Você será necessário após o fim da civilização?

Esta é a segunda parte de um texto que começou segunda-feira. Caso não tenha ainda lido o começo, clique aqui.

CONTINUAÇÃO

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Já tendo metade do seu dia ocupado no processo de purificação de água, e a comida?
Quantas vezes você precisou caçar ou pescar para sobreviver?
Pescar é uma atividade estonteamente entediante e desprovida de atrativos, mas eu já cacei alguns animais pequenos, mas nunca porque precisava.
É tudo muito bom quando “pegar um peixe” é seguido por “para mostrar pra mãe”, mas a estória é outra quando se depende disso para viver. E a não ser que você more num sítio ou num interior idílico, dificilmente você encontrará fruteiras suficientes para lhe prover alimentação.

Você sabe identificar uma cenoura enquanto ela ainda está plantanda? E um pé de batata? Você sabe plantar batatas? Ou arroz?
Considerando que você aprenda a caçar e a distinguir um pé-de-batata de um mói-de-mato e consiga plantar arroz, agora você precisa de fogo (batata crua é ruim para o estômago e arroz cru péssimo para os dentes).
Você sabe fazer fogo? Isqueiros e fósforos eventualmente vão acabar e manter uma fogueira acesa para sempre é muito dispendioso, pois gasta móveis preciosos queimando-os à toa mesmo quando não é necessário para assar a comida ou destilar água (fica a dica).

Digamos que a sua aldeia consiga se estabelecer perto de um riacho e vocês agora tenham água boa, comida suficiente e abrigo (novamente, casas desocupadas são a melhor solução, mas mesmo que não exista nenhuma por perto, barracos são muito fáceis de se construir). E agora? O que cada um sabe fazer e com o quê cada um pode contribuir?

Olhe ao seu redor: se você está trabalhando enquanto lê isto, quem dessas pessoas na sua imediata vizinhança você gostaria que o acompanhasse? O que eles sabem fazer que você não sabe mas que lhe seria útil e complementar às suas próprias habilidades?
(Se você está sozinho em casa, olhe ao seu redor figurativamente e pense nos seus vizinhos, amigos, conhecidos, etc.)

Quantos Contadores você acha necessário para o seu Novo Mundo? E quantas Secretárias Executivas?
E que Novo Mundo será esse? Apenas uma assembleia de esfarrapados que não tomam banho para poder beber mais água enquanto um solitário desesperado tenta a todo custo fermentar o próprio cuspe numa tentativa vã de produzir vodca? Ou uma comunidade forte e focada com o intuito de reconstruir a civilização humana a partir de praticamente nada? Pois tudo que existe e que nos é precioso no presente não funciona ou nem existe mais no futuro.
Será possível reparar a humanidade com o grupo de pessoas que sobrar?

Estatisticamente, a grande maioria dos sobreviventes será constituída de Advogados, Donas de Casa e Operários em geral. Mas sem leis para estudar, casas para cuidar e máquinas para manobrar, qual uso eles viriam a ter?
Um Físico Teórico (que sobreviveu ao apocalipse por não sair jamais de casa e, tendo conseguido evitar por completo contato com a sociedade por vinte e cinco anos, só ficou sabendo que o mundo entrou em colapso quando seu Stereo Hi-Fi Double Deck parou de funcionar e o telefone da assistência técnica estava mudo) pode ser Ph.D. o que for, será tão ou mais inútil que um Analista de Sistemas.
Especialidade aqui é irrelevante, principalmente se for em alguma ocupação primariamente contemporânea.

Um Engenheiro Mecatrônico saberia montar uma armadilha para animais melhor que um Astrônomo?
Um Pianista talvez saiba trançar palha para fazer cordas melhor que um Guarda de Trânsito, mas talvez não.
Preferiria ter ao meu lado uma Enfermeira a um Cirurgião Plástico.
Um Pedreiro seria muito mais útil que um Engenheiro Civil.
Eu trocaria dois Despachantes, seis Cabelereiros, um Taxista, sete Publicitários e oito Webdesigners por um Padeiro.
Ou trinta e seis mil Homeopatas por um Mecânico (não-diluído). E entre um Chef Francês e um Açogueiro, ficaria com o último.

