, incompleta e insuficiente. Esse mesmo raciocínio serve como uma analogia, num nível mais abstrato, para a ciência e os seus métodos.

O problema da precisão da definição é regularmente superestimado por muitos. Sokal e Bricmont comentam em seu épico livro, Imposturas Intelectuais [3], que:

“(…) não existe (pelo menos até o momento) uma codificação acabada da racionalidade científica; e duvidamos seriamente de que possa vir a existir (…). Apesar disso – e esta é a principal diferença entre nós e os céticos radicais -, achamos que as teorias científicas bem estabelecidas são em geral sustentadas por bons argumentos, embora a racionalidade desses argumentos precise ser analisada caso a caso.”

Ao explorarem essa questão, os autores reforçam a idéia de que o empreendimento científico é guiado por uma série de princípios metodológicos mais ou menos gerais, passíveis de justificação racional, mas que se modificam historicamente, sendo a racionalidade sempre uma adaptação a essas novas mudanças. Além das ambiguidades filosóficas constantemente presentes nos métodos usados dentro da ciência, existe quase uma impossibilidade de justificar qualquer método particular como sendo melhor sempre e para qualquer situação [2].

ResearchBlogging.org

Mesmo sem uma definição suprema, a comunidade científica consegue compartilhar, de forma abstrata e flexível, quais são algumas das idéias mais úteis e aceitas para se fazer ciência. A ciência não é um sistema de crenças, ela é um empreendimento que faz uso de um conjunto de métodos racionais de investigação – ela é uma forma de interrogar ceticamente o universo, nas palavras de Carl Sagan [4].

Além disso, a prática científica possui intrinsicamente um caráter social e comunitário, já que é feito por pessoas. A comunidade compartilha teorias e conhecimentos, construindo o seu conhecimento da natureza com a pequena colaboração de várias pessoas ao longo de muitos anos. É, portanto, um processo de produção de conhecimento colaborativo que se modifica historicamente. Não é perfeito porque é feito por pessoas, que possuem suas preferências, desejos, visões de mundo e ignorância.

A ciência, apesar de todo o seu rigor nos procedimentos e racionalidade nos argumentos, é flexível, moldável e adaptável. Ela precisa ser assim para poder funcionar e esse é um dos motivos pelos quais ela tem avançado tanto. É por isso que se referir a um “método científico” pode causar impressões erradas. O seu grande diferencial como empreendimento de produção de conhecimento é a possibilidade dos seus resultados estarem sempre abertos ao debate e à crítica, além de seus membros poderem sempre testar independentemente os achados dos outros e avaliar as suas conclusões. É um sistema de justificação racional de crenças com a capacidade de se auto corrigir e que, com grande frequência, assim o fez.

Como o seu conhecimento e a forma de obtê-lo muda com o tempo por conta da sua constante auto-correção, não faz sentido lógico acusá-la de dogmática. Podemos perceber o problema lógico de caracterizá-la assim usando o princípio polar de Wittgenstein. Se estendemos o significado do conceito de dogmatismo até para se referir a algo como a ciência, esse conceito perde a sua utilidade básica de diferenciar coisas, pois dessa forma ele descreveria desde coisas que mudam o tempo todo até coisas que não mudam tanto, desde coisas onde tudo está aberto ao debate até coisas onde não há debate sobre tudo. Se um conceito descreve tanto “x” como o oposto de “x”, sua função mais básica de diferenciar e descrever algo simplesmente se dissolve (a utilidade do conceito de “vida”, por exemplo, ficaria comprometida se disséssemos que tanto um organismo vivo quanto um morto está vivo).

Podemos avaliar, caso a caso, a justificação lógica e racional das pesquisas feitas em diferentes áreas, empregando noções gerais como o ceticismo, a replicação, a crítica, a consistência teórica e o delineamento experimental, sempre lembrando que haverão muitas exceções e que essas idéias não se aplicarão integralmente a todos os seus campos. Isso, porém, não tira qualquer legitimidade da ciência como um instrumento de justificação racional de crenças muito bem sucedido, de grande benefício para a sociedade [2] e o meio mais confiável que conhecemos para entender o universo.

 

Referências:

[1] Solomon, M. (2004). PHILOSOPHY OF SCIENCE: Messing with Common Sense. Science, 305 (5680), 44-45 DOI: 10.1126/science.1097001

[2] Shadish, W. (1995). Philosophy of science and the quantitative-qualitative debates: Thirteen common errors. Evaluation and Program Planning, 18 (1), 63-75 DOI: 10.1016/0149-7189(94)00050-8

[3] Sokal, A., & Bricmont, J. (2007). Imposturas Intelectuais. Rio de Janeiro: Record.

[4] Sagan, C. O. (1998). O mundo assombrado pelos demônios. A ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia das Letras.

 

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André Rabelo é estudante de graduação no curso de psicologia da Universidade de Brasília (UnB). É editor do blog Ciência – Uma Vela no Escuro e colaborador do Blog de Astronomia do astroPT e do Bule Voador.

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