Nombrar es imposible
Y puede ser bello intentar lo imposible
Pero cada vez que hablamos
Algo queda fuera de los nombres
Cada palabra omite
La única parte única
De aquello que quieres decir
Nombrar es olvidar
Y hoy quiero recor-, quiero recordar
Que nombrar es imposible (nombrar es imposible)
Silvia Perez Cruz
Meio ambiente é conceito! Por que isso importa?
O que vem à sua cabeça quando ouve a palavra “meio ambiente”? Uma floresta frondosa? Um recife de coral, talvez? Quem sabe uma plantação cercada de animais? Quando dizemos “meio ambiente”, imagens surgem quase automaticamente moldadas pelo que sabemos, estudamos, vivemos. Mas… e se eu te disser que, antes de mais nada, meio ambiente é um conceito? Algo pensado, construído, disputado na nossa sociedade e que só existe a partir da maneira como pensamos e habitamos o mundo?
Isso muda alguma coisa?
Ao definirmos o meio ambiente como conceito, retiramos dele a capa de verdade absoluta. “Meio ambiente” é uma forma de nomear o mundo e a maneira como nomeamos as coisas diz muito sobre como as compreendemos. Ao dizer meio ambiente, não estamos apenas descrevendo um espaço: estamos também expressando uma determinada visão de mundo, com valores, prioridades e limites.
Foucault nos ensina que um modo de falar, de enunciar, de nomear o outro é também um modo de constituir o outro, de produzir verdades sobre esse outro, de cercar esse outro a partir de alguns limites que, mesmo considerando todas as nossas nobres intenções psico-didático-pedagógicas, acabam por nos fazer esquecer que ocorre, aí também, de controle do discurso. (FISCHER, 2020, p. 104, grifo meu)
Como afirma a pesquisadora Rosa Maria Bueno Fischer em seu livro Trabalhar com Foucault: Arqueologia de uma paixão, trabalhar com Foucault inclui um compromisso com o gesto de desconfiar das verdades prontas. Cada palavra, cada conceito que usamos carrega uma história. E é nesse emaranhado de sentidos que se define o que pode ser considerado verdade, o que pode ser dito, como pode ser dito e os caminhos que se abrem (ou se fecham) a partir disso.
Isso, no entanto, não significa que Foucault negue a existência da realidade, como alguns ainda insistem em afirmar. O que ele propõe é outra coisa: a realidade existe, mas a forma como a nomeamos está profundamente entrelaçada às relações culturais, sociais e históricas de cada contexto.
Nesse sentido, quando falamos “meio ambiente”, não estamos falando de algo neutro. Mas de um campo de disputas epistemológicas (teóricas, filosóficas e científicas), políticas e econômicas.
O conceito meio ambiente como campo de disputa
Vamos lá: o meio ambiente, hoje, é um grande palco de disputas narrativas. Nos últimos anos, temos assistido a uma crescente onda de debates em torno do tema ambiental e eles vão muito além da proteção da natureza em si.
Lá no início deste texto, propus uma pergunta simples: o que vem à sua cabeça quando você ouve “meio ambiente”? A resposta não é única e nem pode ser. O que chamamos de “meio ambiente” foi construído, ao longo da nossa tradição teórica ocidental, como algo apartado de nós: um objeto exterior, separado da sociedade, como se fosse um “lá fora” que podemos observar, explorar ou proteger.
No entanto, nem todas as culturas e sociedades compartilham essa noção. Muitas sequer reconhecem “meio ambiente” como um conceito válido ou necessário. Trago aqui dois autores e líderes indígenas que defendem outras formas de se viver no mundo.
O primeiro é Davi Kopenawa Yanomami que, em A Queda do Céu (2015), afirma:
Quando falam da floresta, os brancos muitas vezes usam uma palavra: meio ambiente. Essa palavra também não é uma das nossas e nós a desconhecíamos até pouco tempo atrás. Para nós, o que os brancos chamam assim é o que resta da terra e da floresta feridas pelas máquinas. É o que resta de tudo o que eles destruíram até agora (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 484).
Essa fala revela como as palavras importam: nomear é produzir mundo. E quando se reivindica uma única verdade supostamente neutra, científica ou universal outras formas de existência são apagadas ou deslegitimadas.
Na mesma direção, Ailton Krenak, em Ideias para adiar o fim do mundo (2019), narra como, para a cultura Krenak, o Rio Doce não é apenas um rio do qual se usufrui. Ele é o Watu, o avô. Há, portanto, uma relação de parentesco, respeito e ancestralidade com esse rio que não é recurso, mas um ser com quem se compartilha a vida.
No Brasil, a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) define o que é meio ambiente, seus objetivos e os instrumentos de proteção usados pelo Estado. Neste documento, o conceito de meio ambiente é hegemônico: ele define os termos do debate e orienta as decisões nas políticas ambientais, podendo silenciar algumas formas de relação com a natureza, enquanto legitima outras formas de uso e relação destes espaços, seres vivos e, também, culturas.
Assim, essas disputas conceituais não são apenas abstratas: elas moldam políticas públicas, orientam decisões econômicas e impactam diretamente territórios e vidas.
