Uma elegia a um dinossauro
Para os que talvez ainda não saibam, sinto informar que Carlos Hotta, do Brontossauros em meu Jardim se foi.
Não sei exatamente por onde começar, então começarei do começo e deixarei o fluxo de consciência tomar conta (e se parecer que estou fazendo piada, estou mesmo. É assim que lido com as coisas no dia a dia).
Até abril de 2008, parte da minha rotina consistia em responder/corrigir (com informações, na medida do possível, corretas) a correntes de email e, aproveitando a imensa quantidade de endereços que vinham atrelados a tais mensagens, espalhar algumas gotinhas de conhecimento da Natureza e apreciação da Ciência.
Quando vi uma imensa quantidade de emails retornando, percebi que estava sendo, na maior parte, mandado para a caixa de spam dos outros a quem tentava convencer de que o mundo é fascinante e que tomate não dá nem cura câncer.
Então, um dia após o meu aniversário, aproveitei alguns textos que já havia escrito (e mandado por email para pessoas mal agradecidas) e resolvi iniciar um blog (ou “blogue”, como eu pedantemente chamava, até perceber que não faz diferença) que, à época, se chamava “Não Acredite no que Eu Digo, Pois Minto Tanto Quanto Você” e que, por motivos óbvios, rapidamente foi mudado para “42”, ainda sem o ponto final que adorna o cabeçalho deste.
Pouco mais de um mês e meio depois, um mundo completamente novo apareceu diante dos meus olhos: blogs especializados em ciência (o meu era do que quer que estivesse na minha cabeça no momento em que sentava para escrever) e, principalmente, em português (pois já conhecia alguns em inglês). Por ocasião de um comentário, conheci em poucos minutos Atila Iamarino, Rafael Soares e Carlos Hotta.
Mais ou menos um mês depois, sozinho e carente, escrevo um texto especificando nos mínimos detalhes o tipo de mulher com quem desejo passar meus dias (e que demoraria ainda dois anos e meio para finalmente conseguir), finalizando com “se você se identificou com o texto, me procure”.
O primeiro comentário, poucos minutos após a publicação do post foi esse aí:
Sem saber muito bem como reagir nem para que lado a interação penderia, mandei um email para Carlos da forma mais neutra possível. Algo como “que foi?”.
Ao responder, ele me tranquilizou e disse que me queria para um projeto que ele e Atila estariam montando e que seria um “condomínio” de blogs de ciência, chamado Lablogatórios.
Cinquenta dias após aquela primeira notícia, entrava no ar o portal com o melhor nome de todos os tempos até hoje e que, apenas sete meses depois, viraria o Scienceblogs Brasil.
Toda essa celeridade que não me deixa lembrar de como era ser blogueiro sem ser scienceblogueiro foi, em grande parte, por causa de Hotta.
Foi por causa dele que eu estou aqui hoje, falando para as milhares de pessoas que leem diariamente as insanidades que eu escrevo vez por outra.
Se uma mulher passou batom despreocupada por causa de um texto meu, agradeçam a Carlos.
Se alguém pesquisou por auto-hemoterapia, viu o comportamento animalesco de seus defensores e pensou duas vezes antes de abandonar um tratamento sério em busca de alternativas potencialmente arriscadas, os louros são de Carlos.
Se um médico deixou de usar seu jaleco na rua e uma infecção não piorou por causa disso, esse não-evento é devido, em parte, a Carlos.
Quando alguém conseguiu entender o motivo de espirrar sob luz forte; soube pela primeira vez que homeopatia é só água, açúcar e pensamento mágico; descobriu que a chamada “medicina ortomolecular” só cura a falta de pedras nos rins; se divertiu com meus enigmas ou aprendeu o conceito de “napalm caseiro”, parte de tudo isso foi graças à falta de tato de Carlos Hotta em me abordar num momento constrangedor.
Foi também por causa de sua influência que conheci outros seres, com os quais interajo quase diariamente, que foram e são muito importantes em minha formação intelectual e identidade pessoal, como Karl, que me ensinou que eu posso, ao mesmo tempo, estar correto mas ainda errado; Fafá, que se tornou meu amigo, ocasional hospedeiro e acessório em crimes companheiro em projetos extra-blogs; Fernanda e Bessa, que me mostraram, de pontos de vista diferentes, que um passeio pela universidade pode ser a mais fascinante jornada de conhecimento (certamente as duas pessoas que serviram de estopim para a minha saída do armário não-religioso); até mesmo Meire, a minha confidente e companheira esposa a quem eu provavelmente não teria conhecido caso não tivesse ainda a auto-bibliografia atrelada e on-line do 42. e que se encaixou como uma luva feita sob medida e com talco no texto tão rudemente epilogado por Hotta.
(Atila também é responsável por muito disso, mas como ele ainda está aqui não preciso falar bem dele. E Kentaro também é um que pertence à lista acima, mas eu já o conhecia antes, então não conta. Outros também deveriam aparecer, mas FOCO!)
Também ainda por causa dele, em uma reunião onde decidimos os rumos do condomínio, realizei um sonho e criei meu próprio podcast (que não durou o suficiente, mas isso é culpa minha).
Até um restaurante japonês excelente em São Paulo (quem diria que eles existissem…) me foi apresentado por ele.
Um jeito tranquilo de falar (com um leve problema nos fonemas PR e FR) mas sempre com algo relevante a dizer, com uma genialidade do tipo que sabe o que importa e sabe que chamar atenção para o fato é uma das que não importam e com uma maturidade psicológica muito além dos seus 45 anos (eu acho que nascemos no mesmo ano, mas ele adquiriu tantas realizações ao longo da vida que trinta e poucos anos não seria tempo suficiente para um ser que vive na mesma velocidade dos outros).
Semana passada eu gravei uma entrevista com ele – talvez sua última. Quarta-feira que vem ela sairá na página do Dispersando e por lá deverá ficar até que as circunstâncias permitam, nos fazendo lembrar como ele foi um dia; tranquilo e sábio.
Este texto é dedicado (caso não tenha ficado extremamente óbvio ainda) a Carlos Hotta.
Sentirei, além de imensa e eterna gratidão, enormes saudades.
———
Antes que alguém se confunda com alguma coisa, Carlos Hotta não morreu. Apenas seu blog deixou o Scienceblogs.
Discussão - 2 comentários
Igor,
Que lindo...
Sempre me emociono muito mais com homenagens a quem está vivo.
Hotta,
Parabéns por tudo.
Beijo,
Meire
Não entendo homenagem a mortos.