Arte e gastos públicos

Texto por Lucas Miranda

O que vem à sua mente quando você vê uma performance como essa da imagem? E o que vem à mente se eu te contar que ela teve um custo de 20 mil reais para a prefeitura da cidade de Juiz de Fora / MG? Um absurdo? Qualquer coisa menos arte? Um dinheiro que poderia estar sendo utilizado para cobrir buracos, melhorar os postos de saúde, melhorar a segurança pública? Uma “lacração”?

Nesse texto, vamos conversar um pouco sobre gastos públicos com cultura e o que exatamente é arte.

Este conteúdo foi originalmente produzido em vídeo, mas se preferir pode lê-lo logo depois do player!

Cartaz chamando o público para a Semana de Arte Moderna de 1922. 

100 anos da Semana de Arte Moderna de São Paulo

No dia 13 de fevereiro de 2022, a famosa Semana de Arte Moderna de 1922 completa 100 anos. A Semana aconteceu no Teatro Municipal de São Paulo e foi um grande catalisador de mudanças importantes na linguagem artística brasileira. A partir desse marco, surge o chamado “modernismo” no Brasil, trazendo uma estética bastante diferente.

Até aquele momento, prevalescia a expressão artística do academismo, baseada nas academias de arte europeias e instituída no país desde 1816, com a criação da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios por D. João VI.

A arte acadêmica tinha um caráter bastante moralista, muitas vezes recorrendo a cenários bíblicos ou à coragem nobre de soldados em guerras. A idealização das formas e dos corpos também era algo que se perseguia, evitando-se ao máximo o mundano, o cotidiano e o real. As obras academistas eram carregadas de técnias complexas, uso moderado de cor e de tinta e as superfícies eram perfeitamente lisas (sem que se pudessem perceber os traços do pincel).

Com a intenção de promover uma renovação artística e social no Brasil, um grupo de artistas (revolucionários) que se apresentariam na grande e esperada Semana de Arte Moderna de 1922, resolveram apresentar obras que causavam drástico rompimento com a expressão artística vigente (o academismo). Dentre as várias apresentações de música, poesia, esposição de obras, as obras dos chamados “modernistas” eram muito mais mundanas, cotidianas, coloquiais, cômicas, irônicas e com temáticas bem brasileiras.

É claro que isso desagradou uma parcela importante da população e gerou diversos ataques aos artistas e a esse movimento. Mesmo assim, essa semente plantada em 1922 levou a uma série de movimentos e mudanças estilísticas nos anos seguintes.

Segundo a jornalista e historiadora Marcia Camargos, o maior legado da Semana de 1922 “foi no sentido de libertar as artes e a cultura das amarras do academicismo, do parnasianismo, dos padrões europeus, para dar inicio à construção de uma estética nacional”.

Primeira Missa no Brasil (1861). Obra de caráter histórico do período academicista do artista Victor Meirelles
Samba (1925). Obra modernista do artista Di Cavalcanti

Ataques à arte

Para homenagear o centenário da Semana de 1922, a Prefeitura de Juiz de Fora lançou o edital cultural “Pau Brasil” para apoiar 15 ações culturais e artísticas na cidade com o valor fixo de R$ 20.000,00.

Dos projetos contemplados o 5º lugar foi uma intervenção cultural chamada PRAIA. De acordo com a diretora dessa intervenção,

“A ideia é a gente ocupar o Parque Halfeld [um ponto de encontro importante da cidade] de uma maneira diferente do que acontece normalmente e estamos aqui para propor novos olhares, novas maneiras de estar, questionando protocolos sociais, preconceitos e se dando ao prazer de desfrutar esse momento”.

A intervenção artística, que ocorreu no dia 05/02/2022, consistiu em um grupo de artistas sobre uma lona amarela simulando que estavam na praia (tomando sol, conversando, etc.). Parte da população de Juiz de Fora criticou fortemente essa intervenção, alegando que: 1) isso não é arte e 2) foi um dinheiro jogado fora e os 20 mil reais gastos pela prefeitura poderiam ser utilizados para, por exemplo, cobrir buracos no asfalto.

