Ciência e inferência. Parte II: Popper e a tese do holismo.

Fonte: Bule Voador

Autor: Rodrigo Véras

A tentativa de escapar do dilema Humeano perpetrada por Popper – ao encarar a inferência científica como um processo hipotético-dedutivo falsificacionista – parece não ter surtido o efeito esperado. Os críticos muito rapidamente perceberam que esta abordagem destoava de boa parte das práticas dos cientistas. As aspirações normativas do modelo Popperiano de oferecer um critério de demarcação capaz de diferenciar a ciência da pseudociência, de maneira clara e simples, também não prosperaram, ainda que a refutabilidade de uma hipótese possa ser um guia útil em muitas situações, como estratégia preliminar na prática demarcatória.

Muitos filósofos e cientistas criticaram a posição de Popper por oferecer uma perspectiva clara sobre a aquisição e para o avanço do conhecimento científico. Excluía a indução como uma estratégia inferencial cientificamente válida, não dava crédito à importância da confirmação de hipóteses por resultados positivos e parecia sugerir que a maioria dos esforços dos cientistas deveriam ser concentrados em tentativas de refutar suas hipóteses, teorias e modelos. Os cientistas, não obstante, desejam mais do que isso. Querem poder realmente inferir algo sobre o desconhecido e sem formas de raciocínio ampliativo, como a indução, simplesmente, não parece ser possível passar do específico para o geral ou do observado para o não observado. As abordagens dedutivas parecem ser insuficientes para tanto. Um das conseqüências, tida por muitos como restritiva e frustrante, é que as conclusões, de uma forma ou de outra, já estariam implícitas nas premissas ou, no caso, nas hipóteses. Mesmo que Popper não fosse preconceituoso em relação às origens das hipóteses, não considerava esta questão relevante à justificação, nem à demarcação e, muito menos, apropriada ao estudo por parte da filosofia da ciência. Uma atitude que, caso seguida, poderia muito bem inibir a investigação dos processos de descoberta e de criação de hipóteses, deixando-os fora do processo de investigação das metodologias científicas.

Áreas inteiras da ciência que não se enquadrassem no modelo Popperiano poderiam passar a ser vistas como “não-científicas” ou até pseudocientíficas. Apenas certos tipos de fenômenos são capturados pela formalização hipotético-dedutiva, via modus tollens (veja a parte I). Acontece que muitos campos e disciplinas científicas investigam questões e eventos particulares ou relações causais contingentes que normalmente compreendemos como demandando evidências confirmatórias. Ao levarmos a perspectiva Popperiana ao pé da letra, a descoberta de um agente infeccioso de um novo planeta ou a elucidação de uma via causal de um sistema qualquer, não seriam “ciência de verdade”, a menos que entrassem como parte de um teste de uma hipótese mais abrangente, passível de ser refutada, por exemplo.

O esquema Popperiano, para muitos, empobrecia a ciência, podendo até excluir boa parte das disciplinas, até então, consideradas “perfeitamente científicas”. A coleta metódica, organização sistemática, a análise minuciosa e a caracterização de padrões nos dados seriam equivalentes a mera coleção de selos e não uma parte integrante da prática científica, funcionando, quem sabe, apenas como elemento “inspirador” ou, no máximo, como condição necessária à verdadeira prática científica, a inferência através do teste das consequências deduzidas de hipóteses por tentativa de falsificá-las. Mas ciência, para os cientistas, é muito mais do que testar hipóteses, ainda que esta seja uma parte importantíssima do processo de indagação científica. Cientistas querem muito mais do que, simplesmente, refutar hipóteses, querem produzir novo conhecimento, fazer novas descobertas, desenvolver novas maneiras de aumentar suas chances de fazer novas descobertas e fomentar a proposta de novas ideias.

Mas, quem sabe, fosse realmente o caso da comunidade cientifica conformar-se com esta visão bem restritiva. Pelo menos teríamos descoberto uma característica distintiva da boa ciência que nos ajudasse a separar o joio pseudocientífico do trigo cientifico e que nos traria garantias epistêmicas sólidas. No entanto, o físico e epistemólogo Pierre Duhem – antes mesmo de Popper propor seu critério demarcatório e eleger a falsificação como a estratégia inferencial científica, por excelência – já havia apontando falhas importantes nesse raciocínio. De modo simplificado, resultados negativos – i.e. que contradissessem as consequências deduzidas das hipóteses – não seriam suficientes para refutar hipóteses. Portanto, não seriam um bom guia para o abandono de teorias científicas e não demonstrariam sua falsidade, algo já imbuído na prática da comunidade científica. Essa crítica encontrou ecos na visão holística semântica defendida pelo filósofo norte-americano W. V. O. Quine. Essa limitação do modelo Popperiano ocorreria por que as hipóteses científicas não teriam sentido por si sós. Precisariam ser suplementadas por uma série de outras suposições de fundo e hipóteses auxiliares, sem as quais seria impossível derivar quaisquer consequências empiricamente testáveis.

