Psicologia Brazuca: Gerson A. Janczura e a memória
O professor Gerson A. Janczura estuda a memória humana no Laboratório de Processos Cognitivos da Universidade de Brasília (UnB). Sendo um dos pioneiros da área, Gerson teve um papel importante na introdução e expansão da psicologia cognitiva no Brasil. Nesta entrevista que ele gentilmente nos cedeu, o professor explorou um pouco do conhecimento que possuímos hoje acerca de como a memória humana funciona, de como somos capazes de formar memórias falsas, das intervenções práticas que a psicologia cognitiva pode subsidiar e das dificuldades que a psicologia cognitiva enfrenta para ganhar espaço no Brasil.
Gerson, você poderia nos falar brevemente sobre os projetos de pesquisa que você tem conduzido no seu grupo de pesquisa?
A maioria dos projetos desenvolvidos no Laboratório de Processos Cognitivos/UnB estão associados à investigação da Memória Humana. Duas questões centrais de interesse orientam os projetos: a primeira se relaciona à representação mental do conhecimento na memória e, a segunda, sobre a interação entre a Memória e outros Processos Cognitivos. Seguem alguns projetos em andamento:
1) Normas de Associação Semântica: este projeto está mapeando as redes associativas de material verbal (palavras) que incluem medidas de força associativa, tamanho do conjunto, conectividade e ressonância. A produção deste material permitirá investigar as influências de mecanismos implícitas (e.g., priming) em medidas de memória diretas e indiretas, assim como a sua influência em outros processos cognitivos como o Raciocínio Lógico e a Categorização.
2) Categorização e Memória: investiga o efeito de mecanismos da memória no desempenho de tarefas que envolvem conceitos e categorias, classicamente conhecidas como “aprendizagem de conceitos”. As questões de interesse se relacionam à aquisição e representação mental de conceitos naturais e artificiais, o efeito da tipicidade em tarefas de classificação, o efeito da força do traço e outras dimensões representacionais em problemas que envolvem o raciocínio dedutivo.
3) Dicionário de Verbetes da Memória: este projeto está sendo desenvolvido junto ao GT da ANPEPP “Memória: Modelos, pesquisa básica e aplicações” que congrega 9 pesquisadores vinculados a sete universidades no Brasil e Portugal. O livro apresentará mais de 300 verbetes sobre a teoria e pesquisa sobre a Memória, assim como termos da Ciência Cognitiva.
4) Projetos desenvolvidos junto aos alunos do Mestrado ou Doutorado:
a. Treino da Memória para Idosos: Este projeto visa desenvolver um programa de intervenção e avaliação da memória para idosos focalizando a reabilitação das funções mnemônicas e a aquisição de estratégias de enfrentamento do comprometimento observado nesta etapa do desenvolvimento humano.
b. Processo de facilitação e inibição na memória implícita de idosos: O projeto investiga o desempenho da memória na terceira idade verbal focalizando o papel das etapas de processamento implícito no acesso à informação em tarefas que solicitam a recuperação direta do material auxiliada por pistas.
c. O desempenho de enxadristas em função da especialização e fases do jogo: Este projeto se insere no campo da Resolução de Problemas e Expertise pretendendo colaborar na compreensão das diferenças entre novatos e especialistas, assim como no curso do desenvolvimento da especialização.
d. Programa de Reabilitação de Indivíduos com Lesão do Plexo: O objetivo deste projeto é desenvolver um programa de intervenção, baseado em técnicas imagísticas e atividades fisioterápicas, para indivíduos que sofreram a lesão do plexo e, em conseqüência, têm os movimentos do braço respectivo comprometido.
E quais são os projetos de pesquisa para o futuro?
