Fé não é um processo epistemológico válido

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Peter Boghossian

Esses dias relendo o texto “Investigações estatísticas na eficiência da prece”, do Francis Galton, e me deparei com a seguinte passagem:

Existe um motivo para esperar que um homem devoto e supersticioso seja irracional; pois uma pessoa que acredita que seus pensamentos são inspirados, necessariamente certifica seus preconceitos com autoridade divina. Ele é, assim, pouco vulnerável à argumentação, e é intolerante em relação àqueles que apresentam uma opinião distinta da sua, especialmente em princípios fundamentais. Consequentemente ele é um mal parceiro em questões de negócios. É uma opinião corriqueira no mundo de que pessoas que rezam não são práticas.

Parece duro, mas eu acredito que a crítica continua bastante válida. Não porque eu de fato acredite que religiosos são maus parceiros, ou que algo na sua religiosidade os impede de serem bons profissionais, longe disso. Acredito que o fato de a maioria esmagadora da sociedade, inclusive em países desenvolvidos serem religiosos, argumenta contra essa ideia. Entretanto, ainda acho que esse ponto, de certa forma, procede.

Recentemente, o filósofo Peter Boghossian resolveu fazer disso o foco central de seu livro “Um Manual Para Produzir Ateus”. Segundo Boghossian, o ataque às religiões é contra-producente, e a ideia que precisa ser passada é que existem processos para a geração de conhecimento (ou, processos epistemológicos) que não são confiáveis, isso é, eles diminuem a probabilidade de se ter crenças que são verdadeiras. Ele ainda identifica duas comunalidades entres processos epistemológicos pouco confiáveis. Via de regra, tais processos 1) não se baseiam em evidências e/ou 2) se baseiam em coisas que são consideradas evidências, quando na verdade não são. E fé, afirma Boghossian, apresenta ambas as características.

A ideia de Boghossian é que, ao ensinar pensamento crítico e baseado em evidência, as pessoas irão aprimorar sua capacidade de adquirir crenças verdadeiras, levando à exclusão da fé como um processo epistemológico, o que eventualmente levaria a rejeição de religião.

É válido notar que nem sempre religiosos aplicam fé como base epistemológica universal. Quando em âmbito profissional, muitos religiosos recorrem a pensamento crítico baseado em evidências para direcionar suas ações: um empresário religioso não vai esperar inspiração divina para fechar um negócio, mas sim recorrer à analise de custo/benefício e do ambiente do mercado para tomar suas decisões. Sendo assim, a crítica de Galton nos dias de hoje pode ser mais encarado como um reductio ad absurdum do o que aconteceria se as pessoas aplicassem fé como um jeito especial de entender a realidade em todas as esferas da sua vida, algo que é comumente apontado por críticos de religião.

Claro, muitos podem apontar a ironia na citação de Galton, visto que esse era um fervoroso crítico das teorias de Mendel, que era um monge e, em qualquer avaliação, um “homem devoto”. Mas de qualquer forma, nós sabemos que Mendel está correto, e não Galton, por causa das evidências da genética e hereditariedade, e não por inspiração supernatural.

O cristianismo ajudou a fundar a ciência moderna?

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Um tipo de afirmação que vejo constantemente sendo jogada por ai é a de que, sem o cristianismo, a ciência moderna não teria existido. Isso comumente faz parte de uma linha apologética chamada “pressuposicionalismo” que consiste basicamente em dizer que sem os pressupostos do cristianismo, a ciência moderna (ou moralidade, ou qualquer outra coisa) não são logicamente coerentes. Ou seja, sem um Deus propondo leis regulares na natureza, não faz sentido pensar numa ciência que funciona.

É uma estratégia interessante mas altamente discutível. Afinal, classicamente, a uniformidade da natureza foi vista como um potencial impedimento para a teologia cristã, visto que impedia a ocorrência de quebras da ordem natural das coisas através de milagres. Sem milagre, sem ressurreição, sem cristianismo.

Outra linha de argumentação sobre a influencia do cristianismo na origem da ciência é a ideia de que a ciência moderna surgiu no mundo cristão, e não na Índia, ou na China, por exemplo. Isso é, evidentemente verdade: é no Renascimento que encontramos as bases da ciência moderna, um movimento que se deu essencialmente na Europa cristã. Entretanto, o Renascimento foi uma revitalização dos princípios clássicos  gregos e romanos, e uma quebra com a teologia dos séculos anteriores. Richard Carrier – historiador da ciência, que tem mais títulos do que eu posso colocar em um aposto- coloca isso de forma precisa:

Entretanto, em tudo isso a afirmação que não se sustenta é que o cristianismo encorajou a ciência. Se esse tivesse sido o caso, então não teríamos quase mil anos (de aproximadamente 300 a 1250 AD) com absolutamente zero avanços significativos na ciência (exceto alguns poucos e as contribuições minoritárias de hindus e muçulmanos), em contraste com os mil anos anteriores (de aproximadamente 400 AC a 300 AD), que testemunharam incríveis avanços nas ciências em continuada sucessão a cada século, culminando em teóricos cujas ideias se aproximaram tentadoramente da revolução cientifica no 2o século AD (especificamente, mas não exclusivamente, Galeno e Ptolomeu). Você não pode propor uma causa que falhou em produzir um efeito, a despeito de estar constantemente presente por mil anos, especificamente quando, na sua ausência, a ciência fez muito mais progresso. A ciência retomou em 1200 precisamente onde os antigos [gregos e romanos] deixaram ela, redescobrindo seus achados, métodos e valores epistêmicos, e continuando o processo que eles haviam iniciado.

(Grifo meu)

Claro, mesmo se fosse verdade que a ciência moderna tem sua origem no cristianismo, nada disso advoga em favor de qualquer doutrina religiosa. Pode ser muito bem verdade que a química moderna tem origem na alquimia. Mesmo assim, alquimia continua errada.

Sugiro a leitura do post de Carrier sobre o assunto: Science and Medieval Christianity