Como Lidar com a Morte?


Eu tive o infortúnio de perder dois familiares recentemente – uma tia não resistiu a um câncer agressivo e uma prima que teve complicações durante uma cirurgia. Minha falta de proximidade e convivência com as mesmas atenuou a terrível sensação de perda que deve atormentar tantas pessoas que tiveram entes queridos tomados de si repentinamente. Entretanto, estes acontecimentos me relembraram que eu também irei morrer um dia. Muitos de nós normalmente se acostumam com esse conhecimento e vivemos nossas vidas como se sempre pudessemos contar com o amanhã, mas mortes de pessoas próximas podem nos lembrar que um dia, certamente, o amanhã não existira mais para nós. A morte ocupa um espaço particular em nossa compreensão do mundo, já que é um dos poucos eventos que podemos prever desde a infância e com grande nível de certeza que ocorrerá conosco, mesmo que outros eventos no nosso futuro ainda sejam obscuros. A pintura que inicia o texto de Gidoret, pintor francês que viveu entre os séculos XVIII e XIX, representa esta sina humana – a de ser obrigado a abandonar as pessoas que aprendeu a amar durante suas vidas nos braços da morte.

O ser humano e todas as outras espécies de seres vivos na Terra foram moldados pela evolução para sobreviver. A morte é um estágio natural da vida de um organismo e parte integrante do processo evolutivo. Para Sam Harris (2004), a morte também é um componente central da visão de mundo que uma pessoa tem:

“Aquilo que cada um de nós acredita que acontecerá após a morte dita, em boa parte, o que acreditamos sobre a vida, e é por isso que a religião baseada na fé, ao pretender preencher as lacunas no nosso conhecimento sobre a vida após a morte, exerce tamanha influência sobre os que caem sob o seu poder.(…) Não há como negar que o conceito de cada um sobre a vida após a morte tem consequências diretas sobre a sua visão de mundo.(…) Sem a morte, a influência da religião baseada na fé seria impensável. Sem dúvida, o fato inevitável da morte é intolerável para nós; e a fé é pouco mais do que a sombra lançada pela nossa esperança de uma vida melhor no além-túmulo.”

ResearchBlogging.orgComo Sam Harris afirma, parece haver uma relação intrincada entre as visões culturais de mundo produzidas pelos seres humanos e a percepção que temos da morte. Se debruçando sobre este relacionamento, a Teoria do Gerenciamento do Terror (Terror Management Theory), elaborada pelos psicólogos sociais Greenberg, Pyszczynski e Solomon (1986) propõe que as nossas visões de mundo, compartilhadas dentro de uma cultura, tem como função básica aliviar a ansiedade resultante do nosso conhecimento acerca da vulnerabilidade humana e da certeza de que morreremos. De acordo com essa teoria, o instinto humano de auto-preservação, ao interagir com a nossa capacidade de auto-consciência, da as condições básicas para que sejamos organismos conscientes da nossa finitude e, consequentemente, a combinação destas capacidades pode resultar em um “terror paralizante” (Jonas & Fischer, 2006).

A manutenção deste terror ocorre em um nível inconsciente de processamento de informação e depende de duas estruturas psicológicas – visões culturais de mundo e a auto-estima. Dentro desta perspectiva, sistemas culturais de crenças oferecem ordem, significado, senso de permanência e padrões de conduta que permitem às pessoas alcançar um senso de valor pessoal (Jonas & Fischer, 2006), além de oferecer proteção e transcedência para os que viverem de acordo com o sistema de valores e crenças. Para os autores, isso resulta em fortes motivações para acreditar e defender as concepções culturais de realidade em que acreditamos quando somos lembrados da morte, assim como buscar formas de aumentar nossa auto-estima e valor (Rosenblatt, Greenberg, Solomon, Pyszczynski & Lyon, 1989).