Geralmente, os projetos desenvolvidos pelos pesquisadores estão inseridos em Programas de Pesquisa. No Laboratório de Processos Cognitivos da UnB desenvolvemos estudos em dois grandes programas de pesquisa: um programa direcionado ao desenvolvimento de intervenções relacionadas a diferentes tipos de dificuldades cognitivas (por exemplo, problemas relacionados à memória), e outro programa voltado para a pesquisa básica (por exemplo, desenvolvimento da expertise, investigação de dificuldades de leitura, fatores que influenciam o desempenho da memória). Estes programas de pesquisa interagem, isto é, promovemos uma troca entre as pesquisas básica e aplicada.
Como surgiu o seu interesse pela sua área de pesquisa?
Meu interesse na pesquisa psicológica iniciou na época da graduação. Na ocasião, atuava como monitor do Laboratório de Aprendizagem Animal na PUCRS. Este interesse foi se consolidando quando passei a coordenar o Laboratório de Percepção e Psicofísica na mesma IES, e desenvolvi minha primeira pesquisa no campo da Percepção e Psicofísica investigando a Ilusão de Myller-Lyer. Na mesma época, fui convidado para colaborar na montagem do Laboratório de Aprendizagem Animal da UCS/RS. Naquele período não tinha, ainda, entrado em contato com a Psicologia Cognitiva Experimental. O primeiro contato com a área ocorreu quando fiz o mestrado na UnB, na década de 1980. No início do mestrado esperava desenvolver a pesquisa de conclusão seguindo a abordagem da Análise Experimental do Comportamento. Entretanto, experienciava muitas dúvidas e insatisfações teóricas, metodológicas e empíricas com esta perspectiva. Minhas críticas eram semelhantes àquelas relatadas na história da Psicologia Cognitiva nas décadas de 1950 e 1960. Durante o mestrado tive a oportunidade de conhecer a abordagem do processamento da informação e desenvolver minha pesquisa no campo da representação mental do conhecimento.
Alguns dos seus projetos indicam que o conhecimento produzido pela psicologia cognitiva tem permitido o desenvolvimento de intervenções efetivas em indivíduos com prejuízos na memória (e.g. idosos). Conte-nos um pouco sobre este tipo de aplicação da psicologia cognitiva e como tem sido a sua experiência com estas aplicações.
Desenvolvemos um programa de intervenção e avaliação da memória para idosos institucionalizados. Nossa motivação era promover qualidade de vida de um grupo que tem recebido pouca atenção. Os procedimentos, desenvolvidos em sessões com 60 minutos, duas vezes por semana durante quase quatro semanas, evidenciaram que a intervenção melhorou o desempenho em testes de memória. Além disso, foi verificado que os idosos também obtiveram uma avaliação melhor em testes de avaliação neuropsicológica após o treinamento. Os procedimentos implementados no treino de memória foram delineados a partir do conhecimento científicos acerca dos processos da memória e dos fatores que podem favorecer ou dificultar o seu desempenho. Esta proposta será, agora, estendida e ampliada para idosos sem comprometimento cognitivo severo. O termo “envelhecimento cognitivo normal” está associado às características cognitivas observadas na terceira idade que não são atribuídas a condições patológicas como, por exemplo, a Doença de Alzheimer.
Outra derivação tecnológica que estamos desenvolvendo se apóia em estudos experimentais e clínicos sobre a influência da imagística no indivíduo. Pesquisas e a prática clínica têm evidenciado que o uso de imagens mentais pode afetar o comportamento humano e o próprio funcionamento cerebral. Este fato pode ser útil no programa de intervenção que estamos desenvolvendo, baseado em técnicas imagísticas e atividades fisioterápicas, para indivíduos que sofreram a lesão do plexo e, em conseqüência, têm os movimentos do braço(s) respectivo comprometido. A origem desta lesão é, usualmente, acidentes com motocicletas sendo que a maioria dos pacientes com esta condição é homem. Este projeto se encontra em avaliação pelo Comitê de Ética, e será brevemente iniciado. Ou seja, pacientes com esta condição serão submetidos a um programa de exercícios mentais associados a fisioterapia durante um conjunto de sessões. Nossa expectativa é que estes pacientes alcançarão maior recuperação dos movimentos comparados aos pacientes que somente receberão a fisioterapia.
