Budismo: O Uso Milenar da Neuroplasticidade
Fonte: NERDWORKING
Autor: Felipe Novaes
Embora ciência e religião pareçam sempre estar vivendo num eterno conflito, existe outro lado dessa história, em que existe o diálogo, a curiosidade e a saudável e frutífera troca de informações. De quebra, esse lado ainda representa um importante diálogo entre Oriente e Ocidente. O Dalai Lama parece ser o catalisador desse tipo de relação, mostrando – juntamente com a ciência ocidental – que a prática budista tem mais a nos ensinar sobre a nossa própria ciência do que nós desconfiaríamos. Mesmo sem saber, o monge budista e líder político e religioso do Tibet colocou o dedo numa questão científica que muito em breve se tornaria uma revolução no nosso conhecimento sobre o cérebro: a relação entre a neuroplasticidade e o suposto poder de a mente influenciar a arquitetura cerebral.
Frequentemente, o Dalai Lama deixa seus aposentos na Índia, em Dharamsala, para ir ao encontro de cientistas políticos ao redor do mundo para conhecê-los melhor, saber mais sobre seus trabalhos. Essa ação tem destaque principalmente em relação ao seu acompanhamento da atividade de cientistas. Porser um monge budista, nós tendemos a imaginar que ele não se interessasse por ciência ou mesmo que fosse em alguma medida contra ela, já que não é raro as descobertas científicas acabarem colocando à prova a fé. Mas ele dialoga prazerosamente com todos os cientistas e tem muita curiosidade.
Nos anos 90, Tenzin Gyatso – como o Dalai Lama se chama – acompanhava uma cirurgia cerebral. Durante o processo ele perguntou aos neurocirurgiões se a mente podia alterar o cérebro. Os médicos responderam aquilo que era mais prudente, considerando as evidências, isto é, até onde se sabia, a mente era apenas um reflexo da atividade eletroquímica do cérebro, portanto, o que acontecia ali era o que estava acontecendo na mente. Essa resposta não satisfez muito o monge budista, ele continuava tendendo a achar que alguma espécie de “pensamento puro” poderia sim alterar a estrutura cerebral.
Em certo sentido, Gyatso tocou num ponto que, quando pesquisado, viria a revolucionar nossa compreensão sobre o cérebro: a neuroplasticidade. Antes da descoberta desse fenômeno, achava-se que nosso cérebro possuía uma quantidade de neurônios que não se alterava nunca. Se algum fosse destruído em algum momento, já era, ia ficar com aquela falta e todas as consequências decorrentes daí para sempre. Assim, a descoberta da neuroplasticidade significou uma nova esperança para aqueles que sofreram derrames ou que sofriam de qualquer outra condição com prejuízo cerebral, pois significava que, através de exercícios e terapia, o cérebro poderia se remoldar e reaprender aquela tarefa prejudicada. Por exemplo, alguém que parou de mover um braço por causa de um derrame, poderia recuperar os movimentos através de uma terapia especializada.
Os efeitos da neuroplasticidade no aprendizado também ficaram claros. Resumidamente, os cientistas perceberam que a aprendizagem é o processo da neuroplasticidade por excelência. Cada coisa nova que aprendemos contribui para modificar nosso padrão de conexões cerebrais.
Mas o Dalai Lama estava se referindo a outro tipo de controle sobre a matéria (cérebro). Não era algo que se conseguia através de exercícios, mas através do puro pensamento, como ele diria.
Em 2002, a neurocientista Helen Mayberg, descobriu que pílulas placebo exerciam o mesmo efeito sobre o cérebro (em alguns casos, claro) que os anti-depressivos. Isso trouxe uma maior necessidade de aprimoramento dos estudos nos quais as indústrias farmacêuticas se baseiam para criar seus medicamentos, mas também fez a comunidade científica ficar alerta para o poder do pensamento para interferir na atividade eletroquímica do nosso cérebro.
Esse controle já era oferecido, de certa forma, através da terapia cognitivo-comportamental (TCC). Esse tipo de terapia age fazendo com que o paciente aprenda a mudar sua forma de pensar, o que, consequentemente, muda seu comportamento e seus sentimentos e emoções em relação ao problema e à vida em geral também (Almeida & Neto, 2003).
