A primavera acadêmica: O livre acesso ao conhecimento científico

A quem as editoras servem?

Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios. 

Artigo XXVII da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948.

Um assunto anda bem quente na comunidade científica desde que, no mês passado, o professor de matemática da Universidade de Cambridge, Timothy Gowers, publicou um texto em um blog explicando porque ele boicotava as revistas publicadas por uma das maiores editoras de revistas científicas.  As reclamações dos preços altos para submissão e assinatura das revistas, assim como das diretrizes que estas editoras adotam, já são antigas, mas o ano de 2012 começou com uma novidade: um grupo de cientistas cada vez maior está se unindo para boicotar uma das maiores editoras, a Elsevier,  por meio de uma petição online que já conta com mais de 2700 assinaturas de cientistas ao redor do mundo. Este impacto da “blogada” de Gowers reflete a insatisfação crescente da comunidade com as editoras. Seria este o início da “primavera acadêmica”?

Em uma matéria publicada no The Guardian, George Monbiont criticou duramente os poderes “feudais” das editoras acadêmicas e fez uma convocação para que esforços institucionais e individuais sejam unidos para enfraquecer os monopólios que se tornaram as editoras privadas. Só para se ter uma ideia da lucratividade desta indústria, a Elsevier, foco do atual boicote, teve um lucro de 1,16 bilhões de dólares em 2010, o que representa uma margem de lucro de 36% (uma taxa bem alta!).

Os membros da Elsevier têm se defendido mostrando como o processo editorial foi inovado pelas editoras e argumentam até mesmo que as editoras privadas permitiram que as pesquisas se tornassem acessíveis a um número muito maior de leitores e a um custo por unidade jamais visto anteriormente. Entretanto, a importância histórica das editoras no período de digitalização do processo editorial e do aprimoramento do mesmo, algo inegável, não serve como argumento para a sua manutenção atual. Se foi útil antes, não quer dizer que ainda seja útil.

Elsevier enfrenta boicote internacional

Exemplo: as ferramentas de pedra lascada eram muito úteis no paleolítico e foram fundamentais para desenvolvimentos tecnológicos posteriores, mas hoje temos coisas melhores para fazer as mesmas coisas. Ainda por cima, há um claro conflito de interesses nesta questão. Da maneira que ocorre hoje, o dinheiro público investido em pesquisas vai parar no bolso de instituições privadas que não cobrarão quantias exorbitantes apenas dos cientistas que submeteram os artigos, mas depois cobrarão também para que as bibliotecas tenham acesso ao trabalho e cobrarão alto de qualquer pessoa que não esteja em uma universidade. Esta situação deixa claro que “o que é bom para a ciência e para os cientistas não é necessariamente bom para as editoras científicas e vice-versa.” A ciência, idealmente, precisa ser feita com a ampla discussão de teorias e de dados empíricos. A ampla discussão só pode haver se o acesso aos trabalhos científicos for amplo também, algo que seria ótimo para a ciência, mas não tão bom para as editoras privadas.

Se as editoras não são mais necessárias e nos dão mais dor de cabeça do que ajudam (nas palavras de Mike Taylor, se elas se tornaram as “inimigas da ciência”), o melhor caminho é pressioná-las e eventualmente substituí-las. Mas para que isso aconteça, é necessário ter uma infraestrutura alternativa que faça o mesmo trabalho com menos ganância nos bolsos. Por enquanto, a nossa situação editorial no Brasil ainda é bem precária: nossas revistas são administradas de maneira amadora, com recursos contados e sem muita visibilidade e impacto internacional. No momento, precisamos contar com iniciativas internacionais de livre acesso, mas também existem esforços nacionais que fariam a diferença.

Sobre isso, o Atila fez uma ótima reflexão no Rainha Vermelha. A curto prazo, o melhor que podemos fazer é investir em submissões a boas revistas com política de livre acesso. De fato, as agências nacionais poderiam facilmente incentivar mais isso, levando em consideração sempre que o esforço de diversos cientistas brasileiros para internacionalizar suas produções pode demandar a publicação em revistas de maior impacto e administradas pelas editoras privadas, pois, para algumas áreas, as alternativas de livre acesso ainda são poucas. Nesse sentido, pelo menos em algumas áreas, estaríamos em certa desvantagem para engrenar com tudo neste movimento, pois os “saltos” na internacionalização dependem de publicação em revistas de alto impacto. Aos poucos, entretanto, as alternativas têm surgido sistematicamente. Michael Eisen, co-fundador do projeto PLoS ONE, uma das mais bem sucedidas publicações de livre acesso, traz boas notícias:

Enquanto a PLoS Biology e a PLoS Medicine não tiveram sucesso em substituir as glamourosas revistas Science, Nature, The New England Journal The Lancet, elas forneceram alternativas viáveis de acesso aberto de alto impacto, nossa comunidade de revistas tornaram-se bem proeminentes  nas comunidades que elas representam, e a PLoS ONE é agora a maior revista de pesquisa biomédica no mundo. BioMed Central também está prosperando, e uma vasta gama de novas editoras de acesso aberto e revistas têm surgido online nos últimos anos. E a eLife, um projeto conjunto de acesso aberto da HHMI, Wellcome Trust e a Max Planck Society serão lançadas ainda neste ano.

