Riqueza ou Criatividade

ZF – Quanto custou isto?
GL – A economia do futuro é meio diferente. Não existe dinheiro no século 24.
ZF – Não existe dinheiro? Então, você não é pago?
GL – A aquisição de fortuna não é mais uma motivação para nós.
GL – Procuramos nos aperfeiçoar… e ao resto da humanidade.

Todo ano escrevo um post de retrospectiva, para fechar o ano. Esse ano resolvi escrever um post de perspectiva, para abri o ano. Um com uma perspectiva ampla.

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Esse diálogo, entre o excêntrico personagem Zefram Cochrane (interpretado por James Cromwell) e o engenheiro Geordi La Forge (interpretado por LeVar Burton) me marcou profundamente quando assisti Jornada nas Estrelas: O primeiro contato em 1996. Ele construíra a primeira nave da humanidade capaz de fazer a ‘dobra espacial’ (viajar a velocidade da luz), a Phoenix, a partir de um antigo míssil nuclear, tendo se tornado um ícone em toda galáxia, com universidades, cidades e até mesmo planetas com o seu nome. No entanto, sua única motivação para criar o mecanismo que nos deixaria ir “audaciosamente onde nenhum homem jamais esteve“, era… ficar rico. A ideia (será que algum dia vou me acostumar a escrever ideia sem acento?) de que o acumulo de riqueza não deveria mais ser um objetivo a ser perseguido era incrível, simplesmente, porque o acumulo de riqueza não faz o menor sentido como estratégia evolutiva.

Ela está no centro da questão do aquecimento global e das mudanças climáticas. No centro da questão da poluição. Vocês sabem que a minha opinião sobre esses assuntos é contoversa. Para mim, a resposta para os problemas foi dada e eu gosto de duas em especial que considero representativas: Jacques Cousteau, quando defendeu na conferência das nações unidas para o meio ambiente de 1992 no Rio de Janeiro o controle da natalidade como forma de defesa do meio ambiente: “O pavio ligado à explosão populacional já está queimando. Nós temos menos de dez anos para apagá-lo. É preciso uma mobilização mundial para evitar o big-bang populacional.” Ele foi um dos poucos a ter coragem de pronunciar o termo ‘controle da população humana’ já que a igreja católica havia, meio que proibido, que o tema fosse tratado na conferência. Também gosto muito do excelente artigo de Slesser de 1993, que mostra que apenas a redução no consumo é capaz de reduzir as emissões de CO2 para a atmosfera:

“Tornou-se cada vez mais claro para nós que, para alcançar a sustentabilidade, seria necessário uma troca entre consumo, índices de crescimento e o que nós fazemos com nossa riqueza.” “(…) estimular de forma tanto nuclear como renovável (altamente solar) a energia e reduzir ponderadamente o consumo a um crescimento de não mais de 0.05% ao ano acima investimento em crescimento industrial [permite o] crescimento do setor de serviços (2%). E Funciona! [Lentamente] mas funciona. Logo no início do século podemos observar declínios na produção de dióxido de carbono (…) [com] padrão e qualidade de vida (produção de setor de terciário) mantidos bem altos.”

A idéia pode parecer moderna, quase ficção científica, mas não é: os atenienses foram os primeiros a propor e experimentar uma sociedade onde a busca da riqueza material não era um objetivo. Platão e Aristóteles foram os primeiros primeiros a registrar essas idéias no papel.

“Poucos milhares de homens, que povoaram por algumas dezenas de anos uma região praticamente estéril, que viveram vidas breves e inseguras, em bairros imundos, em casas desconfortáveis, ainda assim, permitiram a sua espécie – a espécie humana – um salto de qualidade todavia não superado seja pela criatividade política e social que pela criatividade estética e especulativa” diz o sociólogo Domenico de Masi no livro “Criatividade” – cuja leitura até o final é uma das minhas resoluções de ano novo.

“A filosofia, a matemática, a teoria musical, as ciências naturais, a medicina finalmente desvinculada da magia, a ética, a política, a estória, a geografia, a psicologia, a anatomia, a botânica a zoologia, a física, a biologia fizeram mais progresso teórico naqueles 100 anos do que nos milhares de séculos precedentes.” completa de Masi.

(A Escola de Atenas, de Raffaello)

É verdade que Aristóteles, em seu ‘Tratado da política‘ defendia que alguns homens haviam nascidos para serem escravos. Se conseguirmos nos desvencilhar do problema moral para seguir a lógica de Aristóteles veremos que ela está correta: “Não é possível praticar as virtudes da política conduzindo a vida de um operário, de um assalariado… Nós chamamos trabalhos operários aqueles que modificam a disposição do corpo  e os trabalhos remunerados que impedem a elevação e a facilidade de espírito”. Imagino que muitos estejam se remexendo nas cadeiras enquanto lêem isso porque provavelmente o significado dos termos ‘política’, ‘operário’, ‘assalariado’ para nós tem significados diferentes. Mas Domenico de Masi lembra que 2000 anos depois, na obra prima de Tocqueville ‘Democracia na América’, o mesmo pensamento reaparece, talvez de forma mais palatável para nossos dias: “Quando um operário se dedica continuamente e unicamente a fabricação de apenas um objeto, termina por desenvolver este trabalho com destreza singular, mas perde, ao mesmo tempo, a faculdade geral de aplicação do seu espírito na direção do trabalho. Ele se torna cada dia mais hábil e menos industrioso e, se se pode dizer, o homem se degrada a cada passo que o operário se aperfeiçoa.”