O desastre de Mariana e os limites do conceito hegemônico
Um exemplo emblemático das consequências dessa concepção dominante de meio ambiente como recurso gerenciável foi o rompimento da barragem do Fundão, em Mariana (MG), controlada pela empresa de mineração Samarco Mineração S.A. Em 5 de novembro de 2015, o rompimento de uma barragem liberou cerca de 40 milhões de m³ de rejeitos, devastando comunidades e contaminando o Rio Doce até o mar. O desastre afetou 49 municípios e causou 19 mortes.
A mineração, respaldada por um modelo desenvolvimentista e por uma política ambiental que prioriza o crescimento econômico, sempre ocupou lugar central nas decisões sobre o uso do território, muitas vezes à revelia dos povos que ali vivem. E hoje, quase dez anos depois do ocorrido, pouco ou quase nada foi feito em relação à punição dos responsáveis.
No entanto, as populações afetadas seguem vivendo as consequências. Entre elas, está o povo indígena Krenak, que viu o Rio Doce, o Watu, ser profundamente atingido pelos rejeitos de minério.
Em entrevista ao Instituto Socioambiental (ISA), em 2016, Ailton Krenak afirmou que o rompimento da barragem de Mariana não foi um acidente, mas uma consequência anunciada de um modelo econômico extrativista que trata os territórios como “material descartável”.
“Watu, que é como nós chamamos aquele rio, é uma entidade; tem personalidade. Ele não é um ‘recurso’ como os pilantras dos engenheiros da Vale, administradores do Governo, da Agência Nacional das Águas, do Comitê de Bacias sugerem. Eles criam toda essa linguagem despistante, malandra, para sugerir que foi um acidente, que eles usam recursos e que as pessoas, os coletivos, as comunidades que são atingidas por esse dano, são vitimadas por esse evento, são ‘beneficiários’. Os beneficiários da presença dessas corporações na nossa região ficam sujeitos a acordar soterrados por uma lama venenosa.”
O rio Doce, ou Watu, como é chamado pelo povo Krenak, não é só água ou paisagem… É vida, memória, presença. E foi transformado em lama tóxica por um modelo de desenvolvimento que ignora os modos de vida que existem ali. Como disse Ailton Krenak, não foi um acidente: foi o resultado de um sistema que trata territórios inteiros como recurso a ser utilizado e depois… descartado. Isso ilustra como formas diferentes de nomear o mundo influenciam as formas de lidar com ele.
O papel da ciência, da política e da educação
Apontar o meio ambiente como conceito não quer dizer, todavia, que devemos descartar todo nosso conhecimento sobre ele. Pelo contrário, ao entender que meio ambiente é conceito e não uma verdade absoluta, podemos olhar para as nossas práticas com mais criticidade, podemos reivindicar que populações que concebem uma outra forma de viver com o mundo sejam ouvidas, legitimadas.
Podemos conscientemente discutir sobre as políticas públicas ambientais, entendendo suas nuances, entendendo seus efeitos em comunidades diferentes.
Como cientistas, políticos e educadores, ao compreendermos que lidamos com um conceito construído culturalmente, podemos ouvir outros saberes e sermos mais conscientes das nossas lutas.
Assim, pensar meio ambiente como conceito, é abrir mão de verdades absolutas e enraizadas, para possibilitar compreender, também, a história deste conceito dentro de nossa sociedade. Isto é, perceber seus problemas, vantagens, possibilidades. Suas questões e como podemos construir perspectivas e caminhos mais justos – para nós e para os outros, agora e no futuro.
Este é o primeiro texto da série Meio Ambiente, Ciência e Política. Um conjunto de textos que buscará acompanhar os principais acontecimentos científicos e políticos brasileiros e mundiais, para analisar a partir de um viés da ciência e educação. Nos acompanhe nos próximos textos!
Para saber mais
FISCHER, RMB (2020) Trabalhar com Foucault: Arqueologia de uma paixão, 1ed, Belo Horizonte: Autêntica Editora.
FOUCAULT , M (1999) As Palavras e as Coisas. 8 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Instituto Socioambiental (2016) “Não foi um acidente”, diz Ailton Krenak sobre a tragédia de Mariana. ISA – Instituto Socioambiental, 9 nov.
KRENAK, A (2019) Ideias para Adiar o Fim do Mundo, 1 ed, São Paulo: Companhia das Letras.
KOPENAWA, D, ALBERT, B (2015) A Queda do céu: palavras de um xamã yanomami, 1ed, São Paulo: Companhia das Letras.
MILAGRES, L, MANSUR, R (2024) Mariana, 9 anos após desastre: famílias sem casa, pesca proibida, ninguém punido; 9 pontos para entender a tragédia G1, 5 nov.
NUBLAT, J, CARVALHO, A (2024) De vítimas a ativistas, Revista Piauí, 8 maio.
SOSA, MCR (2024) Desnaturalizando o meio ambiente: um olhar para o dispositivo meio ambiente em artigos de educação ambiental, Dissertação de Mestrado em Ensino de Ciência e Matemática (PECIM), Unicamp.