Essa nova sociedade precisa de pessoas que saibam mexer com coisas que poucos sabem ou que ninguém quer. Todos querem comer, mas ninguém quer se sujar de sangue ou de terra.
Todos querem um teto, mas ninguém quer cavar barro e suar ao lado de fornos de olaria.
Especializações modernas não servem de muita coisa nesse literal fim de mundo.

Você sabe fazer sabão? Melhor ainda, você sabe ao menos quais os ingredientes necessários para se fazer sabão? Conhece alguém que saiba? Talvez um Engenheiro Químico saiba uma fórmula, mas ele seria por demais acostumado a usar produtos processados, prontos para misturar, e não teria muita idéia de onde conseguir matéria-prima.

Você pode muito bem saber fazer um bolo, mas sabe criar vacas, galinhas, plantar trigo, cana-de-açúcar e construir fornos? Sabe tirar leite, fazer manteiga, farinha ou açúcar?

Você faz a mínima ideia de como uma geladeira funciona e quais os seus componentes essenciais?
Sabe extrair sal?
Sabe tirar coco?
Sabe montar uma pilha para uma lanterna? Sabe fazer uma lanterna?
E repelente de mosquitos, sabe alguma coisa sobre?

Pois é, nesse apocalipse por mim previsto, ou você é Renascentista, ou é parasita. E em tempos de dificuldade, os parasitas (sociais) são os primeiros a sofrer.

Mas mesmo as profissões que eu listei como mais úteis, seriam realmente úteis?
A Enfermeira certamente sabe dar pontos, parar sangramentos e dar remédios, mas saberia fabricar um antibiótico ou insulina?
De que me serveria um pedreiro num mundo sem sacos de cimento e fábricas de tijolos?
Será que o padeiro sabe fazer farinha a partir de plantas ou apenas sempre trabalhou com mistura pronta?
E o Mecânico? Sabe construir um motor-gerador com peças avulsas ou sempre trabalhou com computadores na concessionária?
O Açogueiro certamente sabe separar uma picanha de um contra-filé de boi, mas saberia qual o melhor pedaço de um cachorro (ou rato) para se comer? E saberia assar esse pedaço?
(Por favor, notem que não acho que eu, um digitador/blogueiro/músico que come mais que dois atletas me sairia muito bem nessa situação.)

Num planeta sem as conveniências modernas que esperamos encontrar em cada esquina, uma dor de cabeça pode significar o fim de seus dias. Você não pode mais caçar, plantar ou sequer se defender. Nada que uma aspirina não resolva em duas ou três horas, mas e quando elas acabarem?
Lembre-se que o quadro que estou pintando é permanente, não há volta daqui. Quem sabe fabricar aspirina? Você sabe? Se sim, excelente! O único problema agora é achar a matéria-prima. Existem salgueiros perto de onde você está? Você sabe diferenciar um salgueiro de uma jurema? Sabia que aspirinas são derivadas de casca de salgueiro?
A menos que você já esteja dentro da mata certa, sem combustível para o transporte suas chances são nulas.
E se de repente surge uma dor abdominal intensa em alguém? Sem radiografia ou remédios, qual o procedimento?

Para o final dessa mininovela, aguarde até sexta-feira (link para o final)!

Discussão - 12 comentários

  1. Rodrigo disse:

    É acho que serei completamente inutil 🙂

  2. Igor Santos disse:

    Então comece a treinar suas habilidades de persuasão e carisma.
    =¦¤þ

  3. Daniel disse:

    É, pensando assim um mateiro q vive no meio da Amazônia e nem tem o que por no pé seria o rei do mundo.
    (pra que eu estou na faculdade mesmo?? ah..lembrei, dinheiro...)
    Muito legal isso de ficar imaginando o fim do mundo. Gostei do post.