Aristóteles considerava que, entre os diversos tipos de trabalho, “os mais mecânicos eram aqueles que deformavam o corpo, os mais servis aqueles que se fundamentam somente no uso do corpo e os mais ignóbeis aqueles que requerem um mínimo de capacidade espiritual.” Para ele “devem ser considerados ignóbeis todas as obras, profissões e ensinamentos que rendam inadequados as obras e ações da virtude, o corpo ou a inteligência do homem livre. Portanto, todos os trabalhos que prejudicam as boas condições do corpo devem ser chamados de ignóbeis, como também os trabalhos assalariados, porque privam a mente do ócio e a fazem pequena”.

 Apesar do que você pode pensar, Aristóteles não apreciava ou encorajava a preguiça, a ociosidade a apatia ou a inércia. Muito pelo contrário! De Masi diz que Aristóteles acreditava na nobreza do trabalho intelectual que acontecia nos limites entre o estudo e o jogo, na excelência da reflexão filosófica e na atividade mental que se exprime através da política e da arte. O que de Masi chama de ‘Ócio Criativo’.

Mas como é possível dedicar-se ao ócio criativo sem morrer de fome?

Para Aristóteles e para os ‘clássicos’ a resposta é simples: “Acima de tudo, é preciso reduzir ao mínimo o desejo por objetos e serviços, de todos os supérfluos bens materiais. De luxo, isto é, ostentação de riqueza, é até desnecessário dizer; a verdadeira habilidade é a razão e o único verdadeiro luxo é a sabedoria. Reduzida a necessidade de bens materiais, se reduz também a necessidade de trabalhadores.”   

Vivemos em um mundo em crise, onde só a criatividade pode nos salvar da bancarrota. Mas enquanto estivermos preocupados em comprar o último modelo de iPhone, com uma assistente pessoal que não fala português e não entende os seus comandos de voz (além de fazer julgamentos morais sobre suas perguntas) não podemos pensar em soluções criativas para os problemas que temos e teremos de enfrentar. E continuaremos produzindo gases do efeito estufa.

Slesser, M. (1993). Is an environmentally sustainable future for the European Community compatible with continued growth: carbon dioxide and the management of greed Science of The Total Environment, 129 (1-2), 191-203 DOI: 10.1016/0048-9697(93)90170-B

Discussão - 4 comentários

  1. Breno disse:

    Sensacional! Este contexto histórico é de grande valia para mim. Já escrevi posts sobre consumo e um mais polêmico sobre não ter filhos (tudo baseado em dados) para tentar reverter a situação climática e social atual. Claro que todos foram rechaçados, principalmente o sobre não ter filhos. Adiciono também, um post sobre "armadilhas de pobreza", situações que ocorrem com mais frequência com os mais pobres e, ainda por cima, intensificam sua condição de probreza.
    Sempre penso no renda per capta, se é a riqueza do pais dívidida pelo número de habitantes, então qualuqer pessoa que tem rendimentos acima disto, está "usurpando" do que ganham menos. Para uma pequena nação de mais ricos, temos que ter mundo miseráveis. Meio simples demais, mas me faz refletir.

  2. Guilherme disse:

    Excelente

  3. Luiz Henrique disse:

    Mauro,
    Voce vai gostar de 2 autores que escreveram sobre a "sociedade afluente" (The Affluent Society) - Marshall David Sahlins e Kenneth Galbraith, decada de 1950.
    Muito basicamente, a linha eh " a sociedade industrial moderna pos 1945" ja consegue produzir e oferecer todos os bens necessarios a vida. O que existe hoje eh um excesso, o consumo induzido, desnecessario e a ma distribuicao destes recursos. A discussao eh infindavel mas vai ai minha humilde contribuicao.
    Galbraith writes:
    American demand for goods and services is not organic. That is, the demands are not internally created by a consumer. These such demands - food, clothes, and shelter - have been met for the vast majority of Americans.
    The new demands are created by advertisers and the "machinery for consumer-demand creation" that benefit from increased consumer spending. This exuberance in private production and consumption pushes out public spending and investment.[3] He called this the dependence effect, a process by which "wants are increasingly created by the process by which they are satisfied" [3].
    The "central tradition" in economics, created by Adam Smith and expanded by David Ricardo and Thomas Robert Malthus in the late 1700s and early 1800s, is poorly suited to the affluent post-World War II U.S. society. This is so because the "central tradition" economists wrote during a time of widespread poverty where production of basic goods was necessary. U.S. society, at the time of Galbraith's writing, was one of widespread affluence, where production was based on luxury goods and wants.
    Como anda a vida em Pindorama e os Tupinambas?
    abs
    Rico

  4. Rafael disse:

    Gosto de ler este blog justamente por este tipo de post, sempre tem uma pitada de ciencia e filosofia. O homem acima de tudo precisa ter conciencia de sua ignorancia, só assim consiguiremos melhor.

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