De onde vieram as berinjelas?

A berinjela, Solanum melanogena, pertence ao mesmo gênero dos tomates e das batatas. Apesar de seu sabor originalmente amargo em decorrência do acumulo de glico-alcalóides, a berinjela apresenta uma grande capacidade de absorver condimentos e temperos, adquirindo sabores ricos e complexos. Tal característica a fez famosa em cozinhas de diversos países, permitindo a elaboração de diversos pratos, como o ratatouille francês, o parmegiana italiano, o karnıyarık turco, entre outros. Mas, afinal, de onde vieram as berinjelas? Esse mistério persegue os pesquisadores à séculos, se não milênios. 
Existem duas espécies candidatas para serem a genitora selvagens das berinjelas domésticas: S. incanum ou S. undatum. Similaridades genéticas entre essas espécies e as variedades domesticadas sugerem não apenas relações de parentesco, mas também a possibilidade de que estes grupos cruzem livremente na natureza. Adicionalmente, essas espécies ocorrem nos possíveis centros de origem da berinjela, reforçando assim a possibilidade de serem espécies genitoras das berinjelas domésticas.
A India é tida como provável sítio de domesticação original, visto que é nessa região que se encontra um grande numero de variedades  selvagens e domesticadas. O registro histórico da região mais antigos tem aproximadamente 2000 mil anos de idade, porém já descrevem variedades de berinjelas domésticadas. Adicionalmente, registros históricos da China, mais especificamente da província de Yunnan, também apresentam descrições consistentes com as de variedades domésticas de berinjela, o que sugere um evento de domesticação em um período anterior aos registros históricos, ou mesmo que ambas as localidades são possíveis focos sítios de domesticação.
Variedade morfológica das berinjelas e espécies aparentadas. A- S. violaceum. B- S. aethiopicum. C- S. capsicoides. D- S. undatum. E- S. torvum. F- S. melanogena subsp. ovigerum. Fotos sem letras pertencem à variedades de S. melanogena.
Evidencias moleculares sobre a questão não são conclusivas. Elas indicam que S. incanum, S. undatum e S. melanogenica formam um grupo biológico válido, o que significa que provavelmente todas pertencem à mesma espécie natural e que a berinjela domesticada teve sua origem a partir deste grupo. Entretanto, não há um padrão geográfico claro, sugerindo que o grupo é marcado por troca de material genético por toda sua extensão geográfica. Apesar disso, há evidencia de grupos de variantes domésticas e selvagens achadas apenas na India e no sul da China, reforçando a idéia de que esses são prováveis sítios de domesticação. 
Apesar disso ser um possível reflexo de falta de amostragem e de resolução das análises moleculares, é possível que os registros, tanto moleculares quanto escritos, tenham sido apagados pelo intenso intercâmbio comercial entre estas regiões no passado. A Rota da Seda foi uma importante rota comercial do leste Asiático, e o intenso fluxo de pessoas (e consequentemente de sementes) pode tornar a identificação de um ponto específico de origem para a domesticação difícil, se não impossível. A domesticação gradual da berinjela e o cruzamento com variantes nativas que já poderiam ser consumidas localmente, podem ter se dado ao longo de uma vasta extensão geografica. Talvez tenhamos que encarar a dura realidade de que talvez nunca seja possível responder com certeza de onde vieram as berinjelas. 
Representação esquemática dos possíveis centros de domesticação da berinjela. A seta de duas pontas indica o fluxo comercial da antiguidade entre os principais centros: India e sul da China.
E sim, esse foi um post inteiramente sarcástico, apesar de factualmente correto.
Referencia:

Meyer, R., Karol, K., Little, D., Nee, M., & Litt, A. (2012). Phylogeographic relationships among Asian eggplants and new perspectives on eggplant domestication Molecular Phylogenetics and Evolution, 63 (3), 685-701 DOI: 10.1016/j.ympev.2012.02.006

Macacos não vieram dos seres humanos

Que o estado do jornalismo científico no Brasil é deplorável não é nenhum segredo. Pelo menos não deveria ser. Foi por isso que não fiquei nada surpreso quando me deparei com esse videocast da Veja sobre evolução humana liberado recentemente chamado Eles Vieram de Nós:





(o video pode ser visto aqui também)


A chamada do vídeo lê:

A máxima que nós viemos dos macacos pode estar errada. Um grupo de cientistas da California inverteu essa idéia. 

O que eles querem dizer exatamente com “máxima” me foge completamente. Afinal, não é uma “máxima“, mas uma conclusão baseado em evidencias anatômicas, paleontológicas e moleculares! O ponto do filme que remete ao título é colocado logo no início:

“Mas em 2009, um grupo de arqueólogos e antropólogos, liderados pelo americano Tim White, professor da Universidade da California, questionou essa idéia. Na verdade, eles a inverterãoam, dizendo que Chimpazés e Gorilas é que teriam vindo de nós”

O apresentador segue explicando que tal conclusão foi tirada através das analises de um dos esqueletos mais completos de hominídeos já achados, pertencente à espécie Ardipithecus ramidus, apelidado de Ardi. A seguir o filme apresenta uma representação relativamente boa das relações de parentesco entre  gorilas, chimpanzés, bonobos (que não possuem rabo, diferente do que é apresentado no vídeo) e os humanos. O filme explica que Ardi ilustra a morfologia ancestral da linhagem dos hominídeos, apresentando várias características presumidamente derivadas associadas à dentição e o bipedalismo, sugerindo que tal ancestral seria “muito mais homem do que macaco”. Porém ser “muito mais homem do que macaco” não iguala Ar. ramidus a um membro da espécie humana, nem sob a luz mais benevolente. Isso é apenas sensacionalismo barato.


Mas de onde veio essa informação? Dos 11 artigos publicados em uma edição especial da Science é que não foi. Uma rapida avaliação desses artigos revela que muitas das características que tornam Ar. ramidus “mais humano” assumem estados mais primitivos dos que os observados em AustralopithecusDizer que Ar. ramidus é mais humano do que símio me parece uma questão de gosto.


Uma possível origem para a matéria está no site UPI.com:

“As pessoas normalmente pensam que nós evoluimos dos símios, mas não, símios de diversas maneiras evoluíram de nós” disse Lovejoy [autor e co-autor de muitos dos artigos publicados na edição especial].

O site oficial da Universidade de Kent, à qual o Dr. Lovejoy está filiado, tem uma versão levemente diferente. Eu acho a colocação um tanto infeliz. Primeiro porque ela apela à uma noção equivocada de evolução humana, representada no famoso diagrama:





Em outras palavras, uma pessoa que não entende o conceito vai simplesmente inverter o diagrama e chegar a, novamente, a uma conclusão errada. Isso é uma péssima estratégia de divulgação científica.


Um segundo ponto é que isso obscurece a real revolução do achado que, ao meu ver, é a conclusão (não totalmente imune de críticas) de que o ancestral comum dos homens e dos chimpanzés apresentava uma morfologia muito mais generalizada. Isso, por sí só, é o suficiente para re-escrever grande parte do que sabemos sobre evolução morfológica e cultural humana. Mas visto que o grande publico não conhece tais assuntos, parece ser necessário gerar uma revolução falsa, mesmo que ela oculte um achado igualmente revolucionário.