Como você avalia as implicações do avanço das neurociências no estudo de aspectos cognitivos e comportamentais?
As neurociências têm impactado muito positivamente as hipóteses cognitivas sobre o comportamento humano. As evidências produzidas, por exemplos, pelas técnicas de neuroimagem têm confirmado muitas afirmações sobre o funcionamento da mente e evidenciado a necessidade de compreendermos e investigarmos os fenômenos psicológicos em, pelo menos, dois níveis: o nível neurológico e o nível cognitivo. Estes níveis interagem impondo limites mutuamente, tanto no comportamento quando nos modelos teóricos propostos pelos pesquisadores.
Considerando o panorama atual na psicologia cognitiva, o que nós sabemos hoje sobre o que é a memória e como ela funciona?
Trata-se de uma pergunta ambiciosa. A investigação científica da memória começou há mais de 100 anos e tem produzido uma vasta literatura científica que se dedica a relatar nosso conhecimento sobre a memória do ponto de vista cognitivo. Tentarei apontar alguns aspectos que considero relevantes. A memória é uma propriedade do cérebro que permite ao indivíduo manter sua história de aprendizagem ao longo do tempo. Sabemos que vários fatores influenciam a aquisição, retenção e recuperação destes conteúdos. Isto significa que o desempenho da memória pode ser beneficiado ou comprometido por diferentes processos, ou momentos, que designamos de codificação, armazenamento e recuperação. Estes fatores incluem as características da informação a serem memorizadas, as diferenças individuais, a natureza do teste de memória, as estratégias administradas pelo indivíduo no momento da memorização e da recuperação, como a informação é apresentada para memorização, o tempo decorrido entre a experiência e sua lembrança, entre outros fatores. Mas, é importante destacar que, além de suas contribuições individuais, as variáveis que afetam as diferentes etapas podem interagir influenciando a probabilidade de lembrarmos-nos de experiências e conhecimentos.
Um fator que mudou nossa compreensão sobre o funcionamento da memória foi relatado em vários estudos experimentais na década de 1970 com amnésicos e indivíduos sem danos aparentes de memória. Estes estudos mostraram que a chance de um amnésico lembrar informações também era influenciada pela maneira como aqueles pacientes eram testados. Demonstrou-se que os pacientes registravam experiências anteriores mesmo que não tivessem consciência destas no momento em que a memória era avaliada e, apesar disto, aquelas informações estavam influenciando seu comportamento atual. Estes resultados são semelhantes em indivíduos com memória intacta, ou seja, formamos nossas memórias com e sem a participação da consciência e evocamos informações com e sem intenção consciente. Atualmente, nossa compreensão sobre a memória contempla mecanismos conscientes (denominados de processos estratégicos) e inconscientes (denominados de processos automáticos). Neste sentido, a memória também se refere às influências dos conteúdos conscientes e inconscientes e dos mecanismos estratégicos e automáticos sobre o comportamento humano.
Sabemos que este funcionamento está sujeito a falhas incluindo esquecimentos temporários, esquecimentos parciais, e falsas lembranças (ou, falsas memórias). Estes fatos têm sido discutidos em função do caráter construtivo ou reconstrutivo da memória e têm influenciado nossa compreensão sobre diversos fenômenos cotidianos como a testemunha ocular e o depoimento assistido de crianças.
Além dos avanços na compreensão dos processos da memória, a pesquisa tem contribuído na concepção da memória como um sistema. Evoluímos do modelo clássico de um armazenador breve de experiências imediatas (i.e., Memória de Curto-Prazo) para um modelo mais satisfatório (i.e., Memória de Trabalho) que atende às demandas e complexidade das tarefas momentâneas. Vários modelos teórico-experimentais (e.g., MATRIX, PIER2, Modelos Conexionistas, TODAM, ACT*, CONJOINT RECOGNITION, MINERVA, CHARM) estão sendo testados e aprimorados para respondermos às questões fundamentais sobre como o conhecimento é armazenado, como é representado e retido durante longos períodos de tempo (i.e., Memória de Longo-Prazo).