  4. Igor Santos disse:

    Daniel, você está corretíssimo.
    Alguém já acostumado a viver na situação em que nós nos encontraremos em breve será tão melhor sucedido que poderá a qualquer momento se declarar Rei.
    Dinheiro queimando tem uma cor estranha. A melhor labareda é conseguida dobrando-se a nota várias vezes.
    O cheiro é meio esquisito e talvez (eu acho) até tóxico, mas queima bem.

  5. Dånut disse:

    Tu já queimou dinheiro? 😛
    É, eu seria totalmente inútil nesse mundo. Não sei nada disso aí...

  6. Igor Santos disse:

    Dånut, eu sou hiperativo, muito curioso e moro só há bastante tempo. Já fiz muita coisa na vida...

  7. Dånut disse:

    aushasuhasuh
    É, eu percebi isso pelos teus outros posts XD
    Adoro eles. Mas não teria a coragem (ou loucura? :P) suficiente pra fazer metade do que tu faz 🙂

  8. André disse:

    Eu tive infância e já fiz mt m no quintal de casa, com coisas de cozinha ou plantas, q pegava no quintal mesmo...Com gordura, uma argola e um trançado de algodão dá pra fazer uma vela...Mas, por via das dúvidas, acho q assaltaria uma livraria ou biblioteca atrás de livros com títulos como "Fauna e flora brasileira: Identificação de espécies"

  9. Igor Santos disse:

    Esse é o espírito!
    Mas lembre-se: "assalto" só existe onde há leis.

  10. Giovanni disse:

    Penso que seria uma péssima idéia eliminar a diversidade de uma sociedade, principalmente num momento de crise. Isso é mais ou menos o que fazemos atualmente através dos departamentos de recursos humanos que “filtram” as personalidades tímidas e inseguras e deixam passar as “pró-ativas” e “extrovertidas”. A história já mostrou que a resposta para um determinado problema surge às vezes das fontes mais inesperadas, e isso pode ser crucial para que uma crise seja superada.
    Claro que eu também gostaria de ver publicitários e gerentes de RH sofrendo um pouquinho após o colapso de nossa sociedade, no entanto, em nome da diversidade, é importante mantê-los vivos durante algum tempo.
    No início, as pessoas serão como peças de um imenso quebra-cabeça. Músicos, engenheiros, poetas, padeiros, pedreiros, psicólogos, físicos, operários, publicitários, gerentes de RH, etc..., não se entenderão e competirão ferozmente para garantir a própria sobrevivência e de suas famílias. Em alguns locais, certamente esta diversidade será reduzida por conta desta competição. Em outros, nos quais as condições ambientais forem propícias, certo grau de diversidade permanecerá. As peças começarão a se encaixar justamente nestes locais. De repente um psicólogo que, antes da crise, gostava de acampar nas férias, consegue fazer fogo. Músicos e poetas podem fornecer ao grupo certa identidade cultural que contribuirá para que o mesmo permaneça coeso. Esta coesão possibilitará que um físico copie a técnica utilizada pelo psicólogo. Ele consegue melhorá-la e agora a utiliza para cozinhar os tijolos que o pedreiro utilizará para construir um abrigo. A arquitetura deste abrigo se transformará em um padrão que acabará por aumentar o senso de unidade deste grupo. Sem ninguém perceber, surge a primeira cidade-estado pós-crise. E o resto? O resto é História...

  11. Igor Santos disse:

    Genial!
    Giovanni, se estivéssemos na mesma área, eu o defenderia até você ser declarado Mestre do Clã.

  12. Roberta disse:

    Nossa mãe..com certeza eu seria mto, mas mto inútil.
    Me senti até mal agora..
    Haahahahaa...!
    Passou!
    Na boa, não sei de naaadaaa que me ajudaria a sobreviver...poxa!

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