Na Universidade de Toronto, Dra. Mayberg e seus colegas chegaram a resultados bastante interessantes. Eles separaram dois grupos de pacientes que sofriam dos chamados pensamentos catastróficos – padrão de pensamento em que se pensa que tudo vai dar errado o tempo todo, que algo terrível irá acontecer e etc -, um dos grupos seria tratado com um medicamento anti-depressivo apenas, a paroxetina, e o outro com TCC. Ressonâncias magnéticas eram realizadas antes do experimento e depois, pois, assim, os pesquisadores buscavam verificar se o cérebro dos pacientes mostrava uma modificação mensurável após o tratamento. A hipótese era que os dois tipos de terapia, quando bem sucedida, causariam as mesmas modificações. Mas “estávamos totalmente errados”, como disse Mayberg. A análise pós-terapia mostrou diferenças significativas no cérebro dos dois grupos. A TCC diminuiu consideravelmente a hiperatividade do córtex frontal – o centro da racionalidade, lógica, análise e pensamento abstrato. Já os antidepressivos aumentaram a atividade nessa área. E a TCC aumentou a atividade no sistema límbico, o centro das emoções, enquanto as drogas diminuíram a atividade ali. Esse efeito é bem compatível com o relato de alguns pacientes que se sentem meio “dopados” quando tomam esses medicamentos; de acordo com esses resultados, poderíamos supor que essa sensação é causada por esse efeito letárgico sobre o centro das emoções. A terapia cognitivo-comportamental, conclui Mayberg, realmente ensinou os pacientes a não catastrofizarem, modificando sua arquitetura neural, enquanto que as drogas somente agiram sobre a hiper e subativação dos sistemas cerebrais, portanto, a TCC parece ter um resultado mais duradouro do que o tratamento farmacológico.
Outro efeito da mente sobre o cérebro que é fugaz para um ocidental é a atenção. E isso é verdade não só para humanos, mas para animais também. Em 1993, na Universidade da Califórnia, pesquisadores reuniram macacos e colocaram todos eles com um fone de ouvido tocando sons e um artefato em seus dedos, que os mantinha presos. Um grupo era ensinado a prestar atenção nos movimentos dos dedos e outro, a focar-se no som que saía do fone. Monitorando o cérebro desses animais antes e depois da experiência que durou algumas semanas, foi descoberto que o córtex correspondente à atividade atencional enfatizada apresentava um número de conexões e um tamanho bem maior comparando com a área não afetada. Era mais ou menos assim: o macaco que aprendeu a prestar atenção no som, em detrimento do movimento dos dedos, apresentou no fim do experimento um crescimento da área do córtex correspondente à audição, e a área equivalente ao movimento dos dedos parecia não ter diferença em relação ao que foi registrado antes do experimento.
Os estudos sobre a neuroplasticidade não se resume às terapias, remédios e aprendizado. O Oriente, especialmente no que se refere ao Budismo Tibetano, está fornecendo evidências importantes sobre a validade da neuroplasticidade e, também, sobre a eficácia da meditação como ferramenta para mudar profundamente as pessoas, inclusive suas formas de pensar.
Oito monges budistas que possuem uma prática de pelo menos 10.000 horas de meditação foram voluntários num experimento ao lado de um grupo de 10 voluntários que praticam meditação há pouco tempo, tendo feito apenas algumas aulas. Foi pedido que todos fizessem a meditação da compaixão ilimitada por todos os seres, uma prática meditativa que, segundo os budistas, aumenta a capacidade compassiva dos indivíduos. Para analisá-los, dezenas de eletrodos foram colocados em suas cabeças para que fosse realizada uma eletroencefalografia.