Os comentários acima mencionaram, muito brevemente, apenas detalhes sobre nosso conhecimento atual sobre a memória humana. Vários campos de estudos que não citei incluem avanços nos temas: metamemória, memória sensorial, memória não-declarativa, memória episódica, memória autobiográfica, memória para o espaço e tempo, memória semântica, memória visual, desenvolvimento da memória, distúrbios da memória, memória na terceira idade, memória prospectiva, métodos de investigação da memória, e neurociência da memória.
O testemunho de pessoas que presenciaram determinados episódios (como um assassinato) pode ter um peso considerável no julgamento de um caso. Entretanto, muitas pesquisas na psicologia cognitiva indicam que modificamos frequentemente nossas memórias episódicas quando as recuperamos. Podemos confiar na nossa capacidade de recuperar estes episódios passados?
A observação de que o indivíduo pode gerar falsas memórias não implica que toda recordação seja falha, ou que devemos desconfiar de todas as nossas lembranças. As falsas memórias podem se relacionar a episódios específicos e traumatizantes, como um assassinato, mas também podem refletir experiências comuns do cotidiano. Entretanto, a maioria de nossas recordações é acurada. É importante lembrar que a memória não atua independentemente de outros processos mentais como, por exemplo, o raciocínio, a atenção. Isto significa que uma recordação pode sofrer o “filtro” de outras atividades mentais levando o indivíduo a concluir que determinada memória é falsa, verdadeira ou duvidosa. Além disso, não podemos excluir a contribuição de outros componentes da experiência humana como, por exemplo, a emoção e sua relação com a cognição.
É difícil ser um pesquisador em psicologia no Brasil?
Sim, é difícil. A pesquisa de ponta sobre a cognição humana é cara. Considere, por exemplo, que cada vez mais a pesquisa têm se apoiado em variáveis biológicas. Tanto as variáveis cognitivas quanto as biológicas demandam especialização metodológica de alto custo operacional. Como coletar dados de imagem cerebral sem a aparelhagem apropriada (RMF, fMRI, etc)? Outra dificuldade se relacionada à escassez de especialistas na área no país e ao ensino desta abordagem. Quantos cursos de graduação incluem Psicologia Cognitiva nos cursos de graduação? Quantos cursos de pós-graduação têm linhas de pesquisa e programas de pesquisa nesta abordagem? Apesar de esta perspectiva teórico-metodológica estar consolidada em outros países há muitas décadas, no Brasil somente mais recentemente a área cognitiva tem logrado participação e reconhecimento na comunidade científica e nos meios acadêmicos.
Qual foi o melhor conselho que você já recebeu?
Um dos conselhos mais úteis que recebi durante meu doutoramento foi sempre “fazer o melhor possível em minhas tarefas”. Este conselho foi dado pelo meu orientador, Dr. Douglas L. Nelson da University of South Florida/USA, lá nos anos 1990.
Você recomenda alguma leitura para quem se interessa pela sua área?
Vários livros sobre a área já estão disponíveis no Brasil. Se a pessoa não tem familiaridade com a área sugiro que leia um manual ou livro texto. Um panorama amplo da área é oferecido por:
– Sternberg, R.J. (2010). Psicologia Cognitiva (Tradução da 5a.ed.). São Paulo: CENGAGE.
– John R. Anderson (2004), Psicologia Cognitiva e suas Implicações Experimentais, 5a. Edição, Editora LTC.
– Matlin, M. (2004). Psicologia Cognitiva. 5. ed. São Paulo: LTC.
Se a pessoa tem interesse em Terapia Cognitiva, sugiro que inicie com a leitura de:
– Beck, J. S. (1997). Terapia Cognitiva: Teoria e Prática. Porto Alegre: ARTMED.
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Esta série de entrevistas é uma parceria entre os blogs SocialMente e Cogpsi. Visite-nos para conhecer um pouco mais sobre psicologia!
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