As críticas foram tão intensas, que o setor de inteligência da Secretaria de Segurança Urbana recomendou a suspensão da segunda apresenação dessa intervenção, de modo a proteger a integridade física dos artistas.

É assustador ver uma performance artística precisar ser cancelada por risco à integridade física dos artistas. Da mesma forma que a Semana de Arte Moderna de 1922 sofreu ataques duros, essa intervenção (que homenageou a Semana de 1922) e outras obras artísticas que provocam rompimento com a arte mais pura, mais moralista, também sofrem ataques até hoje. Isso mostra que nesses 100 anos ainda não aprendemos tanto assim com os artistas modernistas, embora a arte tenha se transformado muito.

Dinheiro jogado fora?

O projeto “PRAIA” recebeu R$ 20.000,00, como estava previsto no edital Pau Brasil, sendo que cerca de 5.000,00 ficaram retidos por imposto de renda. O dinheiro restante foi usado para remunerar: 1) uma oficina de criação de 1 mês de duração; 2) duas apresentações de 2h de duração com um grupo grande de artistas; 3) a produção de um vídeo de registro; e 4) uma oficina de avaliação aberta ao público. Ou seja, não foram 20 mil reais por uma performance.

Para ser aprovado neste edital, o proponente deveria justificar a destinação de cada centavo gasto no projeto (e valores superfaturados ou gastos desnecessários poderiam fazer o projeto ser desclassificado) e após a sua execução todos os gastos deveriam ser comprovados. Ou seja, tudo é muito bem controlado e avaliado pela Comissão Municipal de Incentivo à Cultura (Comic), que é composta por membros do poder público e da sociedade civil (principalmente da classe artística).

Existem outros fatores importantes também: o projeto precisa ter alguma acessibilidade (seja para surdos, cegos, pessoas com deficiência, etc.); precisa estar muito bem justificado quanto ao seu objetivo artístico (e isso é avaliado por artistas); e ainda precisa oferecer uma contrapartida social gratuita (isso quer dizer que quem ganha essa verba precisa de oferecer gratuitamente uma oficina, um curso, uma aula, etc. para a poppulação da cidade. Ou seja, há aí uma importante devolutiva à sociedade, cujo dinheiro foi investido nesse projeto.

Por fim, vale dizer que seria impossível a prefeitura simplesmente pegar esse dinheiro e usar para cobrir buracos no asfalto, simplesmente porque é uma verba que já está destinada à pasta da cultura. Quando a prefeitura aprova a lei orçamentária de um ano, ela já estabelece quanto de verba vai para cada setor. Uma vez que o dinheiro foi para a cultura, lá ele fica, e quem vai administrá-lo é a secretaria responsável. Além disso, um investimento de 300 mil reais (que foi o orçamento do edital inteiro, que contemplou 15 projetos) pode até parecer um valor exorbitante, mas não é. Para uma cidade que tem um orçamento anual da ordem de 2 bilhões e 600 milhões, esse investimento é muito pequeno. A arte sempre recebeu, e recebe, muito pouco. E o pouco que ela recebe é sempre alvo de muitos ataques e questionamentos.

Sobre o argumento de que isso é ou não arte, nem faz sentido entrar nessa discussão, uma vez que as pessoas que mais estão defendendo que esta intervenção não é arte não têm qualquer formação artística e, pelo visto, não são consumidoras de algumas lingagens artísticas, como a arte performática. Muitas das críticas também se originam de um pensamento mais moralista e conservador e traz uma bagagem ideológica que dificulta o indivíduo a se abrir a expressões artísiticas que rompem com esse conservadorismo.

No fim, a melhor prova de que trata-se de uma obra de arte singela e potente é que ela cumpriu um papel importante de provocar, tocar em feridas da sociedade e efervescer discussões.


Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadoresAlém disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp.