Quem passa x dividindo sem especificar um domínio não-nulo

Nesses dias (final de julho/2020) circulam vários memes de pessoas fazendo coisas supostamente absurdas e sendo representadas como criaturas gigantescas e monstruosas, enquanto um simples humano na cena seria o diabo perto destas pessoas. Acho muito engraçado estas comparações porém teve uma da qual gerou um pouco de “discussão” entre meus amigos.

Peço perdão mas não sei a fonte dessa imagem, simplesmente apareceu no meu caminho. Mas a imagem original pode ser encontrada em http://www.guiadosquadrinhos.com/personagem/cthulhu-/40557

A questão desse meme é que na matemática precisamos especificar sempre o domínio de uma divisão como sendo não-nulo. Ou seja, para uma variável no denominador, garantir os valores que levam o denominador a 0, não devem ser considerados. Isso basicamente é “especificar um domínio”. Por exemplo, dizer que um número primo é todo número que apenas pode ser divisível por 1 e por ele mesmo, isso estaria errado se não especificarmos o domínio dessa propriedade. Se ela estiver nos racionais/reais/irracionais, então não existem números primos, dado que qualquer número destes 3 conjuntos podem ser divididos por infinitos números. Contudo, se especificamos o domínio nos números Inteiros, também estamos dizendo que não existem números primos, pois todo número diferente de 0 pode ser dividido por -1 e pelo seu oposto aditivo. De modo mais geral, esta definição de números primos vale apenas para o domínio dos números naturais.

Observe no parágrafo acima, que quando mencionei que todo número Inteiro pode ser dividido pelo seu oposto aditivo, me lembrei de tirar o 0. Fiz isso pois o oposto aditivo do 0 é o próprio 0, e a divisão por 0 não é definida. São cuidados assim que justificam a coerência deste meme.

Ainda que isso pareça um tanto trivial, ou até óbvio, aposto que você já viu um “truque” mostrando como chegar que 2=1. Se não viu, vamos ver agora:

Seja a = b;
a² = b.a;
a² – b² = b.a – b²;
(a+b).(a-b) = b(a-b);
dividimos ambos os lados por (a-b);
(a+b) = b;
Sendo a+b = b, como a = b, temos:
(a+a) = a;
2a = a;
dividimos ambos os lados por a;
2 = 1.

Veja que legal, chegamos em 2 = 1, mas porque? A resposta é simples, porque não especificamos um domínio não-nulo. Isso aconteceu quando dividimos ambos os lados por (a-b), pois sendo a=b, a-b = 0, logo nesta etapa dividimos por 0, que é uma operação não definida. Isto permite chegarmos em qualquer resultado (literalmente), pois a divisão por 0 seria um absurdo, e não há sentido prosseguir após um absurdo, dado que o podemos tirar o que quiser a partir dele.

Espero ter deixado claro a explicação deste meme, pois haja maldade no coração daqueles que passam x dividindo sem especificar um domínio não-nulo, que até o diabo se assusta diante estas pessoas.

Apenas por curiosidade, a relação da matemática com temas “diabólicos” não é nem um pouco incomum. O filósofo Santo Agostinho (354 – 430 d.C.) já adverte que “O bom cristão deve permanecer alerta contra os matemáticos e todos aqueles que fazem profecias vazias. Existe o perigo de que os matemáticos tenham feito uma aliança com o demônio para obscurecer o espírito e confinar o homem às amarras do Inferno.”

Também tem um livro muito legal chamado “O diabo dos números” do autor Hans Magnus Enzensberger. A história se passa ao redor de um garoto chamado Robert que é constantemente assombrado por pesadelos envolvendo uma matemática incompreensível na qual ele sempre está errado, até que começa a ter sonhos com um demônio chamado Teplotaxl, que faz todo o tipo de bruxarias com números e lhe muda a maneira de ver a matemática. É uma leitura simples e muito agradável, até minha mãe que tem uma certa aversão à matemática leu este livro e gostou bastante.


Como referenciar este conteúdo em formato ABNT (baseado na norma NBR 6023/2018):

SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias da. Quem passa x dividindo sem especificar um domínio não-nulo. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Zero – Blog de Ciência da Unicamp. Volume 4. Ed. 1. 2º semestre de 2020. Campinas, 27 jul. 2020. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/zero/2283/. Acesso em: <data-de-hoje>.

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