As predições desta teoria têm sido largamente investigadas e corroboradas nas últimas duas décadas de pesquisa empírica testando a teoria (Burke, Martens & Faucher, 2010; Greenberg et al., 1990; Jonas & Fischer, 2006; Rosenvlatt et al., 1989). Uma tendência repetidamente identificada nestes estudos é que as pessoas geralmente, ao serem levadas a pensar sobre a sua finitude, costumam se apegar mais ainda às suas concepções de realidade, além de buscarem uma percepção mais positiva de si mesmos.

Como a religião de uma pessoa é um aspecto importante da sua visão de mundo e, muitas vezes, também está relacionada com a forma como ela interpreta a morte (e.g. reencarnação, inferno), é de se esperar que existam diferenças no modo como pessoas religiosas e não-religiosas enfrentam a questão da morte em suas vidas – de fato, alguns estudos têm investigado o papel desta diferença individual nos efeitos previstos pela Teoria do Gerenciamento do Terror (Norenzayan, Dar-Nimrod, Hansen & Proulx, 2009). No senso comum, é frequente ouvir que a religião oferece um consolo para as pessoas que não poderia ser suprido de outra forma. Seria isto verdade? Qual seria a resposta secular à questão da morte? Dawkins (2007) se aventurou no assunto:

“Se você tirar a religião, as pessoas perguntam, com truculência, o que vai colocar no lugar? O que você tem a oferecer aos pacientes que estão morrendo, aos parentes enlutados, às Eleanor Rigby solitárias que têm em Deus seu único amigo? (…) Não sei de nenhuma evidência de que os ateus tenham qualquer tipo de tendência para a depressão movida pela infelicidade e pela angústia. (…) Há algo de infantil na idéia de que outra pessoa (pais no caso de crianças, Deus no caso de adultos) tem a responsabilidade de dar sentido e objetivo a sua vida. Tudo isso faz parte da mesma infantilidade daqueles que, no momento em que torcem o tornozelo, olham em torno para achar quem processar. Alguém tem de ser o responsável por meu bem-estar, e alguém tem de ser o culpado se eu me machuco. (…) A visão verdadeiramente adulta, pelo contrário, é a de que nós é que decidimos se nossa vida será significativa, plena e maravilhosa.”

Sem a religião ou com ela, o sofrimento pela morte de alguém amado é dificilmente evitável – ateus e religiosos em geral são capazes de amar e, consequentemente, de sofrer caso seu objeto de afeto morra. Neste sentido, a religião, de um modo geral, não livra as pessoas do sofrimento, servindo muitas vezes apenas como uma forma de compreender o evento. Mas seria esta a melhor forma ou a mais consoladora de lidar com o fim de uma vida? Não há dúvida de que muitos religiosos usam sua visão de mundo para compreender a morte e pode até ser que esta seja de fato benéfica, mas não há porque afirmar que outras formas seculares e naturalistas de compreender a questão não seriam igualmente satisfatórias. Dawkins da mais alguma pistas (2007):

“Em Desvendando o arco-íris tentei mostrar como temos sorte de estar vivos, considerando o fato de que a grande maioria das pessoas que poderiam ser criadas pela loteria combinatória do DNA na realidade jamais nascerá. Para nós, sortudos, que estamos aqui, descrevi a brevidade relativa da vida imaginando uma luzinha de laser avançando ao longo de uma enorme linha do tempo. Tudo o que há antes ou depois da luzinha está mergulhado na escuridão do passado morto ou na escuridão do futuro desconhecido. Somos incrivelmente sortudos de estar sob a luz. Por mais curto que seja nosso tempo sob o sol, se desperdiçarmos um segundo dele, ou reclamarmos que é tedioso ou estéril ou chato (como uma criança), isso não poderá ser visto como um insulto insensível para os trilhões de não-nascidos que jamais terão a chance de receber a vida? Como muitos ateus já disseram melhor que eu, a consciência de que temos apenas uma vida deveria torná-la ainda mais preciosa. A visão ateísta reafirma e melhora a vida, e ao mesmo tempo nunca é afetada pela auto-ilusão, pelo excesso de otimismo ou pela autopiedade chorosa daqueles que acham que a vida lhes deve alguma coisa.”