Sob a perspectiva da tese de Duhem-Quine, como é conhecida, uma falha em um teste pode nem sempre significar a refutação da hipótese principal, mas de uma das muitas outras hipóteses e suposições utilizadas no processo de inferência. Correríamos o risco de abandonar prematuramente hipóteses perfeitamente boas, que vinham, até o momento, nos servindo adequadamente, por mero descuidado, precipitação ou ignorância. Os cientistas têm essa consciência e geralmente não abandonam uma hipótese, modelo ou teoria simplesmente por causa de resultados contrários as expectativas, principalmente quando estão lidando com hipóteses extremante bem sucedidas, em quando não estão disponíveis alternativas minimamente adequadas.

A lição que devemos à Popper, entretanto, parece clara. Não podemos simplesmente ignorar resultados negativos que contradigam nossas hipóteses. Esses tipos de resultados são importantíssimos; e, em muitas ocasiões, realmente precisamos especificar previamente quais seriam estes desfechos para daí procuramos por eles ativamente, mesmo que ao encontrá-los não abandonássemos, imediatamente, nossas hipóteses. Pelo menos, não sem antes avaliarmos o que deu errado no teste, procurando investigar a rede de suposições e hipóteses auxiliares da melhor maneira possível para, então, decidirmos que porção desta cadeia deve ser abandonada ou alterada. Mas também parece claro que não podemos prescindir de estratégias de inferência ampliativa, como a indução. Estas formas de raciocínio podem ser facilmente conjugáveis com outras estratégias de ampliação epistêmica, como a analogia, através da qual procuramos transferir conhecimento de um domínio para outro, por exemplo, ao explorarmos as semelhanças de estruturação e relação causal entre fenômenos ou sistemas distintos, mas que possuam certas similaridades.

Os filósofos que se seguiram a Popper, como Kuhn, Lakatos e Laudan acabaram por mudar a direção do debate em filosofia geral da ciência [2]. O foco desviou-se do teste de hipótese, modelos e teorias para as comunidades de cientistas, a forma como elas se organizavam e os valores epistêmicos por elas adotados. Paradigmas, programas e tradições de pesquisa passaram a ditar a tônica do debate e a preocupação com o fornecimento de critérios claros de demarcação se esmaeceu, tendo mesmo sua relevância negada por Laudan [3].

Mas a preocupação com a inferência cientifica não diminuiu e no rastro da crítica Popperiana à indução e das discussões da solução via falsificacionismo, uma forma diferente de inferência científica, fundamentada na teoria das probabilidades (ou pelo menos em uma visão bem particular dela), a inferência Bayesiana, ganhou espaço. Este tipo de estratégia baseia-se no teorema de probabilidade condicional proposto pelo reverendo Thomas Bayes [4], ainda no século XVIII, publicado de forma póstuma. Muitos afirmam que tirando o teorema fundamental, a inferência Bayesiana tem muito pouca relação com as outras ideias de Bayes, mas esta abordagem parece conseguir capturar muitas de nossas intuições sobre como as evidencias deveriam se relacionar com as conclusões cientificas.

Veja a continuação em “Ciência e inferência. Parte III: O bom e velho reverendo”

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Referências

[1] Freitas, Renan Springer de and Collares, Ana Cristina Murta. O modus tollens, o holismo de Duhem-Quine e as ciências sociais. Dados [online]. 2001, vol.44, n.2
[2]
Chalmers, Alan F. O que é Ciência, afinal? São Paulo: Brasiliense, 1993, 230 pg.
[3]
Laudan, Larry The Demise of the Demarcation Problem in Cohen, R.S.; Laudan, L., Physics, Philosophy and Psychoanalysis: Essays in Honor of Adolf Grünbaum, Boston Studies in the Philosophy of Science, 76, 1983 Dordrecht: D. Reidel, pp. 111–127
[4]
Sober, Elliot Bayesianism — Its Scope and Limits in R. Swinburne, ed., Bayes’ Theorem, Proceedings of the British Academy Press, vol. 113, 2002, pp. 21-38.

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