O estudo empreendido por Richard Davidson mostrou que, ao adentrarem nessa meditação, os voluntários aprendizes mostraram um sutil, mas significante aumento das ondas gama no cérebro. Nada comparado ao que ocorreu no cérebro dos monges. Nestes, as ondas gamas surgiram intensamente e permaneceram como tal pelo resto da meditação, até mesmo depois que eles já haviam terminado-a, seus cérebros continuaram a mostrar essa assinatura. Richard Davidson diz que tudo que ocorre na mente possui um correlato neural, e as ondas alfa são esse correlato em relação à meditação da compaixão.
Depois, Davidson utilizou ressonância magnética funcional para ver quais regiões cerebrais ficavam ativadas durante a meditação de compaixão. Segundo os dados achados, as áreas ativadas tinham relação com as emoções, planejamento e geração de emoções positivas, como a felicidade. Já as regiões que parecem manter a nossa unidade, aquilo que chamamos de “eu”, “self”, estavam muito fracamente ativadas. Curiosamente, o cérebro dos monges mostravam grande ativação nas áreas relacionadas ao amor materno e empatia, como a ínsula direita e caudado. Numerosas conexões – em relação ao cérebro dos novatos – entre o córtex frontal e as áreas ligadas às emoções foram encontradas, o que é um reflexo do primoroso controle sobre as emoções que os monges desenvolveram, como prega um dos objetivos da prática budista.
Enfim, mas o que isso tudo significa? Eu vejo isso como uma evidência de que não necessariamente religião e ciência devem ser inimigas. Tudo depende da abertura dos dois lados um em relação ao outro, e de suas posturas ao proporcionar essa abertura também, claro. Não adiantaria os dois lados se engajarem num diálogo e o Dalai Lama ficar o tempo todo encarando as escrituras e crenças budistas como coisas literais e “mais verdadeiras” que as evidências científicas. Pelo contrário, parece que os monges tibetanos tem a ciência ocidental num altíssimo patamar e todos ficam muito animados em conhecer um pouco dela. E essa parceria se mostrou muito promissora, como esses experimentos aqui relatados mostram. O estudo do cérebro dos monges ajudou a neurociência a chegar a uma série de novos resultados e a reformular várias posições sobre a natureza do cérebro e das emoções humanas, algumas às quais nem houve espaço para tratar aqui. E, se depender da autoridade política e religiosa do Tibet, novos frutos ainda surgirão.
Referências
– Almeida A. M. & Neto F. L. Revisão sobre o uso da terapia cognitiva-comportamental na prevenção de recaídas e recorrências depressivas Rev. Bras. Psiquiatr. vol.25 no.4 São Paulo Oct. 2003
– http://middlewayleadership.com/writings/Begley_How_Change_Brain%20WSJ.pdf Begley. How Thinking Can Change the Brain, Dalai Lama Helps Scientists Show the Power of the Mind To Sculpt Our Gray Matter, January 19, 2007; Page B1
Discussão - 3 comentários
Realmente, muito interessante, de todas as religiões, eu pessoalmente prefiro a budista ( mesmo sendo ateu e não religioso) , os budistas me parecem pessoas sábias, curiosas, inteligentes e calmas, de certo modo, o budismo é ateu (em algumas vertentes), acho que a meditação realmente ajuda as pessoas. Eu realmente, gostei da matéria, achei realmente delicioso ler, obrigado. =3
Obrigado, Gabzaffari.
Eu também aprecio muito o budismo. Em geral, eu acho que as religiões orientais conseguem captar bem uma espécie de religiosidade que não entra em conflito com a ciência. E isso é muito legal. O Budismo e o Taoísmo, especialmente, fazem isso com maestria.
Só queria fazer uma correçãozinha na sua colocação. O Budismo não é ateu, é agnóstico. Os budistas não acham relevante a questão de se existem deuses ou não. Pra eles, o que importa é que nós mesmos temos de buscar nossa "iluminação". A corrente budista que eu mais curto é o Zen. Além de eles serem agnósticos quanto a existência de deuses, também são em relação à própria existência de vida após a morte ou qualquer coisa do tipo. Pra eles, literalmente o que importa é o aqui e agora.
Tem até uma frase que exemplifica isso: "Quando vc é ferido por uma flecha, vc primeiro tenta buscar quem causou o ferimento ou a cura para ele?"
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