A substituição das editoras pode ser uma meta difícil, porém o enfraquecimento das mesmas já poderia trazer frutos proveitosos como mudanças nas políticas editoriais e nos custos cobrados pela submissão e acesso aos trabalhos. Parece que a melhor estratégia a curto prazo para enfraquecer as editoras é não submeter artigos a revistas publicadas por elas. As editoras dependem dos cientistas mais do que os cientistas dependem delas. Se o número de artigos submetidos diminuir drasticamente, as editoras podem se sentir mais “sensibilizadas” com a questão, e mudanças simples poderiam ocorrer que dificilmente arruinariam financeiramente esta indústria.

Alguns cientistas acreditam que hoje o processo de revisão pelos pares e publicação de trabalhos científicos poderia ser realizado de uma maneira igualmente eficiente e desproporcionalmente mais barato por meio de plataformas de livre acesso. A aparente revolução que está se iniciando promete mudar a maneira como as pessoas têm acesso ao conhecimento científico, democratizando-o e tornando o custo menor também para bibliotecas e cientistas. Em um momento onde sucessivos projetos de leis têm sido propostos com a intenção de restringir o acesso a informações (como o Research Works Act), este movimento tem um papel fundamental e pode garantir que algumas ideias contidas na Declaração Universal dos Direitos Humanos sejam priorizadas ao invés do interesse econômico de editoras privadas. Espero que este movimento seja bem sucedido, resta agora acompanhar como serão os próximos episódios desta novela!

Um panorama bem escrito do que está acontecendo também pode ser lido no texto do Atila, aqui no scienceblogs. Matérias sobre este assunto podem ser lidas aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

Discussão - 11 comentários

  1. [...] ser lidas aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.*Originalmente publicado no blog SocialMente. __spr_config={pid:'4eeb6c11396cef089600005c',title:'A primavera acadêmica: O livre acesso ao [...]

  2. [...] primavera acadêmica: O livre acesso ao conhecimento científico TweetFonte: SocialMente Autor: André Rabelo A quem as editoras [...]

  3. Luis disse:

    Cara até fiquei arrepiado imaginando um processo de revisão pelos pares semelhante ao que ocorre hoje em dia com a Wikepedia ou até mesmo com o código fonte de programa livres.

    Acho que o futuro será algo assim. Fica até dificil imaginar a dimensão dos avanços que podem surgir dessa "primavera acadêmica"

    saudações

  4. [...] Defendendo esta linha de pensamento, Michael Nielsen, atualmente um engajado entusiasta e desenvolvedor de ferramentas de colaboração científica aberta, oferece acima uma palestra crítica, com uma oratória impecável e inspiradora sobre as ferramentas que estão surgindo e acelerando a primavera acadêmica. [...]

  5. André Rabelo disse:

    Luis,

    obrigado pelo comentário! Pois é, como vc bem descreveu, colaborações em massa e abertas já existem em várias áreas (elaboração de programas de computador, legendagem de vídeos) e parecem funcionar muito bem! Os exemplos que o Nielsen (no último texto publicado aqui no blog) traz das colaborações bem sucedidas que ocorreram na matemática e na biologia me deixam com a impressão de que isso pode funcionar muito bem! Estou curioso para ver como estas iniciativas de acesso aberto irão funcionar, espero que sejam viáveis e permitam a publicação de trabalhos de qualidade.

    Abraço!

  6. [...] textos de Carlos Orsi, que fez uma discussão minuciosa do contexto em que surgiu o manifesto, de André Rabelo, que apontou alguns caminhos possíveis para o futuro da ciência aberta, e de Átila Iamarino, [...]

  7. andré luis rabello disse:

    Gostei do seu manifesto.

  8. André Rabelo disse:

    Parece que já temos indícios de que o manifesto teve efeitos positivos:

    http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/1054567-apos-boicote-editora-decide-reduzir-preco-de-artigos-cientificos.shtml

    Abraço!

  9. [...] que a pressão sofrida pelas editoras de ciência nos últimos tempos começa a surtir efeito. O periódico Nature publicou no início deste mês um [...]

  10. [...] Use esse espaço para manifestar opiniões e mobilizar a sua comunidade. O exemplo recente do boicote organizado contra a Elsevier mostra o poder político que os blogs vêm alcançando na nova era da ciência aberta, que está [...]

  11. [...] e livros para ler.5. Use esse espaço para manifestar opiniões e mobilizar a sua comunidade. O exemplo recente do boicote organizado contra a Elsevier mostra o poder político que os blogs vêm alcançando na nova era da ciência aberta, que está [...]

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