O consolo é uma consequência da capacidade humana de produzir significado adaptativo do mundo que nos cerca e não há indicíos para afirmar que ela dependa de uma visão religiosa ou sobrenatural do mundo. Humanistas seculares, por exemplo, são altamente capazes de valorizar a vida, de produzir signicados adaptativos e propositivos em relação à sua existência e de adotar uma cosmovisão compatível com a maximização do bem estar do ser humano assim como dos outros organismos que compartilham deste mesmo planeta que moramos. Perceber a morte como parte integrante e inevitável da existência humana, por mais dolorosa que ela seja para criaturas tão empáticas e afetivas como nós, naturaliza um evento outrora sombrio e nos torna menos temerosos de viver.

Um exemplo comovente disto que estou dizendo foi trazido pelo Bule Voador em um texto de Michael Nugent sobre a sua falecida esposa e sobre a vida repleta de realizações e conquistas dos dois. Ao concluir seu tributo à esposa, Michael demonstra que apesar de sentir falta da sua querida esposa se sente feliz pela oportunidade de ter compartilhado tanto tempo de sua vida com uma pessoa que admirava e amava tanto. Outro exemplo de como lidar com a morte é o que ocorre na Jamaica, onde é comum observar uma prática cultural conhecida como os “nove dias” (nine nights). Este ritual é uma forma de celebrar o fato de que o membro da família não sofrerá mais como os que ainda estão vivos. Muito diferente do tipo de ritual que observamos em nossa cultura, estes jamaicanos organizam algo mais parecido com uma festa do que com um velório tradicional, onde os amigos da família se reúnem na casa da família levando comidas e bebidas para refletir e celebrar, ao longo de nove dias e ao som de músicas cantadas em conjunto, a vida e a morte de alguém que foi querido por eles. A ocasião da morte pode ser uma oportunidade de reflexão e de relembrar bons momentos como uma forma de celebrar a vida de quem se foi e a vida que ainda nos resta. Fica aqui um vídeo demonstrando a atmosfera de alegria e celebração que permeia essa bela expressão cultural.

Referências:

Burke, B., Martens, A., & Faucher, E. (2010). Two Decades of Terror Management Theory: A Meta-Analysis of Mortality Salience Research. Personality and Social Psychology Review, 14 (2), 155-195 DOI: 10.1177/1088868309352321

Dawkins, R. (2007). Deus, um delírio. São Paulo: Companhia das Letras.

Greenberg, J., Pyszczynski, X, & Solomon, S. (1986). The causes and consequences of a need for self-esteem: A terror management theory. In R. F. Baumeister (Ed.), Public self and private self (pp. 189-212). New york: Springer-Verlag.

Greenberg, J., Pyszczynski, T., Solomon, S., Rosenblatt, A., & et al (1990). Evidence for terror management theory II: The effects of mortality salience on reactions to those who threaten or bolster the cultural worldview. Journal of Personality and Social Psychology, 58 (2), 308-318 DOI: 10.1037/0022-3514.58.2.308

Harris, S. (2004). A morte da fé: Religião, terror e o futuro da razão. São Paulo: Companhia das Letras.

Jonas, E., & Fischer, P. (2006). Terror management and religion: Evidence that intrinsic religiousness mitigates worldview defense following mortality salience. Journal of Personality and Social Psychology, 91 (3), 553-567 DOI: 10.1037/0022-3514.91.3.553

Norenzayan, A., Dar-Nimrod, I., Hansen, I., & Proulx, T. (2009). Mortality salience and religion: divergent effects on the defense of cultural worldviews for the religious and the non-religious. European Journal of Social Psychology, 39 (1), 101-113 DOI: 10.1002/ejsp.482

Rosenblatt A, Greenberg J, Solomon S, Pyszczynski T, & Lyon D (1989). Evidence for terror management theory: I. The effects of mortality salience on reactions to those who violate or uphold cultural values. Journal of Personality and Social Psychology, 57 (4), 681-90 PMID: 2795438

 

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