Resolução estética

Já pensou encontrar um desafio de matemática em uma exposição de Arte?

Pode parecer estranho, talvez fizesse mais sentido este conteúdo aparecer em um museu de ciências, mas em um espaço reservado para Arte?

O que haveria de “artístico” em um desafio de matemática?


Acredite, esta realmente não é uma ideia intuitiva, e para entender melhor como ela surgiu, preciso contar um pouco sobre o projeto Desafios de Matemática da Unicamp. Este projeto ocorre desde 2020, e consiste na publicação veiculada pelas redes sociais de cunho universitário, de três desafios de matemática por semana. Conteúdos de matemática usualmente tem suas produções voltadas para um uso curricular, e neste trabalho, este propósito não foi diferente. O trabalho em si surgiu como um teste de material didático voltado para o ensino de frações nos Anos Finais do Ensino Fundamental. As escolhas estéticas a princípio não eram consideradas, enquanto o foco principal era a viabilidade deste material para auxiliar na aprendizagem de frações. Contudo, o que começou como um teste, teve um acolhimento da comunidade universitária bastante forte, levando a sua realização semanal. Isto com o tempo trouxe espaço para desafios mais sofisticados, o que começou a determinar também uma forma e intenção ligado à sua produção.

Os desafios de forma geral são figuras formadas por formas geométricas de duas ou três dimensões, com uma informação numérica associada ao comprimento, área ou volume, e uma incógnita a ser determinada. Acompanhando os desafios há informações textuais que garantem algumas das relações visuais mais subjetivas.

Ao longo dos primeiros 262 desafios publicados, era possível observar alguns apelos estéticos ligados às cores e arranjos de formas geométricas utilizadas. Alguns desafios eram bonitos de se ver, tinham desafios que pareciam flores, outros eram estruturas mais enigmáticas e curiosas de se observar. Contudo, se pensarmos no ponto de vista matemático, os desafios carregam uma restrição maior do que as produções artísticas usuais que utilizam cores e formas geométricas, pois enquanto uma produção artística pode fazer qualquer arranjo de cores e formas para alcançar a estética necessária, esses desafios estão restritos a ilustrarem um problema matemático de solução única.

Entretanto, uma característica mais intrínseca dos desafios aparecia pelas pessoas que os resolviam. Isto estava ligado a uma série de técnicas, conceitos, relações, procedimentos ou resultados alcançados durante ou no final da resolução. É como se o processo de resolver pudesse carregar uma certa estética que faz com que um desafio seja admirável por algum aspecto não-visual. Por exemplo, após realizar inúmeros cálculos com frações e raízes, na hora do resultado elas se anulam, chegando em um número Natural. Ou no emprego de um conceito ou relação geométrica que possibilita resolver um desafio aparentemente complexo, de forma bastante simples. São aspectos que aparecem no processo de resolvê-lo, e que acredito eu, carregam sim uma estética multifacetada.

Após essa percepção, me coloquei a trabalhar em um desafio que pudesse carregar de maneira mais intencional, essa estética ligada à sua resolução. Algo que poderia vir a ser exposto e gerar uma sensação de satisfação para quem o resolve, não por ser um desafio simples, mas pela forma com que pode ser resolvido. Para deixar mais claro do que estamos falando, vamos para este protótipo de obra de arte.

O desafio abaixo é composto de um quadrilátero azul com área 72 unidades e pede-se que determine a área de um dos 19 quadrados vermelhos.

Desafio 263

Resolução 1:
Vamos chamar o Lado de cada quadrado vermelho de L.
Podemos imaginar a região azul subdividida em um triângulo retângulo e outro triângulo.

A área do triângulo retângulo será dada por (3L*4L)/2 = 6L².
A hipotenusa do triângulo retângulo será dada por √[(3L)² + (4L)²] = 5L.
A fórmula de Heron permite calcularmos a área do outro triângulo a partir de seus lados:
p = (5L + 5L + 6L)/2 = 16L/2 = 8L
Área = √[8L(8L – 5L)(8L – 5L)(8L – 6L)] = √[8L3L3L2L] = √[144L⁴] = 12L².
Somando as áreas dos triângulos temos a área da região azul: 18L² = 72.
Para obter a área de um quadrado vermelho dada por L², fazemos L² = 72/18 = 4.


Resolução 2:
Vamos chamar o Lado de cada quadrado vermelho de L.
Podemos imaginar a região azul subdividida em um triângulo retângulo e outro triângulo.

Sabendo que a hipotenusa tem comprimento 5L, podemos imaginar o outro triângulo, subdividido em dois triângulos congruentes ao triângulo retângulo.

Somando as áreas dos triângulos temos a área da região azul: 18L² = 72.
Para obter a área de um quadrado vermelho dada por L², fazemos L² = 72/18 = 4.


O que achou do desafio e de suas resoluções?

Enxergou alguma “estética” nelas?


A estética mencionada reside tanto no raciocínio sofisticado necessário para resolver o desafio, visto que em geral apenas com o conhecimento dos lados de um quadrilátero, o cálculo da sua área pode ser indeterminável (podem haver infinitos polígonos de 4 lados com as mesmas medidas de lados de áreas diferentes). Contudo, ao percebermos que após dividi-lo em um triângulo retângulo, esse problema de infinitas soluções passa a ter uma solução única, passamos a ter duas formas distintas de resolvê-lo: utilizando a Fórmula de Heron ou dividindo-o em mais dois triângulos congruentes ao triângulo retângulo. Interessante observar também, que o início e o final de ambas as resoluções são idênticas.

Junto à estética do raciocínio, temos também a referência aos resultados conhecidos das Ternas Pitagóricas (números a, b, c Naturais maiores que 0 com a característica de que a² + b² = c²) e à Fórmula de Heron presente na Resolução 1.

Há entretanto uma estética geométrica, de observarmos na Resolução 2, um quadrilátero até então sem indícios claros, se decompor em três triângulos congruentes. Este é um resultado que a primeira vista pode parecer distante, mas após encontrar a hipotenusa do primeiro triângulo, esta relação passa a ser “visível” na imagem.

Além da estética do raciocínio e da geometria, temos também uma estética numérica, que proporciona a realização dos cálculos dentro do conjunto dos números Naturais, isto é, sem obtermos resultados nas formas de frações ou raízes quadradas (ainda que o Teorema de Pitágoras e a fórmula de Heron utilizem frações e raízes em seus cálculos).

Por fim, há uma sutileza no desafio referente a percepção de que devemos interromper o cálculo ao encontrarmos o valor de L², em vez de continuá-lo para descobrir quanto vale o L. Que apesar de ser “tentador” dizer quanto vale L (também escolhido para ser um número Natural), esse valor equivale à medida do lado do quadrado vermelho em vez de sua área.


Enfim, estas são características ligadas à resolução do desafio que estão de certo modo externas a sua representação visual. Quem o vê, enxerga 20 quadriláteros, porém quem o resolve enxerga possibilidades de resoluções sofisticadas e de cálculos simples.


E ai, o que achou?

A estética de resolver um desafio parece compensar a limitação de desenvolvê-lo para ter solução única?

Escreva ai nos comentários :3


Como referenciar este conteúdo em formato ABNT (baseado na norma NBR 6023/2018):

SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias da. Resolução estética. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Zero – Blog de Ciência da Unicamp. Volume 7. Ed. 1. 1º semestre de 2022. Campinas, 16 abr. 2022. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/zero/3787/. Acesso em: <data-de